São Paulo, quarta-feira, 31 de outubro de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Ameaça à verdade eleitoral

LEONEL BRIZOLA

Não é raro que a tolice caminhe sob o disfarce da pretensão. É o que tem acontecido com muita gente que, quando apontamos a inconfiabilidade das urnas eletrônicas utilizadas nas eleições brasileiras, reage com argumentos pueris e superficiais, procurando desclassificar as críticas sob o argumento da "modernidade" e da velocidade que os computadores permitem.
Ora, só mesmo um tolo para negar que a informática possa oferecer meios para um processo eleitoral com segurança e rapidez. Mas é preciso alguém muito mais tolo para não ver que, sem mecanismos de auditagem e de controle, o uso de computadores e programas obscuros possa permitir fraudes que fariam parecer obsoletos os fraudadores a bico-de-pena da República Velha.
O que ocorre hoje? O cidadão chega à urna e aperta os botões. Surge a foto do candidato, posada e simpática, e, então, o eleitor confirma o voto. Sai contente: cumpriu o seu dever e manifestou a sua vontade. O voto está dado àquele que escolheu. Será? O que garante? O voto, no atual sistema, é virtual, imaterial. Desaparece numa soma cuja exatidão não pode ser conferida, pois desapareceram as parcelas. Nem mesmo o registro magnético individual do voto permanece: por causa do sigilo do voto, não é possível gravar que o cidadão tal, portador do título tal, votou no candidato tal.
Ainda que os programas fossem abertos aos partidos -e não o são totalmente-, não seria possível garantir nada. Alguém imagina que um banco não possa conferir o dinheiro remanescente num caixa eletrônico para verificar se o total é compatível com as operações ali realizadas e registradas ao longo do dia? O surgimento de uma eventual divergência entre o dinheiro "eletrônico" e o real não seria objeto de investigação?
Ora, salta aos olhos de qualquer um que é preciso existir a possibilidade de conferir se o resultado eletrônico fornecido pela urna informatizada corresponde aos votos dados pelos eleitores. Essa garantia não pode ser subjetiva, não pode se resumir à simples afirmação de um técnico -os juízes não têm sequer as ferramentas de conhecimento para fazê-lo- de que aquilo é a verdade e todos devem acatá-la.
Talvez alguns se recordem de um antigo comercial de eletrodomésticos onde um espertalhão bem falante assegurava a qualidade de um aparelho "importado" ao dizer: "La garantia soy yo!"
Bem, o que acontece então com os resultados supostamente corretos saídos das urnas? São despejados num sistema gigantesco de totalização, que junta indiscriminadamente os votos do Oiapoque aos votos do Chuí. Aos partidos é permitido fiscalizar? É, mas uma fiscalização impossível em termos práticos.


Ser democrata não é uma simples definição, é uma ação permanente em defesa da vontade popular


É como se oferecessem um lote com dezenas de milhares de urnas e dissessem: "Tomem, descubram quais são essas urnas, confiram com o resultado que o seu fiscal obteve no local e vejam se está certo; vocês têm três dias para, discordando, formalizar a queixa. E com provas". Caricato? Então caricata é a realidade do nosso processo eleitoral.
Mas não param aí os problemas. Há um outro, muito grave, gravíssimo, que por si só já seria motivo de escândalo. O tribunal sequer abre aos partidos a totalidade dos programas contidos na urna. Seja sob a alegação de tratar-se de programa comercial, o que violaria o "segredo" industrial do fabricante, seja por realizarem a criptografia dos resultados.
E quem faz esses programas? Um órgão chamado Cepesq, que era subordinado ao SNI e hoje é subordinado à Abin, vinculando-se, portanto, ao Palácio do Planalto!
O PDT, com a ajuda de uns poucos homens públicos e de vários técnicos do setor, vem denunciando esse absurdo. Tenho empenhado todos os esforços para fazer o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) -o ministro Nelson Jobim, em especial, a quem caberá presidir o processo de escolha do novo presidente- ver que, mantido o atual sistema, nossas eleições estarão escancaradas à fraude e à manipulação. Os exemplos de fraudes eletrônicas, desde aquela embrionária que vivi no episódio Proconsult, há quase 20 anos, não nos dão mais o direito de sermos ingênuos e pueris.
O que mais, depois de episódios como o do painel do Senado, pode ainda ser alegado para que nos prostremos como adoradores da suposta honestidade infalível dos sistemas eletrônicos?
Apresentamos propostas concretas ao TSE. Uma delas é o acoplamento de uma pequena impressora à urna eletrônica, a qual depositaria automaticamente a cédula num recipiente inviolável e permitiria ao eleitor visualizar o voto. Para auditar o resultado eletrônico, poderíamos conferir o voto material. Será que veremos a alegação de falta de recursos para algo que não custa mais do que 5% ou 10% do valor das urnas? Ora, em poucos anos, bilhões e bilhões foram gastos para informatizar, a toque de caixa, as eleições no país.
Ser democrata não é uma simples definição, é uma ação permanente em defesa da vontade popular.
Os candidatos têm passado ao largo dessa questão vital. É compreensível que os governistas e os beneficiários do poder o façam. Mas é insólito que os que dizem ter vindo para mudar estejam colocando placidamente sua cabeça sob a lâmina da fraude.


Leonel de Moura Brizola, 79, engenheiro, é presidente nacional do PDT. Foi governador do Rio Grande do Sul (1959-63) e do Rio de Janeiro (1983-87 e 1991-94).


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