São Paulo, sexta-feira, 31 de agosto de 2007

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A lição da Anac

PEDRO ESTEVAM SERRANO


O modelo de agências reguladoras é pernicioso e acabou por submeter muitos serviços públicos ao jugo do interesse privado


AS RECENTES crises no Brasil têm desnudado o processo de consolidação de um modelo de país em que o governo se distancia do Estado. Este, por sua vez, volta sua atenção para regular os conflitos entre interesses privados de dados grupos e o restante da sociedade, que sucessivamente perde esses "embates".
A crise aérea é mais um capítulo dessa separação, tão bem explicitada no caso das agências reguladoras. Criado pelo governo FHC e mantido pelo governo Lula, o modelo de agências reguladoras é pernicioso e acabou por submeter muitos serviços públicos ao jugo do interesse privado.
Não se trata aqui de discutir culpas deste ou daquele, mas de evitar que o novo modelo de agência que deve emergir da crise continue o mesmo.
As agências devem cumprir o papel de fiscalizar a prestação de serviços públicos e as atividades privadas de relevante interesse social. No entanto, limitam-se apenas a obter quimericamente maior estabilidade contratual e institucional a investidores.
Exemplo emblemático dessa conduta é a reação da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) à reivindicação do ministro da Defesa, Nelson Jobim, para ampliar o espaço entre as cadeiras nas aeronaves.
Sem base em nenhum estudo tarifário, a Anac imediatamente afirmou que tal medida teria repercussão no preço das tarifas. As concessionárias de transporte aéreo nem precisaram sustentar suas posições, pois a Anac já as havia defendido, sendo porta-voz do interesse financeiro das empresas que deveria controlar.
Coube ao Ministério da Justiça abrir investigação em favor dos usuários dos serviços de transportes aéreos. Louvável atitude. Mas não seria essa a função primeira da Anac?
O senso comum diz que é fundamental preservar a autonomia das agências reguladoras para que cumpram seu papel adequadamente. Mas não é a isso que temos assistido.
A autonomia mais ampla (equivocadamente chamada de independência) é obtida pela conferência de mandatos às respectivas diretorias e conselhos, bem como por amplos poderes regulatórios emprestados a esses órgãos.
As funções relevantes de gerenciamento contratual nas concessões públicas e de poder de polícia sobre atividades econômicas privadas de relevo social -antes exercidas por órgãos comandados por agentes nomeados e demissíveis pelo presidente da República- passaram a ser exercidas pelas agências. O mesmo ocorreu com a fixação de normas para prestação do serviço público, antes fixadas pelo Legislativo e pelo Executivo. Com isso, se substituiria a "politicagem partidária" e ideológica pela suposta "isenção técnica moderna".
Pretensamente, oferece-se distanciamento político, como se esse insulamento fosse algo possível e como se o atual processo de indicação não sofresse contaminação.
Em outras palavras, quando os interesses privados são contrariados, o problema é o excesso de politização das agências reguladoras; quando o interesse público é contrariado, comemora-se, pois é reflexo das decisões "técnicas" e da independência dos órgãos de regulação.
Criamos um verdadeiro Estado paralelo, com precípua tarefa de realizar funções administrativa, legislativa e jurisdicional no ambiente de interesses dos agentes econômicos privados incumbidos da prestação de serviços públicos, sem nenhuma preocupação com a estabilidade das instituições republicanas nacionais.
Para a sociedade, o Estado lento, o Legislativo inerte, a Justiça morosa; para os interesses privados específicos, as agências reguladoras, os legisladores próprios e os mecanismos de arbitragem.
A conclusão inescapável é a de que as agências submetidas a um modelo em que não são controladas por mecanismos políticos republicanos acabam se transfigurando em instrumento dos interesses privados que deveriam controlar.
Investir no país é comprometer-se com o desenvolvimento integral de nossas instituições e sociedade. Nenhum investidor sério desconhece essa realidade negada pela tecnocracia.
Estado e governo são fenômenos indissociáveis -um não existe ou funciona sem o outro e ambos não se desenvolvem sem evolução do todo social. Enquanto ficarmos resolvendo parte do problema, o todo seguirá em crise e a almejada estabilidade dos contratos será um mero sonho tecnocrático.

PEDRO ESTEVAM SERRANO , 44, advogado, mestre e doutorando em direito do Estado, é professor da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). É autor de "O Desvio de Poder na Função Legislativa".

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