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A moça moderna brasileira
Até a década de 40, as conquistas feministas no Brasil não tocaram
na questão da desigualdade
FERNANDA PEIXOTO
Imagens da mulher moderna,
renovada nos modos de vestir, falar e se comportar, invadem a cena brasileira entre as duas guerras. Revistas de ampla circulação,
como "A Cigarra", "A Vida Moderna" e "Eu Sei Tudo", romances populares, caricaturas de Belmonte e materiais publicitários
diversos exibem os novos perfis
femininos. Com cabelos mais curtos, roupas leves e cigarro em riste, a "moça moderna" ganha as
ruas, as lojas de departamentos,
os espaços de lazer, assim como o
mercado de trabalho e a escola.
Se as novas formas de representação da mulher dos grandes centros urbanos do país indicam um
processo de modernização social
em curso, não devem entretanto
desviar nossa atenção dos paradoxos nele implicados, alerta Susan Besse. As conquistas femininas que as imagens projetam impõem uma revisão das relações de
gênero entre nós, mas são obrigadas a encarar a extrema desigualdade da sociedade brasileira, as
políticas intervencionistas do Estado, a Igreja e largos setores conservadores desta sociedade.
O foco do estudo recai sobre Rio
de Janeiro, São Paulo e as camadas médias e alta que encabeçam
o processo modernizador no plano dos costumes, atitudes e valores. O corte histórico incide sobre
as décadas de 20 e 30. O acompanhamento dos acalorados debates
que tiveram lugar no período
acerca das relações de gênero e
dos papéis sociais das mulheres é
feito a partir da circunscrição de
tópicos estratégicos: a família, o
casamento, o cuidado com os filhos e a sexualidade, além da educação e do trabalho femininos.
Liberdades bolcheviques
As mudanças verificadas no
plano das rotinas diárias das elites
urbanas são acompanhadas no livro pela leitura de jornais e revistas da época, que alargam o seu
corpo de leitores em função da
maior alfabetização. Revistas destinadas ao público feminino, como a "Revista Feminina", em circulação com grande êxito até o
fim da década de 20 dão visibilidade às novas necessidades da
mulher, que crescem "pari passu"
à formação de uma nova consciência dos papéis a ela tradicionalmente reservados.
Se isso é verdade e ecoa, por
exemplo, na atitude crítica das
mulheres das elites urbanas em
relação ao casamento, não menos
real é a preocupação de amplos
setores sociais com a estabilidade
da família, aparentemente ameaçada com a voga liberalizante. As
discussões sobre o casamento e a
unidade familiar mobilizam setores sociais variados e pontos de
vista divergentes. Feministas como Elisabeth Bastos, Ercília Nogueira Cobra e Maria Lacerda de
Moura denunciam o culto da virgindade e a idéia de "honra masculina", defendendo o aborto, a
"maternidade consciente" fora do
casamento e um programa de "liberdade integral" para as mulheres. Os críticos masculinos contra-atacam, investindo contra as
"liberdades bolcheviques" que
pareciam ameaçar a responsabilidade e recato femininos. Mulheres também manifestam sua
preocupação com a voga emancipadora, atesta a figura da "Mademoiselle Futilidade", criada pela
cronista Maria Eugênia Celso.
Apesar da divergências, os diferentes pontos de vista em jogo
nesse debate convergem para um
certo consenso em torno da necessidade de reforma do casamento, que se expressa em uma
série de medidas legais visando
mediar conflitos, incentivar novas
uniões e garantir a estabilidade
conjugal. Neste sentido, a luta pela modernização do casamento
angaria adeptos em diferentes esferas da sociedade. Pronunciamentos públicos de psiquiatras
progressistas como Antonio Austregésilo Lima, de juristas e escritores de perfis distintos, reformulações no Código Civil, decretos e
mesmo o mercado editorial da
época, sinalizam uma disposição
em "civilizar" as relações entre os
cônjuges, o que pressupõe o reconhecimento de uma maior igualdade entre os parceiros.
As mensagens contraditórias
em relação ao "casamento adequado" e ao lugar da mulher na
família tomam feições particulares nos discursos e políticas públicas voltadas para a proteção das
crianças, a cargo da mãe e do Estado. O culto da "maternidade
científica moderna", como destino biológico natural e missão primordial das mulheres, foi difundido e largamente aceito, com
grande aval dos médicos e higienistas, principais colaboradores
das mulheres no desempenho da
"profissão" materna.
A educação feminina
As querelas públicas sobre a família, o casamento e a maternidade sofrem as interferências da expansão da educação feminina e da
ampliação da participação das
mulheres no mercado de trabalho. As pioneiras do feminismo
no Brasil foram apoiadas por comunidades profissionais, empresariais e funcionários do governo
na defesa da educação feminina
como mecanismo fundamental
para a "evolução" e "progresso"
do país. Intelectuais adeptos do
positivismo e das teses eugenistas
tão em voga alardeiam a necessidade do desenvolvimento físico e
intelectual daquelas que possuem
papel de destaque na administração dos lares e socialização das
crianças.
