São Paulo, sábado, 30 de setembro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ANO NOVO JUDAICO


Caridade nos é um imperativo ético e religioso; a palavra hebraica para isso é "tzedaká", justiça


Judaísmo e justiça social

HENRY I. SOBEL

No Ano Novo judaico, que se iniciou ontem à noite, comemoramos o aniversário do universo, de toda a humanidade

A fome e a miséria em nosso país constituem um escândalo social e moral ao qual não podemos mais fechar os olhos. Nada, mas nada mesmo, é mais urgente no Brasil de 2000 do que o combate à fome. É verdade que somente a ação governamental pode cortar pela raiz esse mal tão profundo e persistente. Existem, porém, muitas medidas que nós, indivíduos e grupos de cidadãos, podemos tomar para atenuá-lo.
Para nós, judeus, ajudar os necessitados é um imperativo ético e religioso. A justiça social é uma constante em nossa Torá, o Antigo Testamento. Nossos profetas -Amós, Ezequiel, Isaías, Jeremias- condenavam a indiferença aos pobres como um pecado mais grave do que não render culto a Deus.
A palavra hebraica que expressa o conceito de caridade é "tzedaká". "Tzedaká" significa justiça. Alimentar um faminto não é um ato de condescendência, não é na verdade um ato de caridade. É um dever de justiça. O objetivo de "tzedaká" é restituir a um ser humano a dignidade que Deus lhe deu. O que a tradição judaica está nos dizendo é que, quando se trata de alimentar quem está com fome, vestir quem está com frio e abrigar quem não tem onde morar, não se pode depender unicamente do sentimento humano. Faz-se necessário um ato de justiça.
No Talmud encontra-se uma afirmação interessante: "Mesmo aquele que dá a um pobre apenas uma prutá -a menor das moedas- tem o privilégio de sentir a presença divina". Há algo de muito especial no ato de "tzedaká"; tão especial que a quantia dada é muitas vezes secundária em relação ao ato em si. Mesmo a doação mais insignificante ("insignificante" em termos monetários), quando feita no espírito certo, na hora certa e no lugar certo, permite ao doador captar o sentido mais profundo e mais alto da vida.
É óbvio que a comunidade judaica não tem condições de nutrir sozinha toda uma população. Mas temos o dever de colaborar. E, ao cumprir esse dever, talvez estejamos nutrindo também nossa própria condição humana.
No folclore judaico, há várias anedotas sobre a cidade de Chelm, conhecida pela baixa inteligência de seus habitantes. Conta uma delas que certa vez criou-se em Chelm uma polêmica a respeito do shofar (o chifre de carneiro que era utilizado como instrumento musical nos tempos bíblicos e que é tradicionalmente soado nos serviços religiosos do Ano Novo judaico): o shofar deve ser soprado pelo lado mais estreito ou pelo lado mais largo?
Depois de muita discussão, a questão foi levada ao rabino. Com sua grande sabedoria, o rabino percebeu que aquela pergunta, aparentemente ridícula, era muito mais profunda do que parecia à primeira vista. O que se estava questionando era a definição da identidade judaica e o próprio caráter do judaísmo. Sua resposta foi esta: "A extremidade pela qual se sopra o shofar depende da finalidade com que se sopra o shofar".
Aqueles judeus que consideram o judaísmo provinciano, estreito demais, fazem questão de soprar o shofar pelo lado mais largo. São eles os judeus cosmopolitas, sofisticados, intelectuais e universalistas que não se definem como membros de uma comunidade em particular, e sim como cidadãos do mundo. Sua lealdade é para com a humanidade como um todo. Meu próprio professor de filosofia no Hebrew Union College, Harry Orlinsky, que defendia fervorosamente a luta pela autodeterminação dos mais variados grupos étnicos e religiosos, desprezava o sionismo, considerando-o "um movimento excessivamente chauvinista".
Aos ouvidos desses universalistas, desses "judeus não-judeus", o protesto de toda e qualquer minoria -seja de pele branca, negra, amarela ou vermelha- ressoa nobremente, exceto o protesto da minoria judaica. Para eles, o pranto do judeu é um choramingo.
A meu ver, tal cosmopolitismo, soprado pela extremidade larga do shofar, soa oco. É um idealismo ingênuo, que desconsidera a sabedoria do mandamento bíblico: "Amar o próximo como a si mesmo". Antes de amar a humanidade em geral, é preciso amar seu próprio povo. A compaixão, a solidariedade e a filantropia começam em casa.
Não é de estranhar que muitos judeus se oponham ao pseudo-universalismo da elite intelectual judaica. O problema é que alguns caem no extremo oposto e insistem em soprar o shofar sempre pelo lado mais estreito. Vivem dizendo que a lição mais importante da história judaica, principalmente do Holocausto, é: "Im ein ani li, mi li?" - "Se nós, judeus, não cuidarmos de nós mesmos, quem cuidará?".
