São Paulo, Quinta-feira, 30 de Dezembro de 1999


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Os Jetsons

OTAVIO FRIAS FILHO

Para a geração que está hoje na meia-idade ou nos arredores dela, o ano 2000 sempre foi um marco, um divisor de águas, uma data cabalística nítida, embora longínqua nas brumas do futuro. Difícil encontrar quem, ao menos nessa geração, não soubesse de cor, desde criança, que idade teria quando ela chegasse.
De modo sorrateiro, imperceptível, injustificável até, ela está aí, a uma distância menor que 48 horas. Não adianta lembrar que o milênio ainda demora um ano para terminar; tudo são símbolos, e o símbolo máximo, em matéria de datas, é a cifra redonda e mágica na qual se projetaram tantas fantasias.
Quem assistia televisão nos anos 60 formou sua primeira imagem do ano 2000 com o desenho animado "Os Jetsons", antigo sucesso que ainda hoje pode ser visto em horários museológicos que ninguém frequenta. Na perspectiva da época, porém, o seriado parecia vibrante e futurista.
Espaçonaves em vez de carros, tubos de sucção em vez de elevadores, refeições instantâneas, portas automáticas, videofones: tudo parecia asséptico, funcional e moderno. Quase todas as engenhocas já eram tecnicamente possíveis, embora inviáveis economicamente, na época.
Mas o seriado era conservador, imobilista. Reproduzia a vida de uma família de classe média americana tal e qual ela transcorria no começo dos anos 60, modernizando apenas os apetrechos. Havia até mesmo uma empregada doméstica que, embora fosse um robô, usava avental de rendinhas.
Era o mesmo procedimento adotado em outro desenho do período, "Os Flintstones", este ambientado na Idade da Pedra. Os carros, por exemplo, não tinham piso e eram movidos pelas próprias pernas dos usuários; a agulha dos toca-discos era o bico de um pássaro amarrado ao braço do aparelho.
Os desenhos futuristas dos anos 60 não foram capazes (ou não se deram ao trabalho) de prever as maravilhas tecnológicas da nossa era, o celular, a Internet, a TV a cabo e o CD. Estavam mais preocupados em ilustrar a vida no ano 2000 com pirotecnias de apelo visual ou humorístico.
Não existem negros nesses desenhos (homossexuais, nem se fala), nem multiculturalismo, nem a caótica diversidade de roupas, cabelos, estilos musicais e formas de entretenimento que ostentamos como orgulho da nossa época de pluralismo, "criatividade" e ampliação da democracia.
Antes de condenar sua ingenuidade, entretanto, deveríamos reconhecer os dons proféticos de seus autores. PoisJetson, seu homem do ano 2000, é um infeliz metido num trabalho tedioso numa firma qualquer, espremido entre o pavor ao desemprego e uma família compulsivamente consumista.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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