São Paulo, Sábado, 08 de Janeiro de 2000


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O fervor sereno


Jean Galard, diretor cultural do Louvre, analisa a exposição sobre o barroco brasileiro que se realiza em Paris


JEAN GALARD

A exposição "Brésil Baroque", que se realiza atualmente no Petit Palais (Museu de Belas-Artes da Cidade de Paris), foi saudada unanimemente pela imprensa francesa como um grande êxito. Ela é com efeito excepcional, ao mesmo tempo pela qualidade das obras expostas e pela habilidade e gosto da cenografia que as valoriza.
Muitas resenhas acrescentam que essa exposição brilha como exceção por outro motivo: é a primeira manifestação de envergadura que permite aos franceses descobrir uma arte que muitos deles ignoram completamente: a escultura do Brasil dos séculos 17 e 18. Uma razão a mais para conduzir a bom termo essa empreitada ambiciosa. É o que foi feito, graças aos talentos e meios materiais reunidos pela União Latina, cujo secretário-geral, que é brasileiro, concebeu a exposição e realizou-a com o Ministério da Cultura do Brasil, a Prefeitura de Paris e a Associação Paris-Museus.
O momento era favorável por causa da coincidência dos 500 anos do Brasil, do 100º aniversário do Petit Palais e das atividades da Missão Paris 2000. Mas em vão teria se dado essa feliz conjunção, não fosse o engenho e tenacidade dos organizadores, especialmente dos comissários científicos: Angelo Oswaldo de Araújo Santos, Edouard Pommier e Gilles Chazal.
Quando se deplora que a grande maioria dos franceses seja tão ignorante sobre a arte barroca brasileira, dever-se-ia lamentar, mais geralmente, seu desconhecimento da escultura, até mesmo francesa. Para a curiosidade do público, a escultura é um parente pobre, principalmente em relação à pintura. Ela é vítima da incompreensão, da indiferença ou mesmo de uma franca hostilidade.

Uma arte complementar
Baudelaire, no Salão de 1846, reserva-lhe um capítulo sob o título: "Porque a Escultura é Enfadonha". É enfadonha, diz ele, quando tem pretensões ao estatuto de arte isolada. Ela tem interesse apenas enquanto arte complementar, quando consente em "associar-se humildemente à pintura e à arquitetura". No século 20, a situação mudou porque as fronteiras entre as artes se confundiram. Mas, em 1923 ainda, Paul Valéry, analisando o sentimento de opressão que se experimenta nos museus, torna responsável por ele o fato de que se acumularam, nesses lugares antinaturais, obras que foram separadas da arte essencial a que deveriam servir: a arquitetura.
Essa reação diante da escultura é sem dúvida injusta em muitos aspectos, mas é difícil não senti-la quando se trata mais particularmente da arte barroca. Aqui, os objetos esculpidos são destinados a lugares precisos, aderem a um conjunto arquitetural, integram-se num cenário abundante e contínuo. Que se pense, por exemplo, na igreja do convento de São Francisco, em Salvador da Bahia, na do mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, ou no retábulo do altar-mor de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto.

Brésil Baroque - Entre Ciel et Terre
Musée des Beaux-Arts de la Ville de Paris Catálogo da Mostra (até 6/2/2000) Textos de Angelo Oswaldo de Araújo Santos, Edouard Pommier, Gilles Chazal e outros 518 págs., 380 francos franceses Union Latine (Tel. 0/33/1/4549-6064) Edição em português prevista para fevereiro



