São Paulo, segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Fim de ano: passado e futuro

BORIS FAUSTO

Há boas razões para ler com reservas as projeções indicativas do que será o mundo daqui a 50 anos, para não falar em séculos

COMO NINGUÉM ignora, o passado é o terreno próprio do historiador. Não é um terreno sólido, pronto a ser decifrado, desde que se utilizem os métodos adequados, como pensaram os positivistas no século 19. O passado se move, como o globo terrestre, entre outros fatores, em função das interpretações formuladas em épocas diversas, das propensões de cada historiador, da acessibilidade de novas fontes.
Para ficar num exemplo contemporâneo, nos últimos dez ou 15 anos, a história da União Soviética vem sendo mais bem conhecida graças não só a arquivos que burocratas russos em boa hora preservaram mas também à memória oral -o medo diminuiu e as pessoas, mesmo com reticências, começaram a falar do passado. Assim, vem sendo possível conhecer em toda sua dimensão a figura espantosa de Stálin, as minúcias dos campos de internamento (Gulag), assim como a intimidade da corte; ou levantar o véu que encobria a vida devassada da família e do cidadão comum.
Ao mesmo tempo, a imaginação é um elemento constitutivo de boa parte dos mergulhos no passado, seja nos textos que se referem a épocas remotas, seja nos que lidam com épocas recentes. Desse modo, a reconstituição da história de povos da chamada Antigüidade se faz em boa parte pela via de fragmentos materiais -inscrições, objetos etc.-, num trabalho em que a formulação de hipóteses prováveis para a identificação de usos, costumes e rituais tem um papel relevante.
A imaginação nutre também a história contrafatual (a que poderia ter sido) de qualquer época, incidindo com particular brilho na história contemporânea. Por exemplo, o que teria ocorrido se as tropas alemãs tivessem ocupado Moscou, como quase chegou a acontecer, ou chegassem a desembarcar na Inglaterra enquanto tentavam demolir o país com incessantes bombardeios na Segunda Guerra Mundial? O que teria acontecido se, em outubro de 1962, Kruschev não recuasse, após semanas de suspense, retirando os mísseis nucleares instalados em Cuba, num dos episódios mais dramáticos da Guerra Fria? Como estaríamos hoje se a ação terrorista do 11 de Setembro tivesse sido desbaratada durante seus preparativos?
Por outro lado, a grande maioria dos historiadores se recusa -ou pelo menos hesita- a penetrar no futuro -um terreno gelatinoso que não lhes é próprio. Aí parecem acompanhar a sabedoria popular: "O futuro a Deus pertence". Mas, como o poeta Drummond, num belo verso, lembrou que "o último dia do ano não é o último dia do tempo", quem sabe valha a pena imaginar o que nos reserva o futuro, pensado em sentido coletivo.
Esse exercício pode ser feito de várias maneiras, seja pela lente das projeções tidas como científicas, seja pelas lentes da imaginação. Há boas razões para ler com reservas as projeções indicativas do que será o mundo daqui a 50 anos, para não falar o que será o mundo daqui a séculos.
Dito de outro modo, aqui prevalecem esmagadoramente as lentes da imaginação, mas uma imaginação diversa da que se lança ao passado, pois tudo no futuro é nebuloso. Melhor será, pois, evitar afirmações e envolver a imaginação na moldura de perguntas. Na minha perspectiva, a partir de seleção mínima, faria ao futuro algumas perguntas.
O mundo se encaminha para a hegemonia da China ou para vários focos de polaridade, incluindo os Estados Unidos, a própria China e, quem sabe, a União Européia? Em algumas ou muitas décadas, o Brasil vai não só crescer mas tornar-se socialmente mais justo, não precisando se embalar nos duvidosos indicadores de poder de compra que tendem a ocultar nossas visíveis e constrangedoras carências? Ainda haverá campo para um socialismo com face humana, diverso dos fracassados modelos do passado e contraposto aos aspectos mais selvagens do capitalismo?
Por último, mas não na ordem de importância, serão tomadas medidas globais efetivas para impedir a mudança climática e a devastação do planeta ou as discussões nos foros privilegiados vão se arrastar, enquanto a humanidade caminha para o abismo num prazo maior ou menor?
Depois dessas perguntas e divagações, acho melhor abandoná-las e me concentrar, humildemente, em 2008.
Que todos nós tenhamos um bom ano, em que as alegrias superem as inevitáveis tristezas.


BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).

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