São Paulo, segunda-feira, 30 de agosto de 2004

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JOÃO SAYAD

"Mute"

Kerry tem sido acusado de antipatriota e traidor, apesar de ter combatido e ter sido condecorado na Guerra do Vietnã. Os democratas alegam que as acusações têm vindo de uma organização de veteranos de guerra ligados à campanha de Bush.
No cinema, documentários demonstram que não havia motivos para invadir o Iraque. Várias TVs abertas defendem a guerra e espalham pânico entre os espectadores.
O petróleo não é o motivo principal da invasão do Iraque. Como qualquer país civilizado, os americanos precisavam de um bode expiatório depois do 11 de Setembro. O Iraque foi escolhido pelas mesmas razões que, durante a Idade Média, a Europa elegia os judeus como responsáveis pela Peste Negra. Como os brancos do Sul enforcavam um negro, eterno acusado de estupro. Ou como a polícia no Brasil, às vezes, encontra rapidamente o culpado do crime hediondo depois de espancar um "pardo" na delegacia.
O debate sobre o heroísmo de John Kerry ou sobre as falsas informações que levaram à invasão do Iraque tem efeitos marginais sobre as pesquisas de opinião pública, diminuindo ou aumentando alguns pontos nas intenções de votos de cada candidato.
No Brasil, a CPI do Banestado acusa muitos por crimes fiscais e é acusada de motivações políticas. A campanha eleitoral para as prefeituras multiplica as denúncias. Jornalistas se acusam mutuamente por notícias falsas. As revelações obrigam o governo a negociar com a oposição e enchem os jornais de notícias. Nada muda nem se propõe nada de novo.
O mundo já foi diferente. O presidente Nixon foi "impeached" apenas porque mentiu. As crianças americanas aprendem na escola a história, falsa ou verdadeira, que George Washington nunca mentiu.
No Brasil, as entrelinhas da "Veja" no início dos anos 70 davam notícias proibidas que se tornavam escândalos. As poesias impressas nas primeiras páginas do "Estadão" eram denúncia forte contra a tortura e a opressão.
"O escritor é responsável pela liberdade humana." Em tempos de mudança, quando o opressor é conhecido, a liberdade é uma ação concreta, uma palavra, um gesto ou um panfleto distribuído às escondidas.
Quando nada muda e o opressor ainda não foi identificado, a elite consolidada compartilha das mesmas opiniões; escritores, jornalistas, economistas se transformam em defensores de conceitos universais -"a liberdade de expressão", "a verdade", "a ética", "a arte pela arte", o jornalismo pelo jornalismo, a economia como teoria pura e a política como jogo de poder.
O leitor, como um espectador de televisão que apertou o botão "mute", vê sem ouvir cenas de amor ou pornográficas, de violência ou heroísmo, de patriotismo ou corrupção com a mesma indiferença. O que se diz não tem importância nenhuma.
Em tempos assim, as eleições não são relevantes. O vencedor adotará sempre a mesma política, ou na linguagem dos "executivos", terá a mesma "missão" e o mesmo "desafio" do candidato que derrotou. A personalidade do candidato -carismático, agressivo ou prudente- é mais importante do que o partido. Um "head hunter" escolheria melhor do que as urnas.


João Sayad escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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