Entrevista Marta Arretche
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Crise do PT ameaça trajetória de queda da desigualdade
Ao lançar livro sobre 50 anos de desigualdades, pesquisadora fala sobre avanço conservador
Organizadora do recém-lançado "Trajetórias da Desigualdade: Quanto o Brasil Mudou nos Últimos 50 Anos", um inventário dessa chaga no país, a cientista política Marta Arretche diz que a profunda crise do PT põe em risco a tendência de queda da desigualdade das últimas décadas.
A "ameaça eleitoral da esquerda", diz, sempre funcionou como incentivo para que conservadores incluíssem a questão social em suas agendas. Sem a ameaça, que nos últimos 25 anos foi personificada pelo ex-presidente Lula e pelo PT, toda a agenda social seria afetada, argumenta.
Na obra, Arretche e outros 25 pesquisadores discutem aspectos das desigualdades regionais, raciais, de renda e gênero, entre outros. Argelina Figueiredo, Eduardo Marques, Fernando Limongi e Naercio Menezes Filho são alguns dos coautores.
Folha - O livro trata de desigualdades em vários campos. Em que segmentos o Brasil mais avançou e onde piorou?
Marta Arretche - Houve muitos avanços em 50 anos, a ritmos muito diferentes. Caiu a desigualdade de renda, do acesso ao ensino fundamental, à energia e à coleta de lixo. A figura do trabalhador rural que nunca foi à escola está em vias de desaparecimento. Desvantagens de mulheres e não brancas no mundo escolar e do trabalho foram reduzidas. A desigualdade entre regiões foi atenuada.
Em nenhuma dimensão o Brasil andou para trás. Mas a velocidade na redução varia muito. Em 2010, só 40% dos domicílios tinham serviço de esgoto. Essa média esconde uma grande desigualdade: para os mais ricos, a taxa já oscilava em torno de 70% desde o início dos anos 80; para os mais pobres, era pouco superior a 20% em 2010.
Nos anos 70, o economista Edmar Bacha definiu o país como Belíndia. Metade Bélgica, rica e desenvolvida, metade Índia. Isso ainda é atual?
A expressão descrevia bem o Brasil no fim do regime militar. Deixamos de ser Índia em dimensões relevantes. Hoje, 22% da população da Índia é analfabeta. Lá, o analfabetismo caiu só 1% na última década. A mortalidade infantil ainda é de 46 por mil nascidos vivos. Aqui, de 1980 a 2010, a mortalidade infantil caiu de 69 para 16 por mil nascidos. A população que chega ao ensino médio ou à universidade multiplicou por seis.
O Brasil ainda é um dos campeões mundiais de desigualdade de renda. Do ponto de vista histórico, o que explica?
Ampla oferta de mão de obra barata e pouco escolarizada. Uma oferta muito superior à demanda. É diferente do que ocorreu na Europa, com a emigração e duas guerras. Aqui, a mão de obra abundante gerou incentivos para a adoção de um modelo de industrialização com baixa intensidade tecnológica e que não demandava que o sistema educacional qualificasse muita gente. E ainda elevadas taxas de fertilidade na população mais pobre. Isso tudo mudou muito.
Portadores de títulos da dívida receberam R$ 75 bilhões do governo em 2014, quatro vezes mais que os R$ 18,5 bilhões às 14 milhões de famílias do Bolsa Família. O Estado não está criando desigualdade?
O Estado produz igualdade e desigualdade ao mesmo tempo. Previdência pública aumenta a desigualdade, com benefícios elevados a poucos; a privada reduz, pois a maior parte recebe até dois salários. Quando o salário mínimo é valorizado, há impacto positivo. O Bolsa Família reduz pobreza e um pouquinho a desigualdade. Por outro lado, Thomas Piketty [economista francês, autor de "O Capital no Século 21"] corretamente contabiliza dívida pública como riqueza privada e mostra como os ganhos daí derivados aumentam a desigualdade.
Como a competição eleitoral impacta na desigualdade?
Esse mecanismo é bastante conhecido para as democracias avançadas. Não é só o governo partidário que leva à adoção de políticas que reduzem desigualdades. O sufrágio universal também não é condição suficiente, como mostra a trajetória recente das democracias consolidadas. A experiência brasileira mostra um fenômeno curioso. A ameaça eleitoral da esquerda historicamente representou um incentivo relevante para que partidos conservadores incluam a questão social em sua agenda de governo.
Medo da esquerda?
Desde a redemocratização, todo candidato potencial sabia que teria de enfrentar o Lula na eleição seguinte. Também sabia que não entregar ou propor políticas para enfrentar a gravidade da questão social aumentaria o eleitorado potencial do PT. Não tratar da questão social implicaria aproximar 90% do eleitorado potencial, dada a distribuição da renda, no colo do PT. É por isso que até muito recentemente não tínhamos direita no Brasil.
A senhora diria então que a enorme crise do PT hoje representa uma ameaça à trajetória de redução da desigualdade?
Penso que há evidências de que isto já está ocorrendo. Há claramente uma agenda conservadora que avança no Congresso, que está associada à fragilidade parlamentar do PT, entre outros fatores.
A força parlamentar dos conservadores revela que a crise da coalizão de sustentação da presidente Dilma não pode ser explicada só pela distribuição de cargos entre partidos da base. Na verdade, os interesses que estão representados nos partidos da base têm papel muito importante. E tornam-se mais acentuados num contexto de ajuste fiscal, em que questões redistributivas se tornam cruciais, pois o problema é decidir quem arcará com os sacrifícios.
Num cenário futuro em que o PT deixe de ser competitivo, os termos da competição política serão inteiramente distintos daqueles com que convivemos nos últimos 25 anos. Não tenho dúvida de que isso afetará a agenda social.