A arquitetura, por sua vez, está inserida numa composição urbana que põe em cena a globalidade da mentalidade barroca. Como diz muito bem Nicolau Sevcenko, autor de um dos estudos reunidos no magnífico catálogo da exposição: "Nenhuma obra barroca pode ser apreciada isoladamente, desprovida desse contexto místico que a envolve. Sua natureza é essencialmente aglutinante, cativante e sintética". Seria preciso recolocar, ao menos em imaginação, as obras expostas não somente em sua arquitetura de origem, mas em todo um contexto de devoção, de celebração e mesmo, para algumas delas, das festas durante as quais essas esculturas desfilavam solenemente. É o que evidentemente nenhuma exposição pode fazer.
Entretanto, a exposição do Petit Palais vai tão longe quanto se pode esperar na tentativa de restituir o ambiente que convém às 350 peças escolhidas. Dois verdadeiros artistas contribuíram poderosamente para isso. De um lado, Massimo Quendolo, autor da cenografia da exposição, construiu, no interior dos vastos espaços do Palais, salas sutilmente modeladas; concebeu o mobiliário de apresentação e as luzes; e soube utilizar perfeitamente os elementos de arquitetura (colunas, painéis de retábulos de altar, cariátides, fragmentos de cornija) trazidos do Brasil. Por exemplo, uma sala, onde são apresentadas obras de frei Agostinho de Jesus, tem paredes ornadas de talhas douradas suficientemente grandes e vivamente iluminadas, num espaço estreito o bastante para que seja habilmente produzido um extraordinário efeito de riqueza.
De outro lado, o fotógrafo Ferrante Ferranti efetuou duas missões no Brasil para lá fazer 5.000 tomadas. Essas fotografias fazem do catálogo da exposição um livro de arte suntuoso. Elas também permitem que se tenham, na própria exposição, surpreendentes vistas, em grande formato, das fachadas das igrejas. Desde o hall de acesso, oito fotografias impressas sobre altos painéis de tela fina, iluminados por trás, dão ao visitante a impressão de se achar, ao crepúsculo, sobre o átrio de pedra do monumento.
Essa preparação inicial prossegue por um prelúdio histórico-geográfico. A primeira sala evoca "a descoberta", com mapas antigos e edições do século 16 dos primeiros viajantes: Hans Staden, André Thevet, Jean de Léry. No meio da sala, Nossa Senhora da Luz, do Museu de Arte Sacra de São Paulo, ostenta seu calmo sorriso benevolente e suas jóias. Sua alta coroa e a de seu Filho são guarnecidas de pedras preciosas que cintilam quando nos deslocamos. A iluminação, aqui como em toda a exposição, acentua os contrastes entre zonas de luzes e de sombra. Aqui, como muitas vezes, ela é concebida de maneira que os olhos da Virgem fiquem na sombra. As salas seguintes lembram a presença dos índios, com coifas de plumas Munduruku e duas tapeçarias executadas pela Manufatura dos Gobelins, segundo obras de Albert Eckhout, uma delas mostrando "Índios Pescadores". Assim se acham mencionadas a um só tempo a presença holandesa, quatro quadros de Frans Post vindo se acrescentar aos tapetes realizados segundo Eckhout.
Em seguida, entramos no âmago do assunto, após haver passado uma porta enquadrada por dois tocheiros antropomórficos: dois africanos solenes nos iluminam no momento em que entramos no mundo da mestiçagem cultural.
Primeiramente, de frei Agostinho da Piedade, eis as virgens com o Menino, uma Santa Mônica, uma Santa Bárbara: todas possuem o aspecto tranquilizador das mulheres robustas e pacíficas. Depois, de frei Agostinho de Jesus, uma "Pietà" e uma Nossa Senhora da Alegria.
O plano das salas, que a princípio utilizava o ângulo reto, tende agora para o oval. Os suportes das estátuas muitas vezes também são ovais. Colocam as obras na altura do olho e permitem andar em torno delas. Fotografias de tetos de igrejas, reproduzidas sobre suportes de tela, igualmente ovais, estão colocadas no teto das salas da exposição, com toda a irregularidade que convém a uma cenografia que joga com a variedade e a surpresa discretamente organizada.
Muitas obras são maravilhosamente tocantes. Cabe a cada um constituir sua própria coleção de imagens inesquecíveis. Memorável será necessariamente para muitos visitantes o par do século 18, de autor desconhecido, conservado no Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia, em Salvador: "Santana" e "Maria Menina". Maria levanta o rosto gentil e bochechudo, com o pequeno nariz arrebitado, e traz um grosso livro embaixo do braço, enquanto a mãe caminha com ela, atenciosa, nobre e doce. Passamos continuamente da imagem da felicidade à do sofrimento. As "Pietà" de rosto desfeito e as Nossas Senhoras das Dores alternam com os amáveis anjos tocheiros, de asas vivamente coloridas de vermelho e azul, ou com são Miguel, arcanjo roliço e mesmo um pouco barrigudo.

