São Paulo, quinta-feira, 31 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Saúde

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

Na alvorada de um novo governo, que priorizará as políticas públicas, é oportuno refletir sobre a complexa questão da saúde brasileira com um olhar neutro, histórico e estrutural, para suscitar discussão informada das estratégias que serão propostas e implementadas.
Nos anos 80, com a implantação do Suds na prática e do SUS na Constituição, formulou-se política coerente com as necessidades do país: descentralização, universalização e hierarquização de ações. Ainda que com assimetria regional, começou a incorporação dos desassistidos e a adesão da classe média ao sistema público, os orçamentos aumentaram e os índices de morboletalidade iniciaram uma tendência de queda real.
A partir dos anos 90 começou, orientada pelos interesses do capital, a contra-reforma assumida pelos governos que se sucederam -que vêm, dentro da filosofia liberal, retirando sua responsabilidade sobre a saúde, abrindo espaços de ganhos financeiros atrativos para o setor privado e privatizando até hospitais públicos. O "Estado de bem-estar social" passou a ser o grande e utópico vilão, a política de saúde tornou-se submissa à virtuosa estratégia monetarista e o desmonte se fez facilmente, pois o povo brasileiro não chegou a sentir o sabor do bem-estar social.
O arcabouço do SUS resiste, combalido, mas o sistema público retraiu-se, recentralizou-se e foi se tornando uma série de subprogramas e campanhas verticais, fragmentados, episódicos, que confundem e impedem a atenção contínua, integral e o acesso universal.
Nessa colcha de retalhos há programas como o PAB (R$ 0,80 por habitante ao mês para "medicina preventiva", repassados para os municípios -saúde pobre para os pobres); há outros, corretos, como o de medicamentos para Aids, mas parciais, pois deixam de lado centenas de doenças e milhares de doentes; ou o de médicos de família, que se expande, mas não tem como referenciar os doentes no sistema caótico existente; ou os genéricos, cujo preço é ainda muito superior ao possível, o que vem permitindo altos lucros às indústrias, mas impedindo a agregação das classes mais baixas ao mercado.
A questão nuclear da política de medicamentos, entretanto, está na submissa Lei das Patentes de 1997. O governo cedeu no atacado, para depois brigar no varejo, enquanto a indústria farmoquímica migrou do país, aumentando o nosso desemprego, e o preço dos remédios subiu acima da inflação.
Como resultado, temos hoje um sistema de saúde dual: correto na Constituição (o governo tentou alterá-la, não conseguiu) e deficiente na prática, apesar dos recentes esforços para melhorá-lo. Para avaliá-lo, não podemos nos iludir com a quantidade dos atendimentos que, mesmo numerosos, são insuficientes para chegar à universalidade, ou com os propagados aumentos de esperança média de vida ou diminuição da mortalidade infantil, que melhoram no mundo inteiro, há muitas décadas, graças à quase involuntária absorção de novas tecnologias.
O fato é que estes e outros indicadores de saúde são piores e caem mais lentamente no nosso país do que em outros da América Latina com a mesma renda per capita. Para exemplos dramáticos, não precisamos ir ao sertão do Nordeste, estão aí as epidemias e endemias, o aumento da letalidade por tuberculose ou e as mortalidades materna e por câncer de colo uterino, que vêm crescendo em São Paulo.


Saúde não é coisa barata nem simples. Precisamos de uma política que se desprenda dos jogos político-partidários


O sistema deve ser avaliado, também, pelas suas características de acolhimento e acesso; e aí as dificuldades são dramáticas. Em alguns hospitais de referência, o sistema público se protege com vernizes de modernidade, através da marcação de consultas por telefone e informatizada, jogando a demanda reprimida para dentro das casas dos indefesos doentes pobres, que acabam procurando o sistema de saúde só em situações de desespero. Prova disso está em São Paulo, onde, em 2001, houve 652 mil atendimentos ambulatoriais e 1,2 milhão de emergências -um absurdo.
Não é à toa, portanto, que no IDH estamos em 69º lugar e em situação ainda pior na saúde. O próprio capitalismo internacional percebeu que exagerou. Em estudo apresentado por J. Sacks, no Fórum Econômico de Nova York este ano, concluíram que, com US$ 57 bilhões a mais por ano em saúde, os países em desenvolvimento poderiam evitar a perda de 330 milhões de anos de vida produtiva e de US$ 186 bilhões.
É tudo muito constrangedor, mas mostra que na saúde se encontra a maior oportunidade de progresso social, se a administrarmos bem e saltarmos o fosso entre tudo o que sabemos e podemos fazer e o pouco que fazemos, principalmente aos usuários do SUS.
Um bom recomeço seria respeitar a Constituição de 88, valorizar os recursos humanos e aplicar um pouco mais de recursos financeiros sem impostos em cascata, como o da CPMF, que acabou por não aumentar as verbas da saúde, ou a emenda constitucional nº 29, de 13/09/00, que está na direção correta, porém é lenta e insuficiente.
Mas, acima de tudo, usando-os com competência e criatividade, descentralizando-os para os gestores locais, com avaliação e supervisão contínuas e acabando com a promiscuidade entre público e privado, sempre lesiva para o primeiro, traçando uma linha honesta, sem maniqueísmo, entre um e outro.
Existem exemplos de que isso é possível. O discurso preventivo precisa deixar de ser excludente (prevenção barata para os pobres, mercadoria de difícil acesso para a classe média e sofisticada para os ricos), deixar de ser parcial, vertical e episódico e virar uma atenção primária moderna e eficiente nos centros de saúde, com integração de ações e delegação de funções, para permitir a integralidade e a universalidade. Em duas palavras: estruturar o sistema, fazendo da atenção primária seu ponto nevrálgico, e descentralizá-lo, assumindo o ministério e secretarias estaduais o papel normatizador e controlador perdidos.
Quando isso ocorrer, os agentes de saúde e o programa Médico da Família ganharão em eficiência, pois terão como referenciar os tratamentos mais complexos; epidemias serão prevenidas e mortalidades como a materna ou por certos tipos de câncer tenderão a sumir.
Saúde não é coisa barata nem simples, e não é possível fazer milagres. Precisamos de uma política que se desprenda dos jogos político-partidários, com princípios universais e prática nacional, não apenas reagindo aos fatos de forma emergencial, mas com programação estrutural que se antecipe a eles para garantir a ética e a eficiência do sistema privado e a organização e o aprimoramento do sistema público, que é pré-pago pelos impostos.


José Aristodemo Pinotti, 67, professor titular e chefe do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Medicina da USP, foi eleito deputado federal pelo PMDB-SP.


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