São Paulo, Sábado, 08 de Janeiro de 2000


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A moça moderna brasileira

Até a década de 40, as conquistas feministas no Brasil não tocaram na questão da desigualdade FERNANDA PEIXOTO

Imagens da mulher moderna, renovada nos modos de vestir, falar e se comportar, invadem a cena brasileira entre as duas guerras. Revistas de ampla circulação, como "A Cigarra", "A Vida Moderna" e "Eu Sei Tudo", romances populares, caricaturas de Belmonte e materiais publicitários diversos exibem os novos perfis femininos. Com cabelos mais curtos, roupas leves e cigarro em riste, a "moça moderna" ganha as ruas, as lojas de departamentos, os espaços de lazer, assim como o mercado de trabalho e a escola.
Se as novas formas de representação da mulher dos grandes centros urbanos do país indicam um processo de modernização social em curso, não devem entretanto desviar nossa atenção dos paradoxos nele implicados, alerta Susan Besse. As conquistas femininas que as imagens projetam impõem uma revisão das relações de gênero entre nós, mas são obrigadas a encarar a extrema desigualdade da sociedade brasileira, as políticas intervencionistas do Estado, a Igreja e largos setores conservadores desta sociedade.
O foco do estudo recai sobre Rio de Janeiro, São Paulo e as camadas médias e alta que encabeçam o processo modernizador no plano dos costumes, atitudes e valores. O corte histórico incide sobre as décadas de 20 e 30. O acompanhamento dos acalorados debates que tiveram lugar no período acerca das relações de gênero e dos papéis sociais das mulheres é feito a partir da circunscrição de tópicos estratégicos: a família, o casamento, o cuidado com os filhos e a sexualidade, além da educação e do trabalho femininos.

Liberdades bolcheviques
As mudanças verificadas no plano das rotinas diárias das elites urbanas são acompanhadas no livro pela leitura de jornais e revistas da época, que alargam o seu corpo de leitores em função da maior alfabetização. Revistas destinadas ao público feminino, como a "Revista Feminina", em circulação com grande êxito até o fim da década de 20 dão visibilidade às novas necessidades da mulher, que crescem "pari passu" à formação de uma nova consciência dos papéis a ela tradicionalmente reservados.
Se isso é verdade e ecoa, por exemplo, na atitude crítica das mulheres das elites urbanas em relação ao casamento, não menos real é a preocupação de amplos setores sociais com a estabilidade da família, aparentemente ameaçada com a voga liberalizante. As discussões sobre o casamento e a unidade familiar mobilizam setores sociais variados e pontos de vista divergentes. Feministas como Elisabeth Bastos, Ercília Nogueira Cobra e Maria Lacerda de Moura denunciam o culto da virgindade e a idéia de "honra masculina", defendendo o aborto, a "maternidade consciente" fora do casamento e um programa de "liberdade integral" para as mulheres. Os críticos masculinos contra-atacam, investindo contra as "liberdades bolcheviques" que pareciam ameaçar a responsabilidade e recato femininos. Mulheres também manifestam sua preocupação com a voga emancipadora, atesta a figura da "Mademoiselle Futilidade", criada pela cronista Maria Eugênia Celso.
Apesar da divergências, os diferentes pontos de vista em jogo nesse debate convergem para um certo consenso em torno da necessidade de reforma do casamento, que se expressa em uma série de medidas legais visando mediar conflitos, incentivar novas uniões e garantir a estabilidade conjugal. Neste sentido, a luta pela modernização do casamento angaria adeptos em diferentes esferas da sociedade. Pronunciamentos públicos de psiquiatras progressistas como Antonio Austregésilo Lima, de juristas e escritores de perfis distintos, reformulações no Código Civil, decretos e mesmo o mercado editorial da época, sinalizam uma disposição em "civilizar" as relações entre os cônjuges, o que pressupõe o reconhecimento de uma maior igualdade entre os parceiros.
As mensagens contraditórias em relação ao "casamento adequado" e ao lugar da mulher na família tomam feições particulares nos discursos e políticas públicas voltadas para a proteção das crianças, a cargo da mãe e do Estado. O culto da "maternidade científica moderna", como destino biológico natural e missão primordial das mulheres, foi difundido e largamente aceito, com grande aval dos médicos e higienistas, principais colaboradores das mulheres no desempenho da "profissão" materna.

A educação feminina
As querelas públicas sobre a família, o casamento e a maternidade sofrem as interferências da expansão da educação feminina e da ampliação da participação das mulheres no mercado de trabalho. As pioneiras do feminismo no Brasil foram apoiadas por comunidades profissionais, empresariais e funcionários do governo na defesa da educação feminina como mecanismo fundamental para a "evolução" e "progresso" do país. Intelectuais adeptos do positivismo e das teses eugenistas tão em voga alardeiam a necessidade do desenvolvimento físico e intelectual daquelas que possuem papel de destaque na administração dos lares e socialização das crianças.

