São Paulo, quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

País ameaçado

CRISTOVAM BUARQUE

Se algum país quisesse dominar o Brasil no século 21, não teria estratégia melhor do que abandonar a educação de nosso povo

O BRASIL está ameaçado pela "invasão" de um exército de 72 milhões de adultos. São os eleitores sem o ensino fundamental completo. Adultos que aqui nasceram e, sem nenhuma culpa, serão agentes da desagregação nacional nas próximas décadas. Por causa dessa "invasão", dentro de 30 anos estaremos ainda mais mergulhados na violência, na corrupção, na baixa produtividade, na falta de capacidade para criar capital/conhecimento, nas desigualdades social e regional.
Não foi a Abin, nem as Forças Armadas, nem a Polícia Federal que identificou a ameaçadora "invasão" que o Brasil sofre: foi o TSE, ao mostrar que são 104 milhões os eleitores sem o ensino médio completo, dos quais 28,8 milhões são analfabetos ou apenas sabem ler e 72 milhões não concluíram o ensino fundamental.
E esses dados não mostram que raros dos que concluíram o ensino médio tiveram cursos com a qualidade que os tempos atuais exigem, para a pessoa e o país. Mesmo que os dados não sejam exatos (são do momento do cadastramento do eleitor, sem estudos continuados posteriores), eles confirmam uma realidade conhecida.
Se algum país quisesse dominar o Brasil no século 21, não teria estratégia melhor do que abandonar a educação de nosso povo, como nossos próprios dirigentes fizeram ao longo de décadas. Nas próximas, essa situação vai trazer conseqüências catastróficas para o país.
Na democracia: o eleitor sabe votar corretamente, independentemente do grau de instrução, mas, sem educação, não tem alternativas de emprego ou renda, precisa de soluções imediatas para seus problemas. Em vez de votar em um candidato que propõe mudar o quadro futuro da saúde, vota naquele que lhe oferece uma caixa com o remédio para resolver sua doença atual. É um voto inteligente, mas que leva à fragilidade da democracia e ao aumento da corrupção.
Corrupção: a eleição democrática por um eleitorado sem alternativa induz à compra e à venda de votos, daí ao descompromisso do eleito com o eleitor e ao uso do cargo em benefício próprio. O eleitor não tem qualificação e perde o direito de cobrar do seu representante.
Economia: não há futuro para a economia sem mão-de-obra altamente qualificada, com trabalhadores preparados para usar instrumentos modernos. Também não há futuro para a economia que não é capaz de criar capital-conhecimento. Se toda a população jovem não estiver bem educada para fornecer quadros competentes às universidades, estas não desenvolverão o capital-conhecimento com base na ciência e nas técnicas de nível superior que o mundo moderno exige.
Emprego: a economia está trocando operários por operadores. Em vez de formar um operário com um simples curso, é preciso formar um operador de ferramentas inteligente, usando computadores. Isso exige um bom segundo grau completo, idiomas estrangeiros, inclusão digital.
Segurança: é possível que a maldade seja uma característica mais comum entre os educados do que entre os iletrados. Mas, sem alternativas de emprego, estes últimos ficam sem renda para sobreviver e mais facilmente caem na tentação de pequenos crimes -se ficarem impunes, terão incentivo à criminalidade; se forem presos, cairão nas universidades do crime que são as cadeias.
Desigualdade: os dados do TSE não mostram a desigualdade entre o nível de educação do eleitor pobre e o do eleitor rico, mas mostra a desigualdade regional no acesso à educação. O aumento da desigualdade entre as pessoas e entre as regiões será uma das conseqüências previsíveis dos dados divulgados. Alguns conseguem educar-se, têm alternativas, empregos, renda. Outros ficam excluídos.
O pior é que os educados não despertam para os riscos que o país corre. Uma parte nem deseja mudanças, outra defende o voto dos analfabetos sem defender a erradicação do analfabetismo; defende que o capital do patrão deve passar às mãos dos trabalhadores, mas não defende que a escola do filho do operário seja tão boa quanto a escola do filho do patrão, como venho defendendo. O governo Lula continua essa tradição da esquerda generosa, mas não transformadora.
Aos eleitores sem alternativas por falta de educação devemos perdoar suas opções eleitorais, aos eleitores educados não há perdão pela imoral tolerância com a mãe de todos os problemas: o abandono da educação.
Talvez a "CPI do Apagão Educacional" que o presidente do Senado, Garibaldi Alves, se comprometeu a implantar neste primeiro semestre possa servir para acordar o Brasil do risco que nos ameaça.


CRISTOVAM BUARQUE, 63, doutor em economia, é professor da UnB (Universidade de Brasília) e senador da República pelo PDT-DF. Foi reitor da UnB (1985-1989), governador do Distrito Federal pelo PT (1995-98) e ministro da Educação (2003-04).

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