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São Paulo, sábado, 08 de fevereiro de 2003

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Filósofo húngaro afirma que capitalismo atual é perdulário e autodestrutivo

Capitalismo pós-capitalista

JACOB GORENDER

Húngaro radicado na Inglaterra, onde fez carreira universitária, o autor ambicionou com esta obra para lá de volumosa nada mais, nada menos do que oferecer a "Suma Marxológica" do final do século 20. Daí a variedade de temas e autores por ele abordados, com profundidade e competência, no entanto demasiado desiguais. O texto passa, com frequência, da exposição de questões abstratas à crônica política. Uma vez que a obra data de 1995, a crônica ficou, em parte considerável, desatualizada. Se o hermetismo não é do gosto do autor, não se pode dizer o mesmo de sua propensão à prolixidade.
Dotado de grande erudição, István Mészáros desfila pelas páginas do livro abordagens detalhadas e citações nutridas de muitas dezenas de autores. Marx, Engels, Lênin e Lukács aparecem com uma participação privilegiada, mas também ganham destaque Hegel, Bakunin, Adam Smith, Weber, Galbraith, Burnham, Polanyi, Hayek, Keynes, Friedman, Babbage, Parsons, Stálin e numerosos outros. Sob este aspecto, o leitor tem à disposição um fichário qualificado.
Mészáros sofreu influência especial de Rosa Luxemburgo, mas, sobretudo, de Lukács, do qual foi discípulo e seguidor. Daí as numerosas referências que recebe o autor de "História e Consciência de Classe", as quais não excluem a crítica a seus recuos e acomodações diante das pressões soviéticas. Os acontecimentos de 1956 -quando a Hungria sofreu a invasão de tropas soviéticas- impuseram, sem dúvida, marca particular no pensamento de Mészáros, além de obrigá-lo a expatriar-se.
O título corresponde à idéia central de que o conceito de capital não se identifica com o de capitalismo. Não se trata de novidade com relação a Marx, que se referiu a formas do capital anteriores à sociedade burguesa. Aí entravam as variedades históricas do capital comercial e do capital usurário. Contudo, Marx não imaginou formas "pós-capitalistas" do capital.
A novidade de Mészáros consiste em propor a presença e a dominação do capital em sociedades pós-capitalistas, como a que existiu na União Soviética. O capital nela permaneceu porque persistiu a organização hierárquica do trabalho, simultaneamente com a separação entre a produção e o seu controle. Por consequência, persistiu a extração do excedente econômico já não por uma classe de capitalistas, porém por um segmento de burocratas, os quais deram continuidade ao domínio do capital. Para superar o capital, seria necessária uma revolução que não foi realizada.
Mészáros expõe a sociedade capitalista, atualmente imperante no planeta, como uma sociedade perdulária, caracterizada por desperdícios cada vez maiores, atolada na massa crescente de produtos rapidamente descartáveis. Seria, sob este aspecto, uma sociedade não só destrutiva, mas também autodestrutiva. A ênfase no desperdício e no descartável também constitui novidade com relação a Marx, que focalizou a destrutividade das crises cíclicas sem se deter na destrutividade cotidiana, corrente na sociedade capitalista.
O primeiro item, nesta rubrica, é o armamentismo. Já Rosa Luxemburgo havia demonstrado como a produção bélica se torna essencial à absorção de parte da capacidade produtiva social, ao criar um mercado obrigatório, sustentado pelo orçamento estatal, com as características de regularidade e mínimo de risco. A respeito, o autor de "Para Além do Capital" não acrescenta novidade teórica.
Também é muito de passagem que se refere à "obsolescência planejada". Tampouco cita Michel Aglietta, o autor que melhor desenvolveu o tema. A economia cartelizada permite às empresas monopolistas a prática da amortização contábil abreviada do capital fixo, transferindo ao preço final dos produtos a parcela correspondente a essa amortização precipitada, antes do prazo. O que permite aumentar o lucro e substituir os equipamentos quando ainda são tecnicamente utilizáveis, antes da sua obsolescência técnica efetiva. A obsolescência forçada implicaria um desperdício social significativo.