Modernizando a
Desigualdade -
Reestruturação da
Ideologia de Gênero no
Brasil (1914-1940)
Susan K. Besse
Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira
Edusp (Tel. 0/xx/11/818-4149)
329 págs, R$ 36,00
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Mas, apesar deste clima de incentivo à formação das mulheres,
o fato é que elas só muito lentamente se beneficiam da expansão
dos recursos educacionais. O censo paulista de 1930 revela que, se
46,5% dos alunos das escolas primárias são mulheres, as cifras decrescem quando passamos para o
secundário e daí para o ensino superior.
Além disso, a educação que a
maioria das mulheres recebe nas
escolas normais, profissionais e
na rede particular, em vez de promover aspirações maiores, orienta-as para carreiras "condizentes
com sua condição", o que significa empregos de baixa remuneração e poucas oportunidades de
progresso profissional.
Os desenhos do mercado de trabalho e da distribuição de oportunidades profissionais confirmam
o confinamento das mulheres em
funções subalternas e em setores
da produção e prestação de serviços tradicionalmente fornecidos
pela mão-de-obra feminina, como o trabalho doméstico, o magistério, a assistência social, as
carreiras artísticas etc. Em linhas
gerais, a maior entrada de mulheres no mercado de trabalho, longe
de funcionar como mecanismo
transformador da condição feminina, significa a formação de amplas reservas de mão-de-obra barata e a reafirmação de hierarquias de gênero.
Mesmo as mulheres que conseguiram projeção profissional no
período -normalmente no campo das artes- e que defendem o
trabalho fora de casa como forma
de satisfação pessoal (Mariana
Coelho, Bertha Lutz, Maria Lacerda de Moura) manifestam em
seus pronunciamentos sensações
de isolamento, de desrespeito e
desimportância social.
.
Feminismo e desigualdade
A organização de um movimento feminista no Brasil nas primeiras décadas do século teve que
lidar com esse quadro complexo e
contraditório, mostra o segmento
final do livro. O que não impede
que organizações feministas, como a Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino (1922-1937) e
vozes mais ou menos isoladas
(Maria Lacerda de Moura e Patrícia Galvão) tenham desempenhado papel fundamental na formulação de políticas que garantiram
direitos e redefiniram pontos de
vista sobre a mulher na sociedade
brasileira.
De qualquer modo, o exame das
plataformas dos grupos, a análise
das obras dessas ativistas e os debates travados entre feministas e
antifeministas nas páginas da imprensa popular indicam a tímida
expressão de um feminismo radical no período. As feministas brasileiras, até a década de 40, contribuíram para a modernização das
relações de gênero entre nós, mas
continuaram sem tocar nas questões relativas às nossas desigualdades econômicas, sociais e políticas.
Os méritos do livro são muitos:
pesquisa minuciosa a partir de
fontes variadas, ousadia interpretativa e eleição de um partido analítico que não permite à autora se
satisfazer com o mero inventário
de imagens. Ao contrário, estas
são inseridas em séries alargadas
nas quais convivem discursos de
educadores, médicos e juristas;
propostas de feministas e antifeministas; projetos de organizações católicas e filantrópicas; planos de legisladores e reformadores sociais. O quadro resultante
dessa opção é a construção de
uma teia discursiva extremamente heterogênea sobre o lugar e papel da mulher na sociedade brasileira, que toma forma em políticas
efetivas de intervenção e controle
social.
O trabalho de Susan Besse evoca
a já alentada tradição de estudos
sobre a história das mulheres e
das relações de gênero. Só que
neste vasto campo de análises,
atravessado por posturas teórico-metodológicas antagônicas, aproxima-se de abordagens que visam
inserir a reflexão sobre o gênero
nas análises das relações de poder.
Ao definir o trabalho, já nas primeiras páginas, como um estudo
de história política, Besse explicita
o lugar de onde fala: trata-se de
evitar confinar o gênero à esfera
do privado, visto como domínio
isolado, pensando-o em suas articulações com os conflitos políticos.
O exame das relações de gênero,
desta perspectiva, remete diretamente à discussão sobre a nação e
as ações governamentais. A análise desliza, então, das zonas da intimidade à arena pública na qual
debates e políticas têm lugar. E aí
reside talvez o seu maior interesse: o enfrentamento analítico das
estreitas relações entre público e
privado -e, sobretudo, da crescente intervenção estatal no círculo doméstico- no bojo de um
processo modernizador, absolutamente paradoxal e ambíguo,
que teve lugar no Brasil das primeiras décadas do século.
Fernanda Peixoto é professora de antropologia na Universidade Estadual Paulista
(Unesp de Araraquara).
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