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ENTREVISTA DA 2ª MARIA CELINA D'ARAUJO
Há deficit de controle da democracia brasileira
Pesquisadora diz que funcionários públicos e o próprio Estado atuam sem transparência e mecanismos eficientes de vigilância sobre seus atos
PLÍNIO FRAGA
DO RIO
A cientista política Maria
Celina D'Araujo, 60, autora
de "A Elite Dirigente do Governo Lula", diz que o vazamento de dados da Receita
Federal ilustra o "maior deficit" da democracia brasileira.
Especialista nos governos
de Getulio Vargas (1930-45 e
1951-54), Maria Celina D'Araujo diz que Lula usufrui de
um lastro de democracia no
país que o trabalhista não tinha, sem uma chance de intervenção militar.
"No meu ponto de vista, a
gente não está sabendo cuidar bem [desse lastro]. Cuidar bem é pensar a gestão pública, mais controle, mais
transparência. É examinar
quais são os deficits da democracia brasileira"
Folha - A sra. escreveu que,
na composição da elite dirigente do governo, predomina
a falta de transparência. Casos como a violação de sigilo
fiscal de pessoas ligadas ao
tucano José Serra são estimulados pela primazia política
na indicação na alta burocracia do governo Lula?
MARIA CELINA D'ARAUJO
-O episódio da Receita reflete
a falta de controle. Quem
controla quem. Quem controla as contas públicas,
quem controla os funcionários públicos, as agências.
Quem controla o Estado que
deveria nos servir. Este é um
dos grandes deficits da democracia brasileira. Falta
controle, transparência.
É um fenômeno generalizado. Temos pouca avaliação
da qualidade dos serviços,
do desempenho dos funcionários. O Brasil não tem uma
cultura de controles.
A Presidência da República não tem favorecido a questão. Tem criticado muito as
agências controladoras, o
Tribunal de Contas.
É um problema sério da
democracia brasileira a falta
de uma maior visibilidade
para o cidadão do que é feito
com nosso dinheiro. Ainda
vivemos uma cultura de que
o serviço público é o lugar do
segredo.
Por exemplo, segundo os
dados do governo, em 2009 o
Brasil tinha 8,3 milhões de
funcionários estatutários na
administração pública nos
três níveis -federal, estadual
e municipal. É muita gente
numa população de 41 milhões de trabalhadores formalizados. A gente não sabe
como essas pessoas estão organizadas, a quais sindicatos
pertencem, se elas se identificam mais com um partido. A
gente não sabe nada dessas
pessoas.
Há o desinteresse das próprias lideranças das máquinas públicas em propor regras claras?
Não há interesse de ninguém em fazer isso. Esses dados de sindicalização passaram a ser considerados relevantes agora no governo Lula. Mas o sindicato é um fenômeno que temos desde o século 19. Claro que há um interesse da classe política em
não ter transparência nas
suas nomeações.
Havia antes mais transparência nas nomeações?
As pessoas "descobriram"
agora que há DAS (cargos de
direção e assessoramento)
no Brasil. Esse arranjo da
criação de DAS vem desde o
governo Castello Branco
(1964-67). Era uma ideia de
dar margem de flexibilidade
para nomear pessoas de qualidade caso não houvesse no
serviço público.
Os critérios para preencher esses cargos nunca foram claros. Por isso fica a dúvida. O que está me agoniando nessa discussão é que as
pessoas ficam especulando,
e a dúvida é parteira de calúnias, de inverdades.
A impressão é que no governo Lula as nomeações ficaram mais opacas porque
foram mais centralizadas.
Mas isso não quer dizer que
antes eram transparentes.
A gente tinha informações
quantitativas, mas que partido indicava que diretores
também não se sabia.
Esse é um deficit da democracia brasileira que não é de
agora. É o deficit de ter grupos organizados -com todo
o direito de se organizar-
que são pagos pelo contribuinte e não temos informação sobre o que fazem, a que
grupos pertencem.
Tanto FHC como Lula tiveram
de repartir cargos públicos
em nome de uma aliança que
desse estabilidade ao governo. É preciso uma reforma
política?
Não tem nada a ver com reforma política. Tem a ver com
a ausência de critérios mais
claros, ausência de mais controle na administração pública. Cada governo que entra
vai buscar uma base de apoio
que lhe facilite governar. Não
vai procurar inimigos, vai
procurar aliados. A maneira
de fazer isso é que pode ser
mais republicana.
Quais as diferenças entre o PT
de Lula e o PTB de Getulio?
O PT é um partido de militância de classe média, fortemente identificado com uma
perspectiva de esquerda. Esse perfil é muito diferente do
que foi o PTB de antes. Porque é um partido de classe
média, educado, tem mais
condições de ascender a postos públicos, fazer concurso e
passar. Tem mais condições
de ocupar cargos. São coisas
muito diferentes.
Que elementos de diferenciação e semelhança vê entre
Getulio e Lula, em razão do
carisma pessoal e da relação
com sindicatos?
Tem muito pouco a ver.
Getulio no primeiro governo
(de 1930 a 45), produziu três
leis sindicais (a última de
1939), voltadas para o trabalhador industrial, com objetivo muito claro: regular as relações entre capital e trabalho num mundo industrial.
No segundo governo,
quando é criado o PTB, pode
se pensar que ficaria um pouco mais parecido com que é
hoje, mas também não. O
PTB, partido criado por Getulio para acolher os sindicatos, foi capturado por empresários. Claro que tinha alguns sindicalistas. Mas não
era um partido de trabalhadores. Era um partido identificado com a ideologia nacionalista, mas essa não era
uma característica só dos trabalhadores. Tinha apelo em
várias classes sociais.
Getulio tinha apelo muito
grande de fato entre os trabalhadores. Construiu a imagem de ser o pai dos pobres,
dentro da ideologia caudilhesca do Brasil, que, de alguma forma, o Lula tenta recuperar agora. Essa maldição caudilhesca paternalista
nos persegue. As pessoas fazem isso sabendo o que estão
fazendo. Quando Lula e Dilma fazem isso hoje sabem
que isso dá voto junto a um
setor da população. Não é nenhuma fatalidade. É de caso
pensado.
O governo Lula reproduz Vargas na cooptação sindical?
No governo Lula, as centrais sindicais são reconhecidas como parte da estrutura
sindical. Com isso têm financiamento público. Nesse sentido se reproduz a era Vargas.
Lula dizia que a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho,
elaborada no governo Getulio) era o AI-5 do trabalhador
[referência ao ato institucional que significou o endurecimento da ditadura]. Defendia que trabalhadores tinham de negociar diretamente com os patrões, sem
interferência do governo.
Voltamos agora para 1939.
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