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ANO NOVO JUDAICO
Caridade nos é um imperativo ético e religioso; a palavra
hebraica para isso é "tzedaká", justiça
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Judaísmo e justiça social
HENRY I. SOBEL
No Ano Novo judaico, que se iniciou ontem à noite, comemoramos o
aniversário do universo, de toda a humanidade
A fome e a miséria em nosso país
constituem um escândalo social e
moral ao qual não podemos mais fechar
os olhos. Nada, mas nada mesmo, é
mais urgente no Brasil de 2000 do que o
combate à fome. É verdade que somente a ação governamental pode cortar pela raiz esse mal tão profundo e persistente. Existem, porém, muitas medidas
que nós, indivíduos e grupos de cidadãos, podemos tomar para atenuá-lo.
Para nós, judeus, ajudar os necessitados é um imperativo ético e religioso. A
justiça social é uma constante em nossa
Torá, o Antigo Testamento. Nossos
profetas -Amós, Ezequiel, Isaías, Jeremias- condenavam a indiferença aos
pobres como um pecado mais grave do
que não render culto a Deus.
A palavra hebraica que expressa o
conceito de caridade é "tzedaká". "Tzedaká" significa justiça. Alimentar um
faminto não é um ato de condescendência, não é na verdade um ato de caridade. É um dever de justiça. O objetivo de
"tzedaká" é restituir a um ser humano a
dignidade que Deus lhe deu. O que a
tradição judaica está nos dizendo é que,
quando se trata de alimentar quem está
com fome, vestir quem está com frio e
abrigar quem não tem onde morar, não
se pode depender unicamente do sentimento humano. Faz-se necessário um
ato de justiça.
No Talmud encontra-se uma afirmação interessante: "Mesmo aquele que dá
a um pobre apenas uma prutá -a menor das moedas- tem o privilégio de
sentir a presença divina". Há algo de
muito especial no ato de "tzedaká"; tão
especial que a quantia dada é muitas vezes secundária em relação ao ato em si.
Mesmo a doação mais insignificante
("insignificante" em termos monetários), quando feita no espírito certo, na
hora certa e no lugar certo, permite ao
doador captar o sentido mais profundo
e mais alto da vida.
É óbvio que a comunidade judaica
não tem condições de nutrir sozinha toda uma população. Mas temos o dever
de colaborar. E, ao cumprir esse dever,
talvez estejamos nutrindo também nossa própria condição humana.
No folclore judaico, há várias anedotas sobre a cidade de Chelm, conhecida
pela baixa inteligência de seus habitantes. Conta uma delas que certa vez
criou-se em Chelm uma polêmica a respeito do shofar (o chifre de carneiro que
era utilizado como instrumento musical nos tempos bíblicos e que é tradicionalmente soado nos serviços religiosos
do Ano Novo judaico): o shofar deve ser
soprado pelo lado mais estreito ou pelo
lado mais largo?
Depois de muita discussão, a questão
foi levada ao rabino. Com sua grande
sabedoria, o rabino percebeu que aquela pergunta, aparentemente ridícula, era
muito mais profunda do que parecia à
primeira vista. O que se estava questionando era a definição da identidade judaica e o próprio caráter do judaísmo.
Sua resposta foi esta: "A extremidade
pela qual se sopra o shofar depende da
finalidade com que se sopra o shofar".
Aqueles judeus que consideram o judaísmo provinciano, estreito demais,
fazem questão de soprar o shofar pelo
lado mais largo. São eles os judeus cosmopolitas, sofisticados, intelectuais e
universalistas que não se definem como
membros de uma comunidade em particular, e sim como cidadãos do mundo.
Sua lealdade é para com a humanidade
como um todo. Meu próprio professor
de filosofia no Hebrew Union College,
Harry Orlinsky, que defendia fervorosamente a luta pela autodeterminação
dos mais variados grupos étnicos e religiosos, desprezava o sionismo, considerando-o "um movimento excessivamente chauvinista".
Aos ouvidos desses universalistas,
desses "judeus não-judeus", o protesto
de toda e qualquer minoria -seja de
pele branca, negra, amarela ou vermelha- ressoa nobremente, exceto o protesto da minoria judaica. Para eles, o
pranto do judeu é um choramingo.
A meu ver, tal cosmopolitismo, soprado pela extremidade larga do shofar,
soa oco. É um idealismo ingênuo, que
desconsidera a sabedoria do mandamento bíblico: "Amar o próximo como
a si mesmo". Antes de amar a humanidade em geral, é preciso amar seu próprio povo. A compaixão, a solidariedade e a filantropia começam em casa.
Não é de estranhar que muitos judeus
se oponham ao pseudo-universalismo
da elite intelectual judaica. O problema
é que alguns caem no extremo oposto e
insistem em soprar o shofar sempre pelo lado mais estreito. Vivem dizendo
que a lição mais importante da história
judaica, principalmente do Holocausto,
é: "Im ein ani li, mi li?" - "Se nós, judeus, não cuidarmos de nós mesmos,
quem cuidará?".
