São Paulo, quarta-feira, 30 de junho de 2004

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ANTONIO DELFIM NETTO

A aventura cambial

O problema mais polêmico e devastador do Plano Real é, sem dúvida, o da taxa de câmbio. Fica cada vez mais evidente que o país foi vítima de uma grande aventura que agora procura justificativa numa pseudoteoria econômica "moderna". As autoridades monetárias seriam portadoras de um conhecimento hegemônico que lhes permitiria impor à sociedade as suas decisões porque elas são resultado do conhecimento "científico". Era assim, até há bem pouco tempo, que impunham a sua vontade os portadores da "verdade" derivada do marxismo de pé quebrado, que fez a alegria e a glória de alguns de nossos intelectuais...
Não existe a mínima evidência de que a taxa de câmbio real resultante das estripulias que a política monetária fez nos últimos cinco anos estivesse muito fora do que se pode imaginar que fosse a de equilíbrio. Como temos insistido, o saldo em conta corrente dos últimos cinco anos (1990/94) foi praticamente nulo. Acumulou-se um montante extravagante de reservas nos últimos 30 meses, mas isso foi basicamente resultado dos enormes diferenciais entre as taxas de juro interna e externa.
Existem outras evidências que reforçam aquela proposição uma vez que é empiricamente impossível encontrar o que seria a "taxa de equilíbrio"? Cremos que sim. A tabela abaixo compara a situação brasileira com a da Coréia do Sul, hoje transformada em paradigma do sucesso econômico:




Se a taxa de câmbio real estivesse subvalorizada, pareceria razoável esperar que a participação das exportações brasileiras nas exportações mundiais estaria aumentando. Isso de fato ocorreu no período 1975/77 e, mais intensamente, no período 1982/84, devido à desvalorização cambial de 1983. Mas é visível que nos anos seguintes os seus efeitos foram sendo erodidos. Hoje nossa participação é menor do que a de 1971/75!
O caso da Coréia do Sul é exemplar. Nos 19 anos que medeiam entre 1971/ 73 e 1990/92, suas exportações cresceram à taxa de 21% ao ano (enquanto as brasileiras não atingiram a taxa mundial -de quase 12%). A sua taxa de câmbio real foi mantida praticamente constante no período comparada com o dólar (e desvalorizou-se em relação às outras moedas). Apesar de ligado ao dólar, o won sofreu quatro maxidesvalorizações a partir de 1961. E, desde 1980, a Coréia do Sul se encontra num sistema de "managed float". Uma habilidosa combinação de política fiscal com monetária impediu, entretanto, que houvesse qualquer flutuação brusca na taxa real de câmbio e estimulou um movimento continuado de desvalorização real.
Isso mostra que a flutuação cambial suja e voluntariosa deste semestre foi apenas tolice. Sem uma verdadeira âncora monetária, sem um equilíbrio fiscal sólido e sem coragem de assumir um compromisso cambial mais inteligente, o mercado vai perceber, mais cedo ou mais tarde, que o custo dessa política é insuportável. Aí o governo terá grandes surpresas!
Este artigo foi publicado neste mesmo espaço no dia 14/12/1994, duas semanas antes da passagem do governo do presidente Itamar Franco ao presidente Fernando Henrique Cardoso.
As surpresas foram realmente muito grandes: um crescimento medíocre de 2% ao ano na década e US$ 180 bilhões de déficit em conta corrente.

Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

dep.delfimnetto@camara.gov.br


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