|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
País ameaçado
CRISTOVAM BUARQUE
Se algum país quisesse dominar o Brasil no século 21, não teria estratégia melhor do que abandonar a educação de nosso povo
O BRASIL está ameaçado pela
"invasão" de um exército de 72
milhões de adultos. São os eleitores sem o ensino fundamental completo. Adultos que aqui nasceram e,
sem nenhuma culpa, serão agentes da
desagregação nacional nas próximas
décadas. Por causa dessa "invasão",
dentro de 30 anos estaremos ainda
mais mergulhados na violência, na
corrupção, na baixa produtividade, na
falta de capacidade para criar capital/conhecimento, nas desigualdades
social e regional.
Não foi a Abin, nem as Forças Armadas, nem a Polícia Federal que
identificou a ameaçadora "invasão"
que o Brasil sofre: foi o TSE, ao mostrar que são 104 milhões os eleitores
sem o ensino médio completo, dos
quais 28,8 milhões são analfabetos ou
apenas sabem ler e 72 milhões não
concluíram o ensino fundamental.
E esses dados não mostram que raros dos que concluíram o ensino médio tiveram cursos com a qualidade
que os tempos atuais exigem, para a
pessoa e o país. Mesmo que os dados
não sejam exatos (são do momento do
cadastramento do eleitor, sem estudos continuados posteriores), eles
confirmam uma realidade conhecida.
Se algum país quisesse dominar o
Brasil no século 21, não teria estratégia melhor do que abandonar a educação de nosso povo, como nossos
próprios dirigentes fizeram ao longo
de décadas. Nas próximas, essa situação vai trazer conseqüências catastróficas para o país.
Na democracia: o eleitor sabe votar
corretamente, independentemente
do grau de instrução, mas, sem educação, não tem alternativas de emprego
ou renda, precisa de soluções imediatas para seus problemas. Em vez de
votar em um candidato que propõe
mudar o quadro futuro da saúde, vota
naquele que lhe oferece uma caixa
com o remédio para resolver sua
doença atual. É um voto inteligente,
mas que leva à fragilidade da democracia e ao aumento da corrupção.
Corrupção: a eleição democrática
por um eleitorado sem alternativa induz à compra e à venda de votos, daí
ao descompromisso do eleito com o
eleitor e ao uso do cargo em benefício
próprio. O eleitor não tem qualificação e perde o direito de cobrar do seu
representante.
Economia: não há futuro para a
economia sem mão-de-obra altamente qualificada, com trabalhadores
preparados para usar instrumentos
modernos. Também não há futuro
para a economia que não é capaz de
criar capital-conhecimento. Se toda a
população jovem não estiver bem
educada para fornecer quadros competentes às universidades, estas não
desenvolverão o capital-conhecimento com base na ciência e nas técnicas de nível superior que o mundo
moderno exige.
Emprego: a economia está trocando operários por operadores. Em vez
de formar um operário com um simples curso, é preciso formar um operador de ferramentas inteligente,
usando computadores. Isso exige um
bom segundo grau completo, idiomas
estrangeiros, inclusão digital.
Segurança: é possível que a maldade seja uma característica mais comum entre os educados do que entre
os iletrados. Mas, sem alternativas de
emprego, estes últimos ficam sem
renda para sobreviver e mais facilmente caem na tentação de pequenos
crimes -se ficarem impunes, terão
incentivo à criminalidade; se forem
presos, cairão nas universidades do
crime que são as cadeias.
Desigualdade: os dados do TSE não
mostram a desigualdade entre o nível
de educação do eleitor pobre e o do
eleitor rico, mas mostra a desigualdade regional no acesso à educação. O
aumento da desigualdade entre as
pessoas e entre as regiões será uma
das conseqüências previsíveis dos dados divulgados. Alguns conseguem
educar-se, têm alternativas, empregos, renda. Outros ficam excluídos.
O pior é que os educados não despertam para os riscos que o país corre.
Uma parte nem deseja mudanças, outra defende o voto dos analfabetos
sem defender a erradicação do analfabetismo; defende que o capital do patrão deve passar às mãos dos trabalhadores, mas não defende que a escola do filho do operário seja tão boa
quanto a escola do filho do patrão, como venho defendendo. O governo Lula continua essa tradição da esquerda
generosa, mas não transformadora.
Aos eleitores sem alternativas por
falta de educação devemos perdoar
suas opções eleitorais, aos eleitores
educados não há perdão pela imoral
tolerância com a mãe de todos os problemas: o abandono da educação.
Talvez a "CPI do Apagão Educacional" que o presidente do Senado, Garibaldi Alves, se comprometeu a implantar neste primeiro semestre possa servir para acordar o Brasil do risco
que nos ameaça.
CRISTOVAM BUARQUE, 63, doutor em economia, é professor da UnB (Universidade de Brasília) e senador da República pelo PDT-DF. Foi reitor da UnB (1985-1989), governador do Distrito Federal pelo PT (1995-98) e ministro da Educação (2003-04).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Ricardo Abramovay: Entre responsabilidade e retórica
Índice
|