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Janio de Freitas

Um passo na cracolândia

Dispersos, os viciados estão afinal acessíveis à abordagem persuasiva para providências mais convenientes a cada um

Nem mesmo a polícia e os responsáveis pela ação na cracolândia percebem o que fizeram no centro de São Paulo. Com eles, também o extenso e intenso interesse suscitado pela iniciativa anticrack limitou-se às ideias estabelecidas, tanto para as restrições como para aprovação.

Mas o que se passou ali, por trás das evidências, foi uma primeira e promissora novidade no problema das cracolândias e da disseminação social, etária e criminal do crack.

Já por duas vezes a polícia e os responsáveis pela ação indicaram haver saído do convencional meio sem querer, não como início planejado de procedimentos novos.

No dia seguinte, quarta-feira, à dissolução parcial da cracolândia, a violência policial aparecia. Mais dois dias, vem a determinação primária de prender, como traficantes, os portadores de mesmo um grama de crack, o que significa autorizar a prisão a granel de usuários. E de incriminá-los pelo que não são necessariamente. É a falta total de novidade.

Em complemento à incompreensão policial quanto à sua própria ação, o governador Geraldo Alckmin foi de madrugada à área da cracolândia. Está tudo limpinho e arrumadinho? Podiam-se pressentir os estribilhos "devolvemos uma parte da cidade a seus legítimos habitantes", e por aí. O problema era aquela cracolândia, não as cracolândias e o que as cria. Mas o mesmismo não é só da polícia e dos governantes.

Ninguém soube, até agora, qual é a melhor maneira de se contrapor às cracolândias. E, a par da repressão ao tráfico, facilitar a adesão de viciados ao tratamento. Na ação de terça-feira despontou um possível meio de fazê-lo com eficácia. Isso se insinuou quando a polícia dispersou a cracolândia apenas forçando a saída das pessoas, cada qual por si. Seus trapos, de pano ou de carne humana, levados a despejar-se em qualquer outra imundície.

Uma ação policial inteligente. Entrar nas cracolândias agarrando, lutando contra resistências, metendo em carros e prendendo traz dois resultados: escândalo contra polícia e governo e, logo, inquéritos acompanhados da liberação dos detidos. O único saldo, se houver, é a prisão de um ou outro traficante.

A dispersão provoca o justo protesto dos que encontram viciados perambulando em suas calçadas. Mas nisso mesmo está um fator especial para a ação positiva da polícia e de serviços assistenciais e sanitários. Dispersos, os viciados estão afinal acessíveis à abordagem persuasiva, face a face, para as providências mais convenientes a cada um. E, em geral, propensos a aceitá-las ou, ao menos, considerá-las como prenúncio de uma tentação no desespero.

São centenas, são milhares a serem dispersados e assim mantidos. Os policiais também são milhares. Os agentes dos serviços assistenciais do Estado e do município, também. O que se oferece à sua frente é uma ação de governo que precisaria entrar na rotina.

Tornar-se norma, ação de todos os dias, e não motivo de notícias gritantes. Nenhuma violência, por menor que fosse, seria necessária, antes negaria o sentido e a eficácia do trabalho.

Ação lenta? Sim. Ou melhor, não. Calma, por certo. Demorada, mesmo. Não mais, no entanto, do que a longa e intocada persistência das cracolândias e das tantas outros formas de degeneração de numerosas áreas da cidade -de São Paulo e de muitas, muitas outras pelo país todo.

Uma facilidade a mais, para não deixar de fora as ânsias da repressão: os esperáveis reagrupamentos de viciados apontam a presença, nas cercanias, de traficantes, mais identificáveis pela polícia nos pequenos grupos e em transações com os clientes isolados.

A polícia e o governo paulista deram um passo em direção nova. Não o perceberam assim. Mas têm à sua frente o caminho iniciado, e talvez vários outros tão ou mais inovadores.

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