São Paulo, segunda-feira, 30 de junho de 2008

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D. João 6º e a constitucionalização do Brasil

PAULO BONAVIDES


D. João 6º deu os primeiros passos para estabelecer entre nós a monarquia constitucional. Não foi, porém, bem-sucedido


DUAS DATAS o Brasil ora celebra, de extrema importância: os 200 anos do traslado da corte portuguesa ao Rio de Janeiro e os 20 anos da Constituição Federal. Têm ambas por traço comum pertencerem significativamente à história constitucional do Brasil. Mas é de d. João 6º que nos vamos ocupar.
Além da abertura dos portos e da elevação da colônia à categoria de reino, o marido de Carlota Joaquina deu os primeiros passos para estabelecer entre nós a monarquia constitucional. Não foi, porém, bem-sucedido. E não o foi por ser ele mesmo o retrato daquele monarca de Camões em que "o fraco rei faz fraca a forte gente".
Na grande crise peninsular das invasões napoleônicas, não esteve o soberano à altura do momento histórico. Suas vacilações entre ficar com a Inglaterra ou aderir à França quase lhe custavam o trono.
A fuga aos canhões de Junot é página que não engrandece a nação lusíada. Com efeito, a humilhante viagem da família real às terras americanas, sob a escolta naval da Inglaterra, passava a certidão da penúria e decadência dos capitães generais que fizeram as conquistas do mar oceano, construindo um império e inaugurando desde as navegações a era moderna da globalização.
Ao começo da segunda década do século 19, d. João 6º só recebia da Europa notícias desfavoráveis: a Revolução do Porto, a instalação das Cortes de Lisboa, a Constituinte revolucionária, a pretensão desta de limitar ao máximo os poderes da realeza, a frouxidão da autoridade que governava na ausência do rei e a instabilidade que daí decorria.
Ao termo da estada na antiga colônia, o pai de d. Pedro parecia oscilar entre uma Constituição ou duas Constituições para o Reino Unido. Nessa última direção caminhou, mandando convocar à corte, pelo decreto de 18 de fevereiro de 1821, uma assembléia de procuradores "tanto do reino do Brasil como das ilhas dos Açores, Madeira e Cabo Verde".
O objeto da convocação era fazer o exame e a consulta dos artigos da Constituição portuguesa naquilo que fosse "adaptável ao reino do Brasil". Acrescentavam-se outros poderes de reforma e melhoria relativos às mais diversas matérias.
Alguns historiadores constitucionais enxergaram ali o embrião de uma Constituinte, o propósito de separar constitucionalmente os dois reinos. Não agradou, porém, aos militares da guarnição portuguesa do Rio aquele decreto; de tal sorte que d. João bem cedo o revogou, acatando assim o projeto das Cortes de uma só Constituição para o Reino Unido.
O recuo se completou com o juramento solene, em ato público, de uma Constituição que ainda não existia, que estava sendo elaborada em Lisboa do outro lado do Atlântico. Ato não menos dramático aconteceu pouco depois: a outorga da Constituição de Cádiz, de 1812, por decreto do monarca, revogado no dia seguinte, debaixo de forte pressão militar. A vigência da Carta espanhola no Brasil durou apenas 24 horas!
D. João 6º foi o último rei do absolutismo em Portugal. Teria sido também o primeiro da monarquia constitucional, não fora a efemeridade da Constituição de 1822, a primeira que os portugueses promulgaram.
No Brasil, ele plantou a semente da realeza constitucional. Mas seu constitucionalismo não se inspirava numa convicção, senão num interesse: o de hostilizar as Cortes de Lisboa, que cerceavam com a Carta em gestação o poder absoluto dos Braganças.
A singularidade do papel constitucional de d. João 6º decorreu, portanto, dessa contradição em que ele e as Cortes se enredaram. No Brasil, o rei inclinava-se para a liberdade, em Portugal, para o absolutismo. As Cortes, ao revés, constitucionais e constituintes na Europa, aqui, porém, avessas e refratárias à autonomia do reino. Expedindo os decretos da recolonização, despertaram na América portuguesa o sentimento adormecido de nacionalidade, patente na Inconfidência Mineira, visível na criação do Reino Unido, manifesto na Revolução Pernambucana de 1817.
Tarde para volver ao passado. D. João 6º dera, em vão, como vimos, o primeiro passo para constitucionalizar o reino. Seu filho d. Pedro 1º, porém, outorgando a Carta do Império em 1824, é que ficou na história como o fundador do Brasil constitucional.


PAULO BONAVIDES , 83, doutor "honoris causa" da Universidade de Lisboa (Portugal), é professor emérito da Universidade Federal do Ceará, presidente emérito do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, diretor da "Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais" e membro do comitê de que fundou a Associação Internacional de Direito Constitucional. É autor, entre outras obras, de "História Constitucional do Brasil".

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