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São Paulo, sexta-feira, 31 de janeiro de 2003

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JOSÉ SARNEY

A vaca francesa

O presidente Lula fecha sua primeira viagem internacional com um saldo de excelentes resultados. Transformou-se num símbolo de ascensão social e de avanço da sociedade brasileira. Bateu na ferida dos franceses quando disse a Chirac que é difícil falar em cooperação internacional sem dar um passo efetivo para a quebra das barreiras protecionistas. Respondeu-lhe Chirac que, para os franceses, a agricultura é cultura, na invocação da forte cultura do campo francês, a cultura da comida e, por consequência, desse patrimônio mundial que é a culinária da França. Proteger seus produtos agrícolas é proteger essa cultura. A frase é boa, bem francesa, mas péssima de engolir e pior ainda de digerir.
A abertura de mercados é dogma dos países ricos, fundamentalismo neoliberal. Só que a regra, como tantas vezes tem sido ressaltado, só vale para os outros. Para eles é erguer barreiras, disfarçadas ou ostensivas, de modo que os produtos primários, os únicos com os quais eles não podem competir, sejam cada vez mais protegidos.
Como exemplo jocoso dessas regalias protecionistas, o presidente da Nestlé, senhor Brabeck-Lemathe, disse que as vacas européias e americanas tinham direito, segundo seus cálculos, a uma viagem anual em primeira classe ao redor do mundo. E acrescentou: "O subsídio para cada vaca é de US$ 9.240!". E a Nestlé sabe de vaca, pois é a maior vendedora mundial de leite. As nossas vacas, coitadas, ficam aí num fiado danado e do Estado não recebem nem reza.
São coisas do mundo. Se fôssemos avaliar só a qualidade de vida, chegaríamos à conclusão de que era melhor ser vaca na Europa do que sitiante no Nordeste brasileiro. Esse mesmo dilema eu me vi obrigado a colocar, por outros motivos, é bem verdade, ao meu velho e saudoso amigo Israel Pinheiro, quando, em 1958, ao visitar eu pela primeira vez Brasília, ele me levou a conhecer as granjas que se implantavam para abastecer a cidade que nascia. Visitamos uma instalação para criação de galinhas. Era um ambiente de higiene absoluta -entramos de batas brancas, sapatilhas esterilizadas, os pintos se alimentando em comedores automáticos, água com controle de qualidade e ração balanceada com vitaminas e sais minerais. Ao ver aquilo, eu disse ao Israel: "É, Israel, tudo muito bem. Mas eu estou com o sentimento de que pinto aqui está mais bem tratado e tem vida melhor que lavrador no Maranhão".
Pintos à parte, Roberto Campos já no fim da vida me afirmou que estava revendo os seus conceitos sobre como avaliar países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Para ele, calcular essa classificação na base da renda per capita era irreal. E me disse com sarcasmo: "Para mim, hoje, país desenvolvido é aquele que tem boa culinária. Aquele arroz-de-cuxá de vocês no Maranhão é Primeiro Mundo".
Pelo visto, Chirac está nessa tese. A cultura da comida é marca da cultura francesa. O Homo sapiens não tem feito outra coisa senão procurar sofisticar sua alimentação. Fazer tudo para comer bem. Palmas para os franceses, pioneiros no ramo.
Mas isso não tem nada com a vaca francesa, que, por nossa conta, viaja em primeira classe ao redor do mundo. Os porcos franceses, também, não ficam atrás. Há subsídios, não para criar porcos, mas para não criar porcos. Uma passagem econômica para cada porco não criado!
Assim, o nosso porco vivo vale menos do que o porco virtual francês. É a lógica do mercado.
Não é mole o neoliberalismo.


José Sarney escreve nesta coluna às sextas-feiras.


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