O argumento mais usado por esses judeus para justificar seu raciocínio é que, quando nossos irmãos estavam sendo aniquilados pelos nazistas, o mundo virou as costas. Por isso nós não devemos nada ao mundo. Devemos lealdade somente a nós mesmos. Já são tantos os problemas que temos de enfrentar, dizem eles -os jovens que se afastam da comunidade, o ressurgimento do anti-semitismo na Europa e em outras partes do mundo-; quem tem tempo para se preocupar com o sofrimento de outros povos, de outras raças, de outros grupos étnicos? Por que acrescentar à já lotada agenda judaica a tragédia das crianças aidéticas da África ou a dos menores famintos do Brasil? Quem nos defendeu quando crianças judias estavam sendo massacradas em Auschwitz?
O particularismo daqueles que sopram o shofar pelo lado estreito também soa oco. Existe algo de moralmente irresponsável em seu conselho. Nós, judeus, que sempre nos queixamos da passividade da igreja durante os anos sombrios do regime nazista, será que temos o direito de exigir da igreja uma moralidade que não exigimos da sinagoga? Será que a lógica do Holocausto sustenta a tese "Ninguém nos ajudou, portanto não ajudaremos a ninguém"?
Por qual lado do shofar se deve soprar é uma questão com que se defronta todo e qualquer judeu pensante, toda e qualquer comunidade judaica séria. A polêmica travada em Chelm surge e ressurge diariamente. A miséria é um problema judaico ou um problema humano? A fome é um problema judaico ou humano? A violência é um problema judaico ou humano? O preconceito contra outras minorias é um problema judaico ou humano?
A própria formulação da pergunta é maliciosa. A implicação é que temos de escolher entre ser judeus ou ser seres humanos, como se fossem duas categorias excludentes. Trata-se de uma falsa escolha, que contraria o judaísmo. Existe uma resposta judaica para a miséria, para a fome, para a violência e para o preconceito. Tais respostas não provêm da cabeça de um liberal maluco, mas de uma tradição de mais de 4.000 anos.
O Talmud estipula os requisitos necessários para que um shofar possa ser usado nas grandes festas. Um shofar que se quebrou em duas partes e depois foi restaurado não é válido. E por quê? Porque o som que emite parece provir de dois shofares diferentes. A voz deve emanar de um único shofar, inteiro e perfeito. Assim como existe um Deus, um mundo, uma humanidade, o shofar não pode ser tocado em duas vozes distintas. O que está faltando é o corolário que o próprio sábio Hillel acrescentou: "U'che'she'ani le'atzmi, ma ani?" - "Se nós judeus cuidamos apenas de nós mesmos, o que somos?"
A ética do universalismo judaico é parte integrante da herança judaica. Em Rosh Hashaná, o Ano Novo judaico, que se iniciou este ano na noite de 29 de setembro, os judeus não comemoram o aniversário do seu povo nem o nascimento do fundador da fé judaica. O que comemoramos é o aniversário do universo e da humanidade. Nas palavras do Machzor, nosso livro de orações, "Hayom harat olam" -"Hoje o mundo foi criado. Hoje todas as criaturas do universo são julgadas".
O que se deve dizer àqueles que alegam que o fardo é pesado demais, que já é suficientemente difícil ser judeu, que acrescentar responsabilidade pelas injustiças no mundo inteiro é absurdo? A eles deve-se dizer que o judaísmo é uma fé inextrincavelmente ligada ao destino da humanidade. Esse é o sentido maior do judaísmo. O nome do Deus que bendizemos é Ribono Shel Olam, não Ribono Shel Yisrael; o Soberano do Universo, não um soberano exclusivo, particular, privativo de Israel.
Ser judeu é envolver-se com seu próprio povo e, por meio de seu próprio povo, com o mundo. Nós, judeus brasileiros, vivemos num país em que 300 mil crianças morrem de fome a cada ano. Isso é problema delas ou um problema nosso? Um judeu que acredita em Deus não pode se desvincular do mundo que Deus criou. É claro que não podemos sanar todos os males do mundo. Mas devemos fazer tudo o que podemos.
Àqueles que consideram essa definição de judaísmo grande demais, ampla demais, larga demais, abrangente demais, eu pergunto: "Deus é grande demais?". Ser judeu é ser um aliado de Deus, é ser co-criador e co-santificador do mundo. Essa é a grandeza do judaísmo; essa é sua singularidade, seu encanto, sua emoção, seu desafio.
Able Nathan, um israelense que se dedica a promover a paz, ergueu na Somália, próximo à fronteira com o Quênia, um acampamento para 40 mil crianças somalis. Na entrada de cada barraca há uma faixa com as palavras "Mi'Yerushalayim b'achavá", "De Jerusalém, com amor".
Grande demais, amplo demais, largo demais, abrangente demais, trabalhoso demais? Não para o povo judeu -um povo dotado de visão universal, um povo que serve ao Deus do mundo inteiro. Um povo que sopra o shofar pelo lado estreito, pelo lado da singularidade judaica, e faz sua voz irromper pelo lado mais largo, sonora e ampliada, chegando aos ouvidos de toda a humanidade.


Henry I. Sobel, 56, é presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista e coordenador da representação judaica da Comissão Nacional de Diálogo Religioso Católico-Judaico, órgão da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.