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Filósofo húngaro afirma que capitalismo atual é perdulário e autodestrutivo
Capitalismo pós-capitalista
JACOB GORENDER
Húngaro radicado na Inglaterra, onde
fez carreira universitária, o autor ambicionou com esta obra para lá de volumosa nada mais, nada menos do que oferecer a "Suma Marxológica" do final do século 20. Daí a variedade de temas e autores por ele abordados, com profundidade
e competência, no entanto demasiado
desiguais. O texto passa, com frequência,
da exposição de questões abstratas à crônica política. Uma vez que a obra data de
1995, a crônica ficou, em parte considerável, desatualizada. Se o hermetismo não é
do gosto do autor, não se pode dizer o
mesmo de sua propensão à prolixidade.
Dotado de grande erudição, István
Mészáros desfila pelas páginas do livro
abordagens detalhadas e citações nutridas de muitas dezenas de autores. Marx,
Engels, Lênin e Lukács aparecem com
uma participação privilegiada, mas também ganham destaque Hegel, Bakunin,
Adam Smith, Weber, Galbraith, Burnham, Polanyi, Hayek, Keynes, Friedman, Babbage, Parsons, Stálin e numerosos outros. Sob este aspecto, o leitor tem à
disposição um fichário qualificado.
Mészáros sofreu influência especial de
Rosa Luxemburgo, mas, sobretudo, de
Lukács, do qual foi discípulo e seguidor.
Daí as numerosas referências que recebe
o autor de "História e Consciência de
Classe", as quais não excluem a crítica a
seus recuos e acomodações diante das
pressões soviéticas. Os acontecimentos
de 1956 -quando a Hungria sofreu a invasão de tropas soviéticas- impuseram,
sem dúvida, marca particular no pensamento de Mészáros, além de obrigá-lo a
expatriar-se.
O título corresponde à idéia central de
que o conceito de capital não se identifica
com o de capitalismo. Não se trata de novidade com relação a Marx, que se referiu
a formas do capital anteriores à sociedade
burguesa. Aí entravam as variedades históricas do capital comercial e do capital
usurário. Contudo, Marx não imaginou
formas "pós-capitalistas" do capital.
A novidade de Mészáros consiste em
propor a presença e a dominação do capital em sociedades pós-capitalistas, como a que existiu na União Soviética. O capital nela permaneceu porque persistiu a
organização hierárquica do trabalho, simultaneamente com a separação entre a
produção e o seu controle. Por consequência, persistiu a extração do excedente econômico já não por uma classe de capitalistas, porém por um segmento de
burocratas, os quais deram continuidade
ao domínio do capital. Para superar o capital, seria necessária uma revolução que
não foi realizada.
Mészáros expõe a sociedade capitalista,
atualmente imperante no planeta, como
uma sociedade perdulária, caracterizada
por desperdícios cada vez maiores, atolada na massa crescente de produtos rapidamente descartáveis. Seria, sob este aspecto, uma sociedade não só destrutiva,
mas também autodestrutiva. A ênfase no
desperdício e no descartável também
constitui novidade com relação a Marx,
que focalizou a destrutividade das crises
cíclicas sem se deter na destrutividade cotidiana, corrente na sociedade capitalista.
O primeiro item, nesta rubrica, é o armamentismo. Já Rosa Luxemburgo havia demonstrado como a produção bélica
se torna essencial à absorção de parte da
capacidade produtiva social, ao criar um
mercado obrigatório, sustentado pelo orçamento estatal, com as características de
regularidade e mínimo de risco. A respeito, o autor de "Para Além do Capital" não
acrescenta novidade teórica.
Também é muito de passagem que se
refere à "obsolescência planejada". Tampouco cita Michel Aglietta, o autor que
melhor desenvolveu o tema. A economia
cartelizada permite às empresas monopolistas a prática da amortização contábil
abreviada do capital fixo, transferindo ao
preço final dos produtos a parcela correspondente a essa amortização precipitada,
antes do prazo. O que permite aumentar
o lucro e substituir os equipamentos
quando ainda são tecnicamente utilizáveis, antes da sua obsolescência técnica
efetiva. A obsolescência forçada implicaria um desperdício social significativo.
O sociometabolismo
O carro-chefe de Mészáros é a sua pretensa descoberta de operação, no capitalismo, de uma taxa de utilização decrescente dos bens, taxa que supostamente
tenderia a zero. Eleva a descoberta à categoria de lei tendencial fundamental do
capitalismo. Aqui se manifestaria a propensão destrutiva do capital.
Um dos conceitos mais aplicados no
texto é o de sociometabolismo. Em nosso
padrão societário, tem vigência um sociometabolismo que confere aos bens
duráveis um peso muito maior do que o
dos bens não-duráveis. O que sucede é
que seria cada vez mais abreviada a durabilidade dos bens duráveis. Trata-se de
operação deliberada pelo capital com o
objetivo de ampliar, no mercado, a saída
para a oferta dos bens em expansão crescente. Porque aí estaria outra característica essencial do capital: sua tendência à
expansão ilimitada e descontrolada.