O sociometabolismo
O carro-chefe de Mészáros é a sua pretensa descoberta de operação, no capitalismo, de uma taxa de utilização decrescente dos bens, taxa que supostamente tenderia a zero. Eleva a descoberta à categoria de lei tendencial fundamental do capitalismo. Aqui se manifestaria a propensão destrutiva do capital.
Um dos conceitos mais aplicados no texto é o de sociometabolismo. Em nosso padrão societário, tem vigência um sociometabolismo que confere aos bens duráveis um peso muito maior do que o dos bens não-duráveis. O que sucede é que seria cada vez mais abreviada a durabilidade dos bens duráveis. Trata-se de operação deliberada pelo capital com o objetivo de ampliar, no mercado, a saída para a oferta dos bens em expansão crescente. Porque aí estaria outra característica essencial do capital: sua tendência à expansão ilimitada e descontrolada.
O autor não apresenta uma análise, em termos concretos, do que seria a taxa decrescente de utilização dos bens. Afinal, sabemos que casas e edifícios são demolidos com vistas a modernizações urbanísticas. Mas isto não indica necessariamente uma queda dos prazos de habitabilidade das casas e edifícios. Tampouco ficamos sabendo em que proporção, devidamente quantificada, automóveis e outros meios de transporte, bem como máquinas e equipamentos, estariam sendo supostamente sucateados antes do término do seu prazo de validade. Em algumas cidades, como Havana e Caracas, ainda podemos ver em tráfego cadilacs rabo-de-peixe e outros carrões dos anos 50. Mas semelhante arcaísmo não é recomendável como padrão -nem é generalizado.
O que Mészáros oferece de concreto não está isento de controvérsia. Podemos concordar com a asserção de que o desenvolvimento dos meios de transporte coletivo não costuma ter a prioridade que deveria merecer dos poderes públicos, o que favorece o automóvel individualizado e implica desperdícios sociais evitáveis. Mas o autor de "Para Além do Capital" escorrega feio quando critica a compra de câmaras fotográficas pelo fato de que só teriam serventia na época de férias. Ou quando condena o uso de computadores e o consumo excessivo de papel em escritórios informatizados, nos quais sugere que seria suficiente a velha máquina de datilografar.
Afinal, as roupas de inverno ficam no armário a maior parte do ano e os computadores trouxeram vantagens que compensam imensamente o gasto de papel. Contrariando a tradição marxista, Mészáros manifesta aversão ao desenvolvimento das forças produtivas.

A superação do capital
Mas a superação do domínio do capital não se dará pela via social-democrata, nem pela soviético-estalinista. Ambas fracassaram historicamente. Em especial, o programa soviético do "socialismo em um só país" redundou em desastre incomensurável. Em contrapartida, o domínio do capital, sob a forma capitalista moderna, não se livrou de contradições profundas mediante o apelo à intervenção do Estado. Este deixou de ser uma instituição meramente política, própria da superestrutura, conforme a terminologia marxista, e se integrou definitivamente na infra-estrutura econômica. Mas essa transformação só alivia pressões emergenciais, enquanto acentua tremendamente as contradições estruturais, gerando gravíssimas desigualdades e desenhando ameaças de destruição em massa. Superar o capital se configura como tarefa urgente para a humanidade.
Segundo o autor, o capital só será extinto com o advento do sistema comunal de produção e consumo. Neste, deverá efetivamente desaparecer a divisão hierárquica do trabalho, de tal maneira que todos os agentes sociais gozarão de situação igualitária. Um novo sociometabolismo passará a ter vigência.
No final da "Introdução", encontramos uma síntese dos traços fundamentais desse sistema comunal (porém não coletivista). Essa alternativa socialista implicará a regulação pelos próprios produtores das metas do processo de trabalho, com eliminação dos planos impostos de cima; o planejamento virá de baixo e afastará planos arbitrários, fictícios e irrealizáveis; a distribuição da força de trabalho e dos bens produzidos se fará por consenso coletivo, afastando tanto a prepotência do poder político quanto a anarquia do mercado; os produtores serão motivados por incentivos morais e materiais, sem apelo a coações como a das normas "stakanovistas" do regime soviético; os membros da sociedade assumirão responsabilidades voluntárias no exercício de suas funções, suprimindo a irresponsabilidade institucionalizada, própria de todas as variedades do capital.
Ao terminar a leitura do milhar e tanto de páginas, deparamo-nos com a conclusão de que o caminho a percorrer para chegar ao sistema comunal é que não fica, nem de longe, satisfatoriamente esclarecido. Nem seria de esperar algo diferente.
Mészáros empreende, no final de sua obra, uma crítica contundente e acertada das utopias marxianas acerca da sociedade socialista. Em particular, aquelas que se referem à messiânica atribuição ao proletariado da missão histórica de auto-redenção com simultânea redenção da humanidade. Mészáros faz referência às posições chauvinistas assumidas pelos trabalhadores diante de conflitos nacionais e à sua cooptação pelo reformismo do poder burguês. A realidade prática se distancia muito da utopia teórica.
Isso, no entanto, não é suficiente para colocar o autor à altura do conjunto de fatores característico da contemporaneidade. Escapa-lhe, muito especialmente, o dinamismo do capital em sua moderna forma capitalista. A rigor, podemos dizer que o filósofo húngaro se situa aquém do capital.


Para Além do Capital
István Mészáros
Tradução: Paulo César Castanheira e Sérgio Lessa
Ed. da Unicamp/Boitempo
(Tel. 0/ xx/ 19/3788-7728)
1.102 págs., R$ 87,00


Jacob Gorender é historiador e autor de "Marxismo sem Utopia" (Ática). Foi professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP.


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