São Paulo, domingo, 30 de julho de 2006

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O PC ilegal

JOAQUIM FALCÃO


Está na hora de pôr o debate sobre ilegalidade e pirataria em ótica mais realista. O combate passa por tornar as empresas mais eficientes


O COMPUTADOR ilegal está morrendo. Em 2004, o Brasil caminhava para ser o campeão mundial de computadores ilegais: 74% de máquinas vendidas sem impostos, com peças contrabandeadas ou softwares irregulares. Alcançávamos a China, então em primeiro lugar. Hoje, a situação mudou. Merece comemoração e reflexão. O que fez com que o Brasil começasse a sair da ilegalidade na informática?
Terá sido a maior efetividade da lei penal? Justiça mais ágil e juízes mais rigorosos? Mais repressão policial e fiscal, diminuindo os atrativos da ilegalidade? Ou a conscientização dos consumidores, intimidados por campanhas antipirataria com que países desenvolvidos inundam o Brasil e o mundo? Acredito que não. Mesmo se verdadeiros, são fatores secundários.
A ilegalidade -pode parecer paradoxal- não é problema de implementação legal, como setores públicos e privados querem fazer crer. Qual é, então, o fator decisivo provocador da ilegalidade? A resposta é a que, diz a lenda, Clinton teria dado a um assessor que perguntara qual o fator decisivo nas eleições: "A economia, idiota!".
Nos últimos anos, a indústria conseguiu produzir um computador legal mais barato. Custa em média R$ 1.999, contra R$ 1.719 do computador ilegal. Diferença de apenas 14%. Junte a isso a queda de juros para financiamento do computador legal (1,9% ao mês), a redução dos impostos e a assistência técnica assegurada, e tudo se explica, como informa a "Veja".
Em outras palavras: a ilegalidade resultava da incapacidade de as empresas produzirem, dentro da política financeira e tributária, computadores compatíveis com o nível de renda do consumidor. Não vinha da incapacidade de policiais, fiscais ou juízes ou do "jeitinho" e da "antiética" do brasileiro. Era a alternativa econômica à falta de oferta legal dentro dos limites dos consumidores. O que não se resolve na polícia ou na Justiça.
Vejam, por exemplo, o que ocorre hoje no Brasil no mercado de música. As grandes gravadoras estrangeiras querem um milagre econômico. Em nome da ilegalidade, querem nos forçar a comprar um CD pelo preço médio no mercado americano US$ 10 a US$ 15, ou seja, R$ 20 a R$ 30. Incompatível com a renda do brasileiro.
Querem também impedir o surgimento de produção alternativa que vende CDs a R$ 5 (preço compatível com a renda dos brasileiros). O que está em jogo é simples: as gravadoras não são suficientemente eficientes e inovadoras para produzir para a demanda do nosso mercado consumidor. Não é problema legal. Mesmo com repressão ideal, o mercado consumidor real não seria compatível com o preço do CD. Trata-se de inadequação entre oferta e demanda. Não se corrige aquela reprimindo-se esta.
Para vender CDs a US$ 15, a renda do brasileiro teria ser de US$ 2.000, como nos EUA, e não de US$ 350. As grandes gravadoras reduzem o Brasil e sua música. Produzem só para a elite do Brasil. Produção de exclusão. E reprimem novos modelos de negócios voltados para o Brasil popular.
Essas gravadoras, que pagam ínfimo direito autoral, levam o governo a operações policiais, fiscais e ações judiciais para garantir seus excessivos custos, protegidas por leis que deveriam ser alteradas. Ocorre verdadeira transferência de custos: o governo gasta recursos públicos para garantir a produção fonográfica privada e excludente. Aliás, por pressão da indústria e do escritório de comércio dos EUA (USTR), o Brasil criou, no âmbito do Ministério da Justiça, o Comitê Nacional de Combate à Pirataria (CNCP). Dinheiro público para cobrir ineficiência privada estrangeira. De repente, a defesa da legalidade mostra outra face: pretende impor modelo de negócio juridicamente insustentável, por ser mercadologicamente inviável.
Em recente conferência na Universidade de Yale, ficou claro que, em vez de campanhas publicitárias milionárias, ações policiais e judiciais e da permanente intimidação moral do consumidor, as empresas deveriam investir para reduzir custos, aumentar eficiência e adaptar seus modelos de produção à realidade dos países emergentes. O exemplo do computador legal é, pois, significativo. Há no fim do túnel uma saída mais inteligente do que a repressão legal e a intoxicação publicitária.
Está na hora de colocar o debate sobre ilegalidade e pirataria em ótica mais realista. Até que ponto a ineficiência empresarial e métodos de produção baseados na importação tecnológica incompatíveis com o mercado brasileiro são o fator decisivo da ilegalidade? Até que ponto a legislação atual protege modelo de negócios ultrapassado? Estamos destinados a tentar combater ilegalidade e pirataria apenas com publicidade, repressão policial, fiscal e judicial?
O exemplo dos computadores mostra que não: o combate passa por tornar as empresas mais eficientes, produzindo para todo o Brasil, e mudando leis ultrapassadas. O problema não é implementar à força. O problema é mudar as leis democraticamente.

JOAQUIM FALCÃO , 62, mestre em direito pela Universidade Harvard (EUA) e doutor em educação pela Universidade de Genebra (Suíça), professor de direito constitucional e diretor da Escola de Direito da FGV-RJ, é membro do Conselho Nacional de Justiça.


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