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São Paulo, terça-feira, 30 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O estadista e o cortesão

DEMÉTRIO MAGNOLI

"A detenção de indivíduos exige mandados de prisão e supõe processos reguladores, universalmente aceitos." Essas palavras, proferidas por Lula na sede da ONU, em Nova York, na conferência "Combatendo o Terrorismo em Prol da Humanidade", inauguraram o giro presidencial da semana passada. Elas foram dirigidas contra os encarceramentos ilegais promovidos por George Bush desde o 11 de setembro de 2001 e representaram uma dura condenação das medidas de exceção que, sob a cobertura do chamado Ato Patriótico, ameaçam as liberdades públicas e os direitos constitucionais nos EUA.
Atrás da frase de Lula está o princípio da supremacia dos direitos humanos sobre a soberania nacional. Esse princípio fundamenta a adesão brasileira ao Tribunal Penal Internacional, que é boicotado pela administração Bush. Ele também orienta o Mercosul, cujo tratado recebeu a complementação de uma "cláusula democrática". O Brasil, por meio de atos diplomáticos concretos, identificou o interesse nacional a um valor comum a todos os seres humanos. Ao se dirigir à conferência, por alguns instantes, Lula foi o "presidente da humanidade", e não exclusivamente dos brasileiros.


A incoerência, tanto quanto a mentira, é expediente desmoralizante na esfera da diplomacia


Desgraçadamente, em poucos dias o estadista revelou-se, na verdade, um cortesão. Ainda antes de pisar em solo cubano, chamado à coerência por entidades de defesa dos direitos humanos, Lula mudou o registro do discurso e declarou que, em respeito ao princípio da soberania nacional, nada falaria sobre os fuzilamentos sumários e os encarceramentos ilegais de Fidel Castro. "Nem eu nem outro chefe de Estado que chegue a um país e o respeite pode ditar regras sobre a política interna", explicou Lula, tomando emprestado um conceito brandido por cada um dos representantes diplomáticos das ditaduras do mundo inteiro nas últimas décadas.
Lula é amigo de Fidel Castro. José Dirceu, o poderoso chefe da Casa Civil, e Tilden Santiago, o embaixador em Cuba, tornaram-se, no passado, algo como membros honorários do Partido Comunista cubano. Nada disso seria mais que um registro histórico, se a amizade pessoal do presidente e o "patriotismo ideológico" de seus assessores pudessem ser subordinados aos valores e ao interesse nacional do Brasil. Mas o que se verificou na visita a Havana foi precisamente o inverso. No caso de Cuba, a política externa brasileira fornece cobertura à violação dos direitos humanos e das liberdades públicas.
Há meses, o regime cubano fuzilou três indivíduos que sequestraram uma balsa para tentar chegar à Flórida e condenou, em farsas judiciais, dezenas de dissidentes de consciência a penas médias de 20 anos de prisão. A União Européia, que jamais compactuou com o bloqueio americano, protestou contra a repressão em termos inequívocos. O abuso ultrapassou até os limites éticos de personalidades como os escritores José Saramago e Eduardo Galeano e a cantora Mercedes Sosa, que romperam com Fidel Castro após décadas de apoio irrestrito. Mas a diplomacia brasileira ficou em silêncio.
Nos "julgamentos de Havana", uma das acusações contra o jornalista Raúl Rivero, o mais conhecido entre os condenados, era a de ter escrito "artigos subversivos" para a ONG francesa Repórteres sem Fronteiras. Logo depois da condenação, Cuba e Líbia tomaram a iniciativa de propor a suspensão da Repórteres sem Fronteiras de um comitê da ONU. A proposta foi aprovada, com o voto favorável do Brasil, que se alinhou com Arábia Saudita, China, Congo e outras ditaduras de diversos matizes ideológicos. Assim, a diplomacia brasileira "evoluiu" do silêncio para a cumplicidade ativa.
A visita presidencial a Cuba era a ocasião para a mudança de rumo. O formato da visita, estruturada em torno de acordos de cooperação econômica e técnica, traduzia a condenação brasileira ao bloqueio econômico imposto pelos EUA. A presença de Lula em Havana, ao lado de uma comitiva de empresários brasileiros, deveria funcionar como exemplo, perfurando a muralha de isolamento construída por Washington desde os tempos da Guerra Fria. O Brasil coopera com Cuba, assim como o fazem com os EUA, a China, a Rússia e a Índia; era essa a mensagem elaborada pelo governo, para horror da esclerosada direita tupiniquim que imita cada trejeito da administração Bush.
Mas essa mensagem só podia ser veiculada junto com uma outra, que afirmasse a precedência do respeito aos direitos humanos. Lula e seus assessores preferiram confraternizar com o ditador cubano. Não pronunciaram nem uma única palavra em defesa dos dissidentes condenados por falar e escrever o que pensam. Emudeceram diante dos fuzilamentos sumários, que há pouco foram "justificados" pelo embaixador Tilden Santiago. Agindo assim, inverteram o sentido da mensagem, escarneceram dos valores que orientam a política externa brasileira, e prestaram um favor inestimável aos que, no Brasil, criticam qualquer gesto que contrarie a vontade de Washington.
"Em todos os lugares, menos em Cuba, a detenção de indivíduos exige mandados de prisão e supõe processos reguladores, universalmente aceitos." Isso é o que Lula está dizendo de fato. E não apareceu ninguém no Itamaraty, onde não vigora mais a "Lei da Mordaça", para afirmar outra coisa.
A política externa é feita, antes de tudo, de palavras. A incoerência, tanto quanto a mentira, é expediente desmoralizante na esfera da diplomacia. Bush ganhou uma guerra mas perdeu a credibilidade, porque mentiu. Lula, sem o arsenal de Bush, caminha em terreno minado ao selecionar princípios segundo um estranho julgamento de conveniência. A sua mania esperta de "fatiar" os direitos humanos conforme a barba do interlocutor será cobrada em foros internacionais. Para nossa vergonha.

Demétrio Magnoli, 44, é doutor em geografia humana pela USP e editor do jornal "Mundo - Geografia e Política Internacional".


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