O argumento mais usado por esses judeus para justificar seu raciocínio é que,
quando nossos irmãos estavam sendo
aniquilados pelos nazistas, o mundo virou as costas. Por isso nós não devemos
nada ao mundo. Devemos lealdade somente a nós mesmos. Já são tantos os
problemas que temos de enfrentar, dizem eles -os jovens que se afastam da
comunidade, o ressurgimento do anti-semitismo na Europa e em outras partes
do mundo-; quem tem tempo para se
preocupar com o sofrimento de outros
povos, de outras raças, de outros grupos
étnicos? Por que acrescentar à já lotada
agenda judaica a tragédia das crianças
aidéticas da África ou a dos menores famintos do Brasil? Quem nos defendeu
quando crianças judias estavam sendo
massacradas em Auschwitz?
O particularismo daqueles que sopram o shofar pelo lado estreito também soa oco. Existe algo de moralmente
irresponsável em seu conselho. Nós, judeus, que sempre nos queixamos da
passividade da igreja durante os anos
sombrios do regime nazista, será que temos o direito de exigir da igreja uma
moralidade que não exigimos da sinagoga? Será que a lógica do Holocausto
sustenta a tese "Ninguém nos ajudou,
portanto não ajudaremos a ninguém"?
Por qual lado do shofar se deve soprar
é uma questão com que se defronta todo e qualquer judeu pensante, toda e
qualquer comunidade judaica séria. A
polêmica travada em Chelm surge e ressurge diariamente. A miséria é um problema judaico ou um problema humano? A fome é um problema judaico ou
humano? A violência é um problema judaico ou humano? O preconceito contra outras minorias é um problema judaico ou humano?
A própria formulação da pergunta é
maliciosa. A implicação é que temos de
escolher entre ser judeus ou ser seres
humanos, como se fossem duas categorias excludentes. Trata-se de uma falsa
escolha, que contraria o judaísmo. Existe uma resposta judaica para a miséria,
para a fome, para a violência e para o
preconceito. Tais respostas não provêm
da cabeça de um liberal maluco, mas de
uma tradição de mais de 4.000 anos.
O Talmud estipula os requisitos necessários para que um shofar possa ser
usado nas grandes festas. Um shofar
que se quebrou em duas partes e depois
foi restaurado não é válido. E por quê?
Porque o som que emite parece provir
de dois shofares diferentes. A voz deve
emanar de um único shofar, inteiro e
perfeito. Assim como existe um Deus,
um mundo, uma humanidade, o shofar
não pode ser tocado em duas vozes distintas. O que está faltando é o corolário
que o próprio sábio Hillel acrescentou:
"U'che'she'ani le'atzmi, ma ani?" - "Se
nós judeus cuidamos apenas de nós
mesmos, o que somos?"
A ética do universalismo judaico é
parte integrante da herança judaica. Em
Rosh Hashaná, o Ano Novo judaico,
que se iniciou este ano na noite de 29 de
setembro, os judeus não comemoram o
aniversário do seu povo nem o nascimento do fundador da fé judaica. O que
comemoramos é o aniversário do universo e da humanidade. Nas palavras do
Machzor, nosso livro de orações, "Hayom harat olam" -"Hoje o mundo foi
criado. Hoje todas as criaturas do universo são julgadas".
O que se deve dizer àqueles que alegam que o fardo é pesado demais, que já
é suficientemente difícil ser judeu, que
acrescentar responsabilidade pelas injustiças no mundo inteiro é absurdo? A
eles deve-se dizer que o judaísmo é uma
fé inextrincavelmente ligada ao destino
da humanidade. Esse é o sentido maior
do judaísmo. O nome do Deus que bendizemos é Ribono Shel Olam, não Ribono Shel Yisrael; o Soberano do Universo, não um soberano exclusivo, particular, privativo de Israel.
Ser judeu é envolver-se com seu próprio povo e, por meio de seu próprio
povo, com o mundo. Nós, judeus brasileiros, vivemos num país em que 300
mil crianças morrem de fome a cada
ano. Isso é problema delas ou um problema nosso? Um judeu que acredita
em Deus não pode se desvincular do
mundo que Deus criou. É claro que não
podemos sanar todos os males do mundo. Mas devemos fazer tudo o que podemos.
Àqueles que consideram essa definição de judaísmo grande demais, ampla
demais, larga demais, abrangente demais, eu pergunto: "Deus é grande demais?". Ser judeu é ser um aliado de
Deus, é ser co-criador e co-santificador
do mundo. Essa é a grandeza do judaísmo; essa é sua singularidade, seu encanto, sua emoção, seu desafio.
Able Nathan, um israelense que se dedica a promover a paz, ergueu na Somália, próximo à fronteira com o Quênia,
um acampamento para 40 mil crianças
somalis. Na entrada de cada barraca há
uma faixa com as palavras "Mi'Yerushalayim b'achavá", "De Jerusalém, com
amor".
Grande demais, amplo demais, largo
demais, abrangente demais, trabalhoso
demais? Não para o povo judeu -um
povo dotado de visão universal, um povo que serve ao Deus do mundo inteiro.
Um povo que sopra o shofar pelo lado
estreito, pelo lado da singularidade judaica, e faz sua voz irromper pelo lado
mais largo, sonora e ampliada, chegando aos ouvidos de toda a humanidade.
Henry I. Sobel, 56, é presidente do rabinato da
Congregação Israelita Paulista e coordenador da
representação judaica da Comissão Nacional de
Diálogo Religioso Católico-Judaico, órgão da
CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
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