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São Paulo, quinta-feira, 30 de outubro de 2003

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

FHC, Lula e a "missão paulista"

O governo petista poderia ser visto como mais um episódio do processo de retomada da hegemonia política pela sociedade emergente paulista depois do ciclo militar. A aliança formada em São Paulo por ocasião da luta pela redemocratização, que poderia ser resumida na trinca "CUT-USP-Fiesp" (como sugeriu em outros tempos o sociólogo Gilberto Vasconcellos), produziu um agrupamento político no qual as diferenças entre as partes não impediram o compartilhamento de ações e de visões. Nessa perspectiva, o governo Lula seria ainda um desdobramento do projeto político modernizador que unia a frente paulista antes da expansão de seu núcleo e de sua subdivisão.
A candidatura de Fernando Henrique ao Senado, em 1978, foi um dos momentos exemplares dessa conjunção. Ali, a "intelligentsia" uspiana, a nova elite sindical e parte da avenida Paulista estavam perfeitamente representadas. Além dos anseios democráticos, esse ajuntamento político, por mais que divergisse, foi moldando um patrimônio comum de aspirações "civilizatórias", progressistas e republicanas: uma nova Constituição, desenvolvimento econômico, modernização das relações capital-trabalho, eficiência e impessoalidade na gestão da coisa pública, promoção da cidadania, redução das desigualdades etc.
O interregno entre o fim da ditadura e a chegada do primeiro representante legítimo da "missão paulista" à Presidência, precisamente o senador-sociólogo, serviu para demonstrar que a empreitada exigiria um convívio complexo com as demais forças políticas, tanto as novas como as tradicionais, ligadas à ordem pregressa e ao populismo de direita e de esquerda.
Esses embates deram mais nitidez às diferenças internas daquela antiga galáxia política -que se cristalizaram em partidos e linhas colidentes. PT e PSDB foram as formas mais acabadas da cisão da frente paulista original.
Em 1994, quando alguns imaginaram que a candidatura de FHC pudesse propiciar uma quase natural aliança de centro-esquerda com o PT, reunindo, em novas circunstâncias, os amigos de outros tempos, eis que o príncipe havia decidido apostar na atração da centro-direita para consolidar seu projeto, que, no final das contas, prenunciado de forma selvagem por Fernando Collor de Mello, passava por um "upgrade" na inserção do país na nova ordem global -o que ao PT, àquela altura, ainda soava como mero entreguismo "neoliberal".
Ficaram, assim, os antigos aliados fazendo o papel de situação e oposição. FHC fez o que se sabe: "paulistizou" o Brasil no bom e no mau sentido. Promoveu reformas e códigos republicanos e caiu em armadilhas liberais com patrocínio dos mercados financeiros. A Fiesp, então, tratou de aproximar-se cautelosamente de um PT que enfatizava compromissos com o emprego e a produção, com a vantagem de passar -a despeito das aparências- por um claro processo de rediscussão e moderação política.
A eleição de Lula viria para completar a metade do projeto paulista que a expedição tucana deixara por fazer: recolocar a produção no eixo da economia e integrar as massas aos benefícios do crescimento. Nada muito diferente do que a esquerda tucana de José Serra pretendia (em tese, Lula e Serra, PT e PSDB poderiam estar juntos; são muito mais próximos do que PT e PL ou PT e PTB). Até aqui, no entanto, o governo petista tem atuado aquém da fronteira a ser desbravada. Mas é cedo ainda para saber como esse incompleto ciclo paulista irá chegar ao fim.


Marcos Augusto Gonçalves é editor de Opinião. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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