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Historiador inglês discute a abolição do tráfico negreiro
Insurreição no Atlântico negro
JOÃO JOSÉ REIS
Os temas da escravidão e da emancipação dos escravos figuram entre os mais
estudados pela historiografia nos últimos
30 anos, e sob diversas perspectivas. A bibliografia é enorme e não pára de crescer,
sobretudo aquela escrita em inglês. Há
cerca de 15 anos, quando acontecia no
Brasil a controvertida comemoração dos
cem anos de abolição, o historiador Robin Blackburn publicou o livro agora traduzido. Nele, ao sintetizar uma boa parte
da literatura sobre o processo de abolição
da escravatura nas Américas, ele oferece
uma narrativa inteligente de um fenômeno complexo, na boa tradição da historiografia marxista inglesa.
Blackburn trafega entre grandes intelectuais e abolicionistas, governo e sociedade, colônia e metrópole, escravo e senhor, investiga os interesses materiais e
seus vínculos com o debate ideológico,
propõe análises sofisticadas da ação política enquanto expressão dos embates de
classe e da diplomacia entre as grandes e
pequenas potências escravistas da época.
A geografia coberta não é pequena, dedicando-se individualmente a cada uma
das mais importantes regiões escravistas
das Américas e suas respectivas metrópoles.
EUA, Cuba e Brasil
Blackburn promete para um outro trabalho a análise de três dos mais vigorosos
sistemas escravistas do hemisfério -o
Sul dos Estados Unidos, Cuba e Brasil-,
que só libertaram seus escravos durante a
segunda metade do século 19. Brasil e Cuba ganham um capítulo da obra, tratados
como casos que escaparam à primeira
grande onda abolicionista discutida pelo
autor. Dessa onda fez parte a abolição do
tráfico de escravos, combatido globalmente pela Inglaterra desde o início do
oitocentos e que trouxe importantes consequências para aquelas duas regiões. A
abolição do tráfico é um dos assuntos relevantes do livro.
Blackburn cobre o período que vai da
revolução americana da independência,
momento em que algumas das colônias
do norte adotaram tímida legislação
emancipacionista, até a revolução de
1848 na Europa, ano em que a França
aboliu a escravidão em suas colônias caribenhas.
Esse o período que se convencionou
chamar a era das revoluções, quando o
mundo atlântico foi sacudido por polêmicas ideológicas, debates políticos, lutas
de classes, movimentos de descolonização e outros conflitos armados que tiveram como foco a conquista de liberdades
políticas e civis, liberdades individuais e
de povos inteiros, num Ocidente dominado por estruturas sociais e de poder
aristocráticas e que se encontrava atolado
no tráfico e na escravidão de milhões de
africanos e seus descendentes.
Os aspectos políticos e ideológicos da
escravidão, principalmente no meio anglo-saxão, já foram discutidos por diversos autores, entre eles David Brion Davis
em exaustiva obra, "The Problem of Slavery in the Age of Revolution, 1770-1823".
Blackburn percorrerá muito o terreno
coberto por Davis, mas além de ampliar o
escopo geográfico, sua abordagem é mais
integrada por elementos da história social e econômica. É uma discussão mais
abrangente.
Nesse período de retórica concentrada
em torno do tema da liberdade, a escravidão, como escreveu Davis, se tornaria um
problema moral. Todos os grandes movimentos reformistas e revolucionários nas
colônias ou nas metrópoles se viram
obrigados a discuti-la, por insistência de
abolicionistas impertinentes, religiosos
tementes a Deus e escravos impacientes.
Todos de alguma forma apontavam a hipocrisia dos belos discursos libertários
recitados por patriotas, revolucionários e
reformistas que, ao mesmo tempo, não
hesitavam em ter suas senzalas bem abastecidas e severamente disciplinadas -inclusive gente grande, como Jefferson e
Washington.