Minas e o Aleijadinho
Após a "arte da costa", vem "Minas Gerais". Ao centro de uma grande sala, a maior de toda a exposição, uma construção "barroca" foi edificada para alojar as vitrines contendo objetos de ourivesaria. Uma abertura, no meio dessa construção, permite ir e vir, de um lado para outro, para admirar principalmente dois grandes retábulos, ou para se assombrar diante de um Cristo seráfico, que com seus dois braços e um de seus pares de asas, apanha um São Francisco um pouco estupefato (é o "São Francisco das Chagas", do Museu de Arte Sacra de São Paulo). Nas salas seguintes, igualmente reservadas a Minas Gerais, o tema da devoção familiar é ilustrado por 11 "Santana Mestra" e dez pequenos oratórios provenientes de Ouro Preto. Depois, entre muitas outras obras apaixonantes que é impossível mencionar aqui, vêm principalmente um grupo de quatro santos negros (dentre os quais, uma Santa Ifigênia), uma Santa Madalena e um São Paulo por Francisco Xavier de Brito.
Antônio Francisco Lisboa está presente como deve. Está presente na diversidade de suas realizações (certas ou prováveis), desde o "São Jorge" que lhe é atribuído, com armadura de fantasia e plumas no chapéu, até a "Nossa Senhora das Dores", cujo sofrimento infinito é expresso pelas sobrancelhas marcadas, os olhos inundados, as mãos crispadas, mas também pelas pregas das vestes, que parecem talhadas a machado e formadas de quebras cubistas. O que há de comum entre o "Cristo da Ressurreição", inverossímil como uma alucinação, o "Anjo Tocheiro", "São Joaquim" e as diversas "Santana Mestra", senão o sentimento que nos é dado de sermos perturbados pela irrupção do gênio? A imprensa francesa, não nos espantemos, estendeu-se longamente sobre o destino do Aleijadinho, sobre sua biografia assombrosa, na falta de poder analisar sua obra de outro modo senão repetindo, a propósito desse artista, que ele é "o Michelangelo brasileiro".
Após uma imersão de várias horas nessa exposição, que é muito arrebatadora, sensorial e afetivamente, temos vontade de saber mais e compreender melhor. O catálogo preenche maravilhosamente as funções que dele se esperam. As fotografias de todos os objetos expostos, tiradas por Ferrante Ferranti, classificadas por temas, são admiráveis. O catálogo inclui, de outra parte, uma excelente série de textos.
Primeiramente, os das duas principais cabeças pensantes da exposição. Edouard Pommier é um grande erudito, que estende continuamente o perímetro de seu saber e que manifesta particularmente, no caso presente, sua profunda capacidade de entusiasmo. Angelo Oswaldo de Araújo Santos escreveu para o catálogo um texto introdutório que é um mapeamento largo e claro. Vale sem dúvida assinalar que a cobertura de imprensa da exposição, na França, deve muito à maneira pela qual ele trouxe às questões dos jornalistas respostas precisas, claras, essenciais.
Uma dezena de estudos mais especializados vêem em seguida. Ana Maria de Moraes Belluzo constrói uma espécie de fenomenologia da experiência barroca. Nicolau Sevcenko, como historiador, introduz inteligibilidade num fenômeno que é artístico, mas depende evidentemente de todo um contexto geral. As outras contribuições trazem precisões histórico-geográficas, levantam problemas de atribuição de obras, incitam a prosseguir a pesquisa. Haroldo de Campos, para acabar, fornece um belo texto sobre a poesia do barroco.
O que é o barroco brasileiro? É tanto mais difícil dar uma resposta a essa questão quanto o próprio termo "barroco" foi superutilizado. Por vezes temos vontade de afastar essa palavra, tanto ela se esvaziou de verdadeira substância à medida que seus empregos aproximativos se multiplicavam. Edouard Pommier, entretanto, vê justamente na ausência de definição do projeto barroco a própria razão do êxito do movimento. À diferença, diz ele, do que se passou com o Renascimento, o classicismo ou o neoclassicismo, os contemporâneos do barroco jamais elaboraram uma teoria do barroco. "Esse vazio doutrinal, que frustra nossos esforços de definição, faz do barroco uma arte que não se opõe a nenhuma outra, mas se adapta a todas as situações". Donde sua maleabilidade, sua docilidade e portanto sua força de expansão, "que vai lhe permitir fazer a volta ao mundo e tornar-se a primeira arte universal da história". No Brasil, assim como já se disse muito, essa indefinição favorece uma autêntica apropriação pelos criadores locais, que adaptam à sua maneira os exemplos europeus e constituem um verdadeiro repertório multicultural.