Modernizando a Desigualdade - Reestruturação da Ideologia de Gênero no Brasil (1914-1940)
Susan K. Besse Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira Edusp (Tel. 0/xx/11/818-4149) 329 págs, R$ 36,00



Mas, apesar deste clima de incentivo à formação das mulheres, o fato é que elas só muito lentamente se beneficiam da expansão dos recursos educacionais. O censo paulista de 1930 revela que, se 46,5% dos alunos das escolas primárias são mulheres, as cifras decrescem quando passamos para o secundário e daí para o ensino superior.
Além disso, a educação que a maioria das mulheres recebe nas escolas normais, profissionais e na rede particular, em vez de promover aspirações maiores, orienta-as para carreiras "condizentes com sua condição", o que significa empregos de baixa remuneração e poucas oportunidades de progresso profissional.
Os desenhos do mercado de trabalho e da distribuição de oportunidades profissionais confirmam o confinamento das mulheres em funções subalternas e em setores da produção e prestação de serviços tradicionalmente fornecidos pela mão-de-obra feminina, como o trabalho doméstico, o magistério, a assistência social, as carreiras artísticas etc. Em linhas gerais, a maior entrada de mulheres no mercado de trabalho, longe de funcionar como mecanismo transformador da condição feminina, significa a formação de amplas reservas de mão-de-obra barata e a reafirmação de hierarquias de gênero.
Mesmo as mulheres que conseguiram projeção profissional no período -normalmente no campo das artes- e que defendem o trabalho fora de casa como forma de satisfação pessoal (Mariana Coelho, Bertha Lutz, Maria Lacerda de Moura) manifestam em seus pronunciamentos sensações de isolamento, de desrespeito e desimportância social.
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Feminismo e desigualdade
A organização de um movimento feminista no Brasil nas primeiras décadas do século teve que lidar com esse quadro complexo e contraditório, mostra o segmento final do livro. O que não impede que organizações feministas, como a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (1922-1937) e vozes mais ou menos isoladas (Maria Lacerda de Moura e Patrícia Galvão) tenham desempenhado papel fundamental na formulação de políticas que garantiram direitos e redefiniram pontos de vista sobre a mulher na sociedade brasileira.
De qualquer modo, o exame das plataformas dos grupos, a análise das obras dessas ativistas e os debates travados entre feministas e antifeministas nas páginas da imprensa popular indicam a tímida expressão de um feminismo radical no período. As feministas brasileiras, até a década de 40, contribuíram para a modernização das relações de gênero entre nós, mas continuaram sem tocar nas questões relativas às nossas desigualdades econômicas, sociais e políticas.
Os méritos do livro são muitos: pesquisa minuciosa a partir de fontes variadas, ousadia interpretativa e eleição de um partido analítico que não permite à autora se satisfazer com o mero inventário de imagens. Ao contrário, estas são inseridas em séries alargadas nas quais convivem discursos de educadores, médicos e juristas; propostas de feministas e antifeministas; projetos de organizações católicas e filantrópicas; planos de legisladores e reformadores sociais. O quadro resultante dessa opção é a construção de uma teia discursiva extremamente heterogênea sobre o lugar e papel da mulher na sociedade brasileira, que toma forma em políticas efetivas de intervenção e controle social.
O trabalho de Susan Besse evoca a já alentada tradição de estudos sobre a história das mulheres e das relações de gênero. Só que neste vasto campo de análises, atravessado por posturas teórico-metodológicas antagônicas, aproxima-se de abordagens que visam inserir a reflexão sobre o gênero nas análises das relações de poder. Ao definir o trabalho, já nas primeiras páginas, como um estudo de história política, Besse explicita o lugar de onde fala: trata-se de evitar confinar o gênero à esfera do privado, visto como domínio isolado, pensando-o em suas articulações com os conflitos políticos.
O exame das relações de gênero, desta perspectiva, remete diretamente à discussão sobre a nação e as ações governamentais. A análise desliza, então, das zonas da intimidade à arena pública na qual debates e políticas têm lugar. E aí reside talvez o seu maior interesse: o enfrentamento analítico das estreitas relações entre público e privado -e, sobretudo, da crescente intervenção estatal no círculo doméstico- no bojo de um processo modernizador, absolutamente paradoxal e ambíguo, que teve lugar no Brasil das primeiras décadas do século.


Fernanda Peixoto é professora de antropologia na Universidade Estadual Paulista (Unesp de Araraquara).


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