São Paulo, segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

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ALBA ZALUAR

Presente do bem

UMA DAS BUSCAS da humanidade é se opor sem se massacrar, e se dar sem se sacrificar. Segundo Marcel Mauss, aqui estaria um dos segredos permanentes da sabedoria e da solidariedade nos povos primitivos.
No entanto, é na história recente, especialmente na cristandade, que o dar torna-se um imperativo renovado a cada ano. Sem falar do hibridismo pagão-cristão de Papai Noel, nem do consumismo desenfreado desta época do ano, ainda resta lembrar que a reciprocidade dar, receber, retribuir continua presente nas sociedades contemporâneas.
O presente, quando dado para criar, reforçar ou expressar relações afetivas, tece laços sem os quais não existe sociedade nem comunidade. Mas o presente pode estar envenenado; pode esconder um exército armado para vencer pela destruição um inimigo nunca esquecido. O presente, por criar dívidas, também pode ser usado para escravizar e manipular os mais fracos. No Natal, a idéia talvez seja livrar os humanos do lado perverso do presente.
Para conseguir isso, é preciso lembrar sempre que Cristo sofreu e morreu por toda a humanidade, numa tentativa de apaziguá-la.
Naquela época, as coletividades se uniam para delas extirpar os estranhos que supostamente ameaçavam a ordem interna. Seus instrumentos eram os linchamentos físicos e morais, o terrorismo, os genocídios ou as limpezas étnicas.
Então o mal era atribuído a qualquer coisa ou pessoa, quase sempre inocente, que pudesse ser colocada no lugar do contágio a ser evitado.
Então?
Todo ano, a troca de presentes tem o objetivo de afastar o mal de forma positiva, pelo exercício do bem. Todo ano, a casa de cada festa torna-se o lugar do encontro com o amor, "pois não é no templo, na pedra, nem no sábado que se garante a presença de Deus", ou seja, do amor e da justiça. "É abraçando o irmão que vejo que abraço a Deus, que não vejo."
Ainda falta muito para que, ao sair de uma dessas festas abarrotadas de pessoas e presentes, não me depare com um menino de quatro anos num farol pedindo esmola. De gorro de Papai Noel, perto da árvore de Natal da Lagoa. Não deu para abraçá-lo nem presenteá-lo: tive medo. Mas "se encontrardes um irmão em necessidade e fechardes o coração, como poderá estar nele o amor de Deus?"
E o muito que falta pode ser feito pela ação do Estado e seus (bons) serviços públicos, inclusive os programas de combate à pobreza que não contenham o veneno da manipulação política. Mas também pelas suas instituições de pena e castigo em nome de toda a sociedade, superando a vingança pessoal e de pequenos grupos, sempre a escolher bodes expiatórios inocentes.


ALBA ZALUAR escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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