O autor não apresenta uma análise, em
termos concretos, do que seria a taxa decrescente de utilização dos bens. Afinal,
sabemos que casas e edifícios são demolidos com vistas a modernizações urbanísticas. Mas isto não indica necessariamente uma queda dos prazos de habitabilidade das casas e edifícios. Tampouco ficamos sabendo em que proporção, devidamente quantificada, automóveis e outros
meios de transporte, bem como máquinas e equipamentos, estariam sendo supostamente sucateados antes do término
do seu prazo de validade. Em algumas cidades, como Havana e Caracas, ainda podemos ver em tráfego cadilacs rabo-de-peixe e outros carrões dos anos 50. Mas
semelhante arcaísmo não é recomendável como padrão -nem é generalizado.
O que Mészáros oferece de concreto
não está isento de controvérsia. Podemos
concordar com a asserção de que o desenvolvimento dos meios de transporte
coletivo não costuma ter a prioridade que
deveria merecer dos poderes públicos, o
que favorece o automóvel individualizado e implica desperdícios sociais evitáveis. Mas o autor de "Para Além do Capital" escorrega feio quando critica a compra de câmaras fotográficas pelo fato de
que só teriam serventia na época de férias. Ou quando condena o uso de computadores e o consumo excessivo de papel em escritórios informatizados, nos
quais sugere que seria suficiente a velha
máquina de datilografar.
Afinal, as roupas de inverno ficam no
armário a maior parte do ano e os computadores trouxeram vantagens que
compensam imensamente o gasto de papel. Contrariando a tradição marxista,
Mészáros manifesta aversão ao desenvolvimento das forças produtivas.
A superação do capital
Mas a superação do domínio do capital
não se dará pela via social-democrata,
nem pela soviético-estalinista. Ambas
fracassaram historicamente. Em especial,
o programa soviético do "socialismo em
um só país" redundou em desastre incomensurável. Em contrapartida, o domínio do capital, sob a forma capitalista
moderna, não se livrou de contradições
profundas mediante o apelo à intervenção do Estado. Este deixou de ser uma
instituição meramente política, própria
da superestrutura, conforme a terminologia marxista, e se integrou definitivamente na infra-estrutura econômica.
Mas essa transformação só alivia pressões emergenciais, enquanto acentua tremendamente as contradições estruturais,
gerando gravíssimas desigualdades e desenhando ameaças de destruição em
massa. Superar o capital se configura como tarefa urgente para a humanidade.
Segundo o autor, o capital só será extinto com o advento do sistema comunal de
produção e consumo. Neste, deverá efetivamente desaparecer a divisão hierárquica do trabalho, de tal maneira que todos
os agentes sociais gozarão de situação
igualitária. Um novo sociometabolismo
passará a ter vigência.
No final da "Introdução", encontramos
uma síntese dos traços fundamentais
desse sistema comunal (porém não coletivista). Essa alternativa socialista implicará a regulação pelos próprios produtores das metas do processo de trabalho,
com eliminação dos planos impostos de
cima; o planejamento virá de baixo e
afastará planos arbitrários, fictícios e irrealizáveis; a distribuição da força de trabalho e dos bens produzidos se fará por
consenso coletivo, afastando tanto a prepotência do poder político quanto a anarquia do mercado; os produtores serão
motivados por incentivos morais e materiais, sem apelo a coações como a das
normas "stakanovistas" do regime soviético; os membros da sociedade assumirão responsabilidades voluntárias no
exercício de suas funções, suprimindo a
irresponsabilidade institucionalizada,
própria de todas as variedades do capital.
Ao terminar a leitura do milhar e tanto
de páginas, deparamo-nos com a conclusão de que o caminho a percorrer para
chegar ao sistema comunal é que não fica,
nem de longe, satisfatoriamente esclarecido. Nem seria de esperar algo diferente.
Mészáros empreende, no final de sua
obra, uma crítica contundente e acertada
das utopias marxianas acerca da sociedade socialista. Em particular, aquelas que
se referem à messiânica atribuição ao
proletariado da missão histórica de auto-redenção com simultânea redenção da
humanidade. Mészáros faz referência às
posições chauvinistas assumidas pelos
trabalhadores diante de conflitos nacionais e à sua cooptação pelo reformismo
do poder burguês. A realidade prática se
distancia muito da utopia teórica.
Isso, no entanto, não é suficiente para
colocar o autor à altura do conjunto de
fatores característico da contemporaneidade. Escapa-lhe, muito especialmente, o
dinamismo do capital em sua moderna
forma capitalista. A rigor, podemos dizer
que o filósofo húngaro se situa aquém do
capital.
Para Além do Capital
István Mészáros
Tradução: Paulo César Castanheira
e Sérgio Lessa
Ed. da Unicamp/Boitempo
(Tel. 0/ xx/ 19/3788-7728)
1.102 págs., R$ 87,00
Jacob Gorender é historiador e autor de "Marxismo sem Utopia" (Ática). Foi professor visitante do
Instituto de Estudos Avançados da USP.
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