Entre o céu e a terra
Se nos voltamos agora para as obras a fim de experimentar o que o barroco brasileiro teria de específico graças a seu multiculturalismo, o que encontramos? Desculpar-se-á este artigo por se limitar àquilo que parece ressaltar da exposição parisiense. Deixemos a outros a tarefa de dizer o que é o barroco brasileiro (alguns, no catálogo, o fazem muito bem). Se nos ativermos ao barroco da exposição do Petit Palais, considerando de perto as obras aqui reunidas, há certamente algo de muito notável. É a estranha aliança entre a intensidade do sentimento (de sofrimento, de adoração, de benevolência) e uma atitude pensativa, quase meditativa. O fervor aqui é tranquilo. Ele está o mais longe possível da gesticulação exaltada. As "Pietà" da exposição são o oposto da "Pietà" de Anibal Carrache de 1600, cujos braços se estendem, cujos rostos são aterrorizadores, os olhos transtornados, as bocas abertas. Para nos atermos à escultura, as obras dessa exposição diferem absolutamente dos rostos estáticos de Bernini, do rosto ululante de "Milon de Crotone", de Puget, ou do suplicante da "Santa Maria Madalena", de Algarde.
Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira faz observar, no catálogo, a propósito do Aleijadinho: "Os diversos graus do sofrimento humano são exprimidos com uma dignidade raramente presente nas representações barrocas".
Mas não é somente o Aleijadinho que manifesta essa "dignidade". Por toda parte, em tudo o que nos é mostrado aqui, os sentimentos são visíveis, mas a expressão se situa, ao mesmo tempo, um pouco além dos sentimentos. Estas personagens estão presentes, intensamente, e também têm um ar um pouco ausente, o ar de estar em outra parte. Antes que dignidade ou "retenção", elas possuem, até no sofrimento, uma certa impassibilidade, mas uma impassibilidade que não contradiz de modo algum a intensidade espiritual. São estranhamente duplos. Essa dualidade, que está neles, poderia ser inteiramente simbolizada pelo duplo olhar da "Santa Luzia" do Museu Aleijadinho de Ouro Preto, de autor desconhecido. Santa Luzia pousa os olhos numa bandeja: estes, fora da órbita do rosto, são trágicos e terríveis, enquanto a santa, com seus "verdadeiros" olhos, considera-nos sem nos ver, com um belo olhar sonhador. Estas personagens estão aqui, por vezes cruelmente, e já (ou ainda) estão em outra parte. Sem dúvida, é porque, como diz o subtítulo da exposição, eles estão "entre o céu e a terra".


Jean Galard é diretor do serviço cultural do Museu do Louvre e autor, entre outros livros, de "A Beleza do Gesto" (Edusp).
Tradução de Franklin de Matos.



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