Essa seria talvez a grande contradição
moral da época, resolvida por muitos
mediante a divulgação dos primeiros escritos mais sistemáticos em defesa da tese
de que os negros pertenciam a uma outra
espécie de humanidade, quando não
eram simplesmente excluídos do gênero
humano.
Altos e baixos
A tarefa de Blackburn não é fácil, porque não é fácil controlar a bibliografia a
respeito de tema tão vasto, escrita em diversas línguas, cobrindo tantas regiões.
Por isso seu livro tem altos e baixos. É
muito detalhado, por exemplo, quanto
ao abolicionismo inglês, um tema cuja literatura já era enorme na década de 1980
e não parou de crescer desde então.
A trajetória desse abolicionismo é explicada, em quase cada lance e personagem, desde os anos de 1770 até 1838,
quando terminou antes da hora prevista,
por pressão dos libertos, o regime de
"aprendizado" estabelecido para eles no
Caribe inglês por uma lei emancipacionista passada cinco anos antes. O abolicionismo europeu, sobretudo o inglês,
em geral tratou o problema da escravidão
como parte de reformas democráticas
mais amplas. Apesar de decidir suas vitórias principalmente por meio de jogos de
poder na cúpula de governo, o movimento também teve seu lado popular.
Na Grã Bretanha as campanhas de rua
mobilizaram trabalhadores, inconformistas religiosos, marinheiros, mulheres
e outros grupos em esforços memoráveis
para a obtenção de milhares de assinaturas firmadas sobre petições enviadas aos
parlamentares. Blackburn desce a detalhes dessas duas frentes da luta antiescravista, a parlamentar e a popular, inscrevendo-as de maneira compreensível e
convincente na dinâmica da história social e política inglesa da época.
Já em relação ao Brasil, a região que
mais importou escravos da África, a discussão é sugestiva em muitos aspectos,
mas superficial em sua demonstração
empírica, talvez porque baseada numa
bibliografia rala. Por exemplo, as diversas
e bem conhecidas memórias proto-abolicionistas das décadas de 1820 a 1840 não
são examinadas, exceto a representação
de José Bonifácio à Assembléia Constituinte de 1823. Aliás, no caso da América
ibérica como um todo, o autor oferece
uma visão para lá de panorâmica, embora útil, sobre as leis abolicionistas feitas
-e às vezes desfeitas- no calor dos movimentos de descolonização e formação
de Estados nacionais. A explicação esboçada por Blackburn a respeito da pouca
tinta gasta sobre a região -a menor importância da escravidão aqui, exceto Cuba e Brasil- não é muito convincente, e
ele próprio desconfia dela.
Em termos da política do cotidiano foram os escravos que desde sempre atuaram na linha de frente da luta pela liberdade, e isso Blackburn admite, embora
não aprofunde. As fortes relações entre a
política escrava miúda e seu conteúdo
cultural, inclusive o papel da religião africana, com os movimentos de maior porte
podem ser verificadas na revolução do
Haiti, como esclarece Carolyn Fick em estudo inovador, "The Making of Haiti:
The Saint Domingue Revolution from
Below".
"Jacobinos negros"
Este livro ainda não estava disponível
quando Blackburn escreveu o seu, que
apenas tangencia o tema. Mesmo assim,
o autor proporciona uma discussão esclarecedora sobre o mais complexo e empolgante capítulo da libertação dos escravos nas Américas, equilibrando sua narrativa entre o abolicionismo metropolitano no contexto da revolução francesa e o
movimento escravo naquela que era a colônia européia mais próspera do Caribe.
Apesar de alguma hesitação, os rebeldes
-muitos deles ex-escravos, como o
grande Toussaint Louverture- terminaram por destruir a escravidão na prática,
entre 1791 e 1793, e forçar a Convenção
Nacional da França revolucionária a aboli-la de direito, em 1794.
