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JOSÉ SARNEY
A vaca francesa
O presidente Lula fecha sua primeira viagem internacional com
um saldo de excelentes resultados.
Transformou-se num símbolo de ascensão social e de avanço da sociedade
brasileira. Bateu na ferida dos franceses quando disse a Chirac que é difícil
falar em cooperação internacional
sem dar um passo efetivo para a quebra das barreiras protecionistas. Respondeu-lhe Chirac que, para os franceses, a agricultura é cultura, na invocação da forte cultura do campo francês, a cultura da comida e, por consequência, desse patrimônio mundial
que é a culinária da França. Proteger
seus produtos agrícolas é proteger essa cultura. A frase é boa, bem francesa,
mas péssima de engolir e pior ainda de
digerir.
A abertura de mercados é dogma
dos países ricos, fundamentalismo
neoliberal. Só que a regra, como tantas
vezes tem sido ressaltado, só vale para
os outros. Para eles é erguer barreiras,
disfarçadas ou ostensivas, de modo
que os produtos primários, os únicos
com os quais eles não podem competir, sejam cada vez mais protegidos.
Como exemplo jocoso dessas regalias protecionistas, o presidente da
Nestlé, senhor Brabeck-Lemathe, disse que as vacas européias e americanas
tinham direito, segundo seus cálculos,
a uma viagem anual em primeira classe ao redor do mundo. E acrescentou:
"O subsídio para cada vaca é de US$
9.240!". E a Nestlé sabe de vaca, pois é
a maior vendedora mundial de leite.
As nossas vacas, coitadas, ficam aí
num fiado danado e do Estado não recebem nem reza.
São coisas do mundo. Se fôssemos
avaliar só a qualidade de vida, chegaríamos à conclusão de que era melhor
ser vaca na Europa do que sitiante no
Nordeste brasileiro. Esse mesmo dilema eu me vi obrigado a colocar, por
outros motivos, é bem verdade, ao
meu velho e saudoso amigo Israel Pinheiro, quando, em 1958, ao visitar eu
pela primeira vez Brasília, ele me levou a conhecer as granjas que se implantavam para abastecer a cidade
que nascia. Visitamos uma instalação
para criação de galinhas. Era um ambiente de higiene absoluta -entramos de batas brancas, sapatilhas esterilizadas, os pintos se alimentando em
comedores automáticos, água com
controle de qualidade e ração balanceada com vitaminas e sais minerais.
Ao ver aquilo, eu disse ao Israel: "É, Israel, tudo muito bem. Mas eu estou
com o sentimento de que pinto aqui
está mais bem tratado e tem vida melhor que lavrador no Maranhão".
Pintos à parte, Roberto Campos já
no fim da vida me afirmou que estava
revendo os seus conceitos sobre como
avaliar países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Para ele, calcular essa
classificação na base da renda per capita era irreal. E me disse com sarcasmo: "Para mim, hoje, país desenvolvido é aquele que tem boa culinária.
Aquele arroz-de-cuxá de vocês no
Maranhão é Primeiro Mundo".
Pelo visto, Chirac está nessa tese. A
cultura da comida é marca da cultura
francesa. O Homo sapiens não tem
feito outra coisa senão procurar sofisticar sua alimentação. Fazer tudo para
comer bem. Palmas para os franceses,
pioneiros no ramo.
Mas isso não tem nada com a vaca
francesa, que, por nossa conta, viaja
em primeira classe ao redor do mundo. Os porcos franceses, também, não
ficam atrás. Há subsídios, não para
criar porcos, mas para não criar porcos. Uma passagem econômica para
cada porco não criado!
Assim, o nosso porco vivo vale menos do que o porco virtual francês. É a
lógica do mercado.
Não é mole o neoliberalismo.
José Sarney escreve nesta coluna às sextas-feiras.
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