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TENDÊNCIAS/DEBATES
Fim de ano: passado e futuro
BORIS FAUSTO
Há boas razões para ler com reservas as projeções indicativas do que será o mundo daqui a 50 anos,
para não falar em séculos
COMO NINGUÉM ignora, o passado é o terreno próprio do historiador. Não é um terreno sólido, pronto a ser decifrado, desde que
se utilizem os métodos adequados,
como pensaram os positivistas no século 19. O passado se move, como o
globo terrestre, entre outros fatores,
em função das interpretações formuladas em épocas diversas, das propensões de cada historiador, da acessibilidade de novas fontes.
Para ficar num exemplo contemporâneo, nos últimos dez ou 15 anos, a
história da União Soviética vem sendo mais bem conhecida graças não só
a arquivos que burocratas russos em
boa hora preservaram mas também à
memória oral -o medo diminuiu e as
pessoas, mesmo com reticências, começaram a falar do passado. Assim,
vem sendo possível conhecer em toda
sua dimensão a figura espantosa de
Stálin, as minúcias dos campos de internamento (Gulag), assim como a intimidade da corte; ou levantar o véu
que encobria a vida devassada da família e do cidadão comum.
Ao mesmo tempo, a imaginação é
um elemento constitutivo de boa parte dos mergulhos no passado, seja nos
textos que se referem a épocas remotas, seja nos que lidam com épocas recentes. Desse modo, a reconstituição
da história de povos da chamada Antigüidade se faz em boa parte pela via
de fragmentos materiais -inscrições,
objetos etc.-, num trabalho em que a
formulação de hipóteses prováveis
para a identificação de usos, costumes e rituais tem um papel relevante.
A imaginação nutre também a história contrafatual (a que poderia ter
sido) de qualquer época, incidindo
com particular brilho na história contemporânea. Por exemplo, o que teria
ocorrido se as tropas alemãs tivessem
ocupado Moscou, como quase chegou
a acontecer, ou chegassem a desembarcar na Inglaterra enquanto tentavam demolir o país com incessantes
bombardeios na Segunda Guerra
Mundial? O que teria acontecido se,
em outubro de 1962, Kruschev não
recuasse, após semanas de suspense,
retirando os mísseis nucleares instalados em Cuba, num dos episódios
mais dramáticos da Guerra Fria? Como estaríamos hoje se a ação terrorista do 11 de Setembro tivesse sido desbaratada durante seus preparativos?
Por outro lado, a grande maioria
dos historiadores se recusa -ou pelo
menos hesita- a penetrar no futuro
-um terreno gelatinoso que não lhes
é próprio. Aí parecem acompanhar a
sabedoria popular: "O futuro a Deus
pertence". Mas, como o poeta Drummond, num belo verso, lembrou que
"o último dia do ano não é o último
dia do tempo", quem sabe valha a pena imaginar o que nos reserva o futuro, pensado em sentido coletivo.
Esse exercício pode ser feito de várias maneiras, seja pela lente das projeções tidas como científicas, seja pelas lentes da imaginação. Há boas razões para ler com reservas as projeções indicativas do que será o mundo
daqui a 50 anos, para não falar o que
será o mundo daqui a séculos.
Dito de outro modo, aqui prevalecem esmagadoramente as lentes da
imaginação, mas uma imaginação diversa da que se lança ao passado, pois
tudo no futuro é nebuloso.
Melhor será, pois, evitar afirmações e envolver a imaginação na moldura de perguntas. Na minha perspectiva, a partir de seleção mínima,
faria ao futuro algumas perguntas.
O mundo se encaminha para a hegemonia da China ou para vários focos de polaridade, incluindo os Estados Unidos, a própria China e, quem
sabe, a União Européia? Em algumas
ou muitas décadas, o Brasil vai não só
crescer mas tornar-se socialmente
mais justo, não precisando se embalar nos duvidosos indicadores de poder de compra que tendem a ocultar
nossas visíveis e constrangedoras carências? Ainda haverá campo para
um socialismo com face humana, diverso dos fracassados modelos do
passado e contraposto aos aspectos
mais selvagens do capitalismo?
Por último, mas não na ordem de
importância, serão tomadas medidas
globais efetivas para impedir a mudança climática e a devastação do planeta ou as discussões nos foros privilegiados vão se arrastar, enquanto a
humanidade caminha para o abismo
num prazo maior ou menor?
Depois dessas perguntas e divagações, acho melhor abandoná-las e me
concentrar, humildemente, em 2008.
Que todos nós tenhamos um bom
ano, em que as alegrias superem as
inevitáveis tristezas.
BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho
Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional)
da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de
30" (Companhia das Letras).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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