Ao longo de dez anos os "jacobinos negros" enfrentaram e superaram divisões
em seu próprio meio, combateram e venceram forças enviadas pela Inglaterra, Espanha e França, as grandes potências européias da época. Após a derrota das forças napoleônicas, encarregadas de restabelecer a escravidão e a ordem colonial,
eles proclamaram a independência da
ilha em 1804, só então batizada como
Haiti. A escravidão nas Américas não seria a mesma depois disso. O chamado
"haitianismo" circulou pelo Atlântico negro durante muitas décadas, levando esperança aos escravos e temor aos senhores.
A narrativa de Blackburn vincula a resistência explícita e coletiva dos escravos
com as lutas abolicionistas nas colônias e,
sobretudo, nas metrópoles. Argumenta
que os líderes escravos souberam avaliar
as conjunturas políticas a seu redor, explorando em benefício de suas causas os
debates relacionados com as reformas da
instituição escravista, além dos conflitos
abertos e armados entre os homens livres. Durante a guerra pela independência americana exploraram vantagens
aliando-se ao lado que acenassem com a
liberdade mais convincentemente.
No caso do Haiti, aproveitaram-se dos
conflitos intensos entre republicanos e
monarquistas, brancos e mulatos, "petits
blancs" e "grands blancs", e as diversas
facções políticas no interior da França revolucionária. Nas colônias britânicas
-Barbados, em 1816, Demerara, em
1823, e Jamaica, em 1831-32-, milhares
de escravos participaram de insurreições
cujos líderes os haviam convencido de
que notícias a respeito de discussões parlamentares e atos governamentais visando a reformar aspectos mais cruentos da
escravidão eram na verdade decretos
emancipacionistas emitidos pela metrópole e desobedecidos pelos senhores e
governos coloniais.
Blackburn não resolve de maneira simplista qualquer debate historiográfico em
torno do fim do tráfico e da escravidão.
Um dos mais importantes e caros à tradicional interpretação marxista foi provocado por Eric Williams em "Capitalism
and Slavery" e diz respeito ao fim do regime nas colônias britânicas do Caribe. Segundo Williams, "os capitalistas primeiro encorajaram a escravidão nas Índias
ocidentais e depois ajudaram a destruí-la". Blackburn não dá uma rasteira em
Williams, mas sobe sobre seus ombros
para ver mais longe e demonstra que os
"capitalistas" não formavam um bloco
coerente e que a abolição foi decidida
num processo complexo de lutas políticas e de classe nas colônias e na metrópole.
A tradução do livro, embora em geral
fluente, tem problemas às vezes curiosos,
talvez por falta de uma revisão técnica
mais cuidadosa com o vocabulário especializado. A certa altura (nota 17 do capítulo 11), "drivers and skilled slaves" foi
traduzido, espantosamente, como "motoristas [!" e hábeis escravos", onde deveria ser "feitores e escravos especializados". A palavra "maroon" (pág. 32) foi
mantida no original, quando poderia ter
sido traduzida por "quilombola", termo
vigente na literatura brasileira sobre escravidão. Em diversas passagens que se
referem à agricultura açucareira, melhor
teria sido usar os termos engenho e senhor de engenho e não "plantation"
(mantido no original) e "dono de plantation". No próprio título a expressão do
original "colonial slavery", ao ser traduzida por "escravismo colonial", remete a
uma perspectiva específica de interpretação que não é a do autor, sendo por isso
mais apropriado traduzi-la por "escravidão colonial", como aliás aparece em vários momentos do texto.
Nenhum dos problemas apontados diminui a importância deste livro, pelo valor de suas análises sutis. Sua publicação
deve ainda ser aplaudida porque há pouca coisa escrita ou traduzida no Brasil sobre a escravidão de uma perspectiva continental.
A Queda do Escravismo Colonial, 1776-1848
Robin Blackburn
Tradução: Maria Beatriz de Medina
Record (Tel.0/xx/21/5585-2047)
602 págs., R$ 55,00
João José Reis é historiador e professor na Universidade Federal da Bahia.
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