São Paulo, Sábado, 08 de Janeiro de 2000


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A política no sertão

MARIA CELIA PAOLI

Teoria política, história e ficção em "Grande Sertão: Veredas": o subtítulo do livro de Heloísa Starling inscreve sua leitura no desafio das diversas fronteiras narrativas para as quais se abre o romance de Guimarães Rosa. Diante disso, a autora faz uma escolha ousada e bem-sucedida: fazer do próprio texto ficcional a matéria da história política de um sertão que começa a enfrentar o desafio dos tempos republicanos e modernos do Brasil. Ou seja, a escolha de recompor esse desafio político seguindo os caminhos cheios de voltas da memória relatada de Riobaldo Tatarana.
Isso permite a Heloísa desenvolver, em toda a sua grandeza, aquilo que ela vê na própria ambição fundadora de Rosa, a de "recriar literariamente as tentativas de transformação de uma comunidade (...) numa forma de vida política". Sem ferir, portanto, a recriação literária da história, Heloísa ousa ler a história dos caminhos encenados pela ficção para compreender a política, uma história que se pontua por outras perguntas e outros procedimentos, que fogem ao "contar alinhavado" organizado unicamente pela busca da verdade na sequência coerente dos fatos.
Ao aceitar o conselho de Rosa, o de perseguir "o leite que a vaca não prometeu", Heloísa conseguiu encontrar-se com as experiências plurais e diversas que fizeram a história política do sertão (e da República), o que inclui o mundo da servidão e opressão popular, da massa de gente que vive entre os "destroços que se desprendem da paisagem arruinada", "gente sem teto, sem terra, sem coragem, sem direitos, sem futuro, sem existência política". E, geralmente, gente também invisível e muda para a historiografia política.
Seu ponto de partida vem de uma sugestão de Willi Bölle, a de que o romance pode ser visto como um mapa alegórico "aberto sobre o vazio original instituinte da história do Brasil" -o vazio de um desterro recorrente que, no entanto, nada tem a ver com a nostalgia de um mundo passado, povoado de figuras imobilizadas, longínquas.
Ao contrário, assinala nesse mapa os entrecruzamentos da memória arcaica, dos fragmentos mitológicos, dos personagens heróicos e da fragilidade da vida entre ruínas e resíduos, encarnados sobretudo em seus personagens errantes, vivendo à deriva, marcados pela reatualização da miséria, da exclusão e da violência brutal.
O forte acento benjaminiano dessa descrição dramatiza os instantes visíveis em que se desenham as opções e escolhas, as palavras e os feitos que a narrativa de Riobaldo faz aparecer em um sertão em transformação, agitado por um movimento terrivelmente ativo e confuso, um tempo que passa pela prova de inaugurar um ritmo inteiramente novo em sua história: o de abrir a coletividade para uma esfera pública que até então tinha sido o domínio fechado dos proprietários, os "senhores-cidadãos" como os chamou Florestan Fernandes.
Esse ponto de partida da autora mostra, melhor do que qualquer comentário, a singularidade de sua leitura do romance, e leva Heloísa para dentro da narrativa de Guimarães Rosa, seguindo seus personagens e seus caminhos, com eles conversando e como eles buscando entender os trajetos desse empreendimento até então sem precedentes: a fundação política do sertão. Para compreender este trajeto, Heloísa invoca as referências do pensamento político (Maquiavel, Hobbes, Tocqueville e sobretudo Arendt) sobre as questões da fundação política e da modernidade, que funcionam como vias de acesso à história dramática e indeterminada das possibilidades de criação de um convívio político nesse sertão ameaçado de perder seu cosmos (no sentido de Arendt) e, portanto, tomado pela urgência de recriá-lo publicamente em novas formas de vida em comum.

Lembranças do Brasil - Teoria Politica, História e Ficção em "Grande Sertão: Veredas"
Heloísa Starling Revan (Tel. 0/xx/21/502-7495) 192 págs., R$ 23,00



A viagem de Heloísa pela fundação política do sertão, guiada pela narrativa de Riobaldo, se faz primeiro pelos nomes e figuras dos chefes políticos que tentaram abrir esse mundo como espaço ampliado de uma fundação política passível de se tornar referência para o futuro. Cada um desses chefes - o grande e trágico fundador Medeiro Vaz, o mítico e universal Joca Ramiro e o intrometido e moderno Zé Bebelo - é uma figura inauguradora da política, juntos representam diferentes possibilidades e limites do sentido do ato que empreendem e é por meio deles que Heloísa puxa os fios dos dilemas da recomposição política do sertão.
Depois, ligados pela linhagem do ato fundador e no encontro conflitivo e dialogado da cena do julgamento, esses chefes e seus jagunços teatralizam uma verdadeira mudança de procedimentos e de sensibilidade, dilatando os limites da realidade política pela recuperação da palavra aberta a todos e da escuta de seu sentido, o que acena para a possibilidade de uma experiência coletiva nova, recortada da tradição e iluminada pela exigência de abrir um novo contato com essa parte oculta da história, as opções de ação e entendimento dos dominados.
É da cena do julgamento que também vão surgir, associados, o mal demoníaco e fascinante de Hermógenes e o cálculo preventivo e utilitário de Ricardão contra aquela possibilidade, que levará o sertão de volta ao caos promovido pelo privatismo personalizado da força política aí gerada. É nessa cena também que Heloísa situa a marca política da trajetória posterior de Riobaldo, desesperadamente tentando salvar e realizar a revelação de si mesmo na dimensão pública de uma comunidade, o que o levará, no entanto, para o lado oposto, aos fundões sombrios das veredas mortas e ao pacto demoníaco que o remete, novamente, às encruzilhadas da servidão, da guerra, do excesso, do ódio, da revelação, por meio da morte, do enigma de Diadorim.
A encruzilhada que, como relembra Heloísa, alegoriza o nascimento do Brasil como "um entre-dois onde tudo ocorreu mas ainda não chegou a ser", mas que também leva Riobaldo a realizar um ato de fundação, a narrativa dessa travessia singular desdobrando-se no presente como imaginação e possibilidade.
Também Heloísa Starling faz um gesto inaugural, com este livro, ao passar pela prova de trabalhar o pensamento político por intermédio da matéria imaginada da memória. Os riscos do empreendimento de Riobaldo, afinal, ecoam no seu: "Com os olhos desobstruídos da autoridade da tradição" historiográfica e literária, ela refaz os passos fundantes do pensamento político diante dos enigmas renovados da história.


Maria Celia M. Paoli á professora de sociologia na USP.


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