São Paulo, sábado, 31 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os médicos recém-formados devem passar por um exame de ordem ou similar?

NÃO

Exame só ataca o sintoma

GIOVANNI GUIDO CERRI

Implantar um exame para avaliação dos médicos formados, similar ao da OAB, não é a solução para o problema que há muito vem sendo denunciado por quem se preocupa com a situação do ensino médico e da saúde no país. A realidade todos conhecem: excesso de escolas médicas, com baixo nível de qualificação, má distribuição da rede de ensino e concentração de profissionais nas regiões Sul e Sudeste.
Não me cabe analisar a estrutura do direito no país nem julgar se o exame da OAB foi a melhor solução para os profissionais da área.
Formar um médico exige uma preparação diferenciada para salvar vidas. A começar pelo seu vestibular e duração do processo de sua formação, exige-se do estudante dedicação exclusiva durante o curso, com bons professores, atividades práticas, treinamento em serviço, aprendizado junto ao paciente, bibliotecas e muito estudo. Concluído o período de seis anos, o médico tem de se submeter a um programa de residência médica de, no mínimo, mais dois anos, além de participar de um processo contínuo de atualização, que envolve a participação em eventos, exaustivos plantões e atendimento nos serviços de emergência e pronto-socorro.
Uma escola médica sempre deve estar ligada a um hospital cuja filosofia de trabalho priorize o ensino e o atendimento, sem abrir mão do princípio da qualidade e do respeito ao paciente.
Em todo o país, dos 116 cursos de medicina, 27 são mantidos pelo poder público e estão ligados a hospitais públicos, outros cursos estão ligados a hospitais filantrópicos e entidades que atendem as camadas de baixa renda, nos quais se apóiam para programas de ensino médico e oferecem atendimento de qualidade. Mas a maioria não possui hospital universitário próprio.
A medicina é uma ciência dinâmica e vive um processo contínuo de atualização, de descobertas, de pesquisas e desenvolvimento de novas tecnologias. Acompanhar o seu desenvolvimento nas últimas décadas é tarefa que exige tenacidade. A prevenção, a profilaxia, a evolução da técnica cirúrgica, os métodos diagnósticos, as cirurgias minimamente invasivas trouxeram uma nova realidade para a conduta do médico. Por isso, o ensino médico na atualidade exige grandes investimentos, não só materiais, mas no homem.
Hoje o Brasil disponibiliza, em 127 escolas em funcionamento, mais de 10 mil vagas, das quais 70% nas regiões Sul e Sudeste. Algumas dessas escolas abrem as inscrições para o vestibular sem ao menos terem o reconhecimento aprovado e criam um fato consumado. Ao sabor de lobbies poderosos, vão quebrando resistências e o curso se institui. Exigências elementares, como um corpo docente graduado e preparado ou um hospital para treinamento dos acadêmicos, ficam só no pedido original.
Falar em exame para médicos é esquecer a causa da doença e tratar o sintoma. Não adianta punir o aluno e continuar premiando instituições que só visam lucro ou que oferecem ensino de má qualidade. Se existe uma situação de falência na formação do médico, o culpado não é o acadêmico, mas a estrutura por trás de sua formação.
Para atender a políticas equivocadas, permitiu-se a abertura indiscriminada de escolas médicas em todo o país, sem preocupações com a qualidade, e, apesar do empenho das entidades médicas, as iniciativas visando coibir ou melhorar esse quadro de ineficiência não encontram amparo no poder público.
Um exame de ordem dos médicos pode criar um imenso contingente de "bacharéis" para os quais foram feitos altíssimos investimentos, mas impedidos de exercer sua profissão. Ou, por outro lado, gerará uma imensa rede de "cursinhos preparatórios" para aprová-los, sem nenhuma garantia de que o profissional esteja realmente habilitado.
É preciso criar instrumentos de avaliação e fiscalização das escolas médicas, estabelecendo metas e padrões rigorosos a serem cumpridos, responsabilizando-as pela qualidade dos profissionais que diplomam e colocam no mercado. É preciso, também, que se imponham exigências para oferecer condições de aprendizado a todos que cursam escolas médicas, como forma de evitar que, na busca de um ensino adequado, o médico seja obrigado a deixar sua cidade, engrossando a estatística de mão-de-obra desempregada nas grandes capitais. Após um vestibular difícil, anos de dedicação exclusiva em um curso de medicina, uma disputada prova de residência para a realização de uma especialização, não é justo que apenas uma prova venha decidir se ele pode ou não exercer a sua profissão de médico.
O papel do médico é salvar vidas, e não se transformar no alvo de processos judiciais por imperícia ou incompetência, resultante muitas vezes de cursos deficientes, pela omissão de um controle adequado de sua infra-estrutura de ensino ou por uma política educacional equivocada que prioriza a quantidade, e não a qualidade.


Giovanni Guido Cerri, 50, é diretor da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Conselho Deliberativo do Hospital das Clínicas.


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