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O relógio de Rousseau
MILTON MEIRA DO NASCIMENTO
A instrução sobre a política, preocupação que deve estar no horizonte de todo cidadão, levou Jean-Jacques
Rousseau à construção de uma obra hoje reconhecida
como das mais importantes sobre a política moderna.
Esse reconhecimento, no entanto, demorou a consolidar-se, pois o autor do "Emílio", da "Nova Heloísa", do
"Contrato Social", das "Confissões", do "Discurso sobre a Origem da Desigualdade", para ficarmos apenas
com alguns dos seus textos mais marcantes, foi com
muita frequência considerado contraditório, chorão,
ressentido, briguento e, por isso, muitos achavam que
seus textos deveriam ser lidos e reconhecidos como
problemáticos, porque escritos por essa figura estranha.
No plano da política, foi considerado ou como um individualista extremado ou como um coletivista inimigo
da liberdade, como precursor do socialismo ou defensor do nazismo. Na França revolucionária, de 1789, foi
elogiado por monarquistas e eleito o patrono da Revolução. Uma fortuna tão polêmica só poderia desnortear
os críticos, que não se cansaram de se debruçar sobre o
enigma de um autor e de uma escrita sem precedentes.
É neste quadro que se inscreve o ensaio de Cassirer
não por acaso intitulado "A Questão Jean-Jacques
Rousseau". Rebelando-se contra as múltiplas interpretações que insistiam em mostrar um Rousseau contraditório, Cassirer procura levar a sério uma afirmação
que já estava nas "Confissões", na qual o autor anunciava que todos os seus escritos possuíam uma unidade.
Publicado pela primeira vez em 1932, o seu texto é um
marco importante, uma virada nos estudos sobre Rousseau. Cassirer apresenta-nos um Rousseau que abala os
alicerces da sociedade do século 18, "que tinha elevado a
cultura da forma a um patamar jamais alcançado anteriormente". Nesse século, quase tudo é parecer, simulação, sob a aparência de rigor, de boas maneiras, de pontualidade. Mas, ao fazer desmoronar esse mundo da
forma, fixo e pronto, Rousseau dá início a um movimento "determinado por novas forças criadoras". É
num texto intitulado "Rousseau Juiz de Jean-Jacques",
no qual fala de si mesmo na terceira pessoa, que nós o
vemos expressar de maneira espetacular a ruptura com
o seu século: "Jean-Jacques ama os afazeres, mas odeia e
detesta todo tipo de coação. O trabalho não lhe custa
nada se ele puder executá-lo no seu tempo, e não na hora que um outro lhe determinar (...). Se tiver um negócio a resolver, uma visita ou uma viagem a fazer, ele agirá imediatamente, se nada o forçar: entretanto, se tiver
de fazer isso tudo na hora, ele se insubordinará. Um dos
momentos mais felizes de sua vida foi quando, desistindo de todos os planos futuros e decidido a viver despreocupadamente, desfez-se de seu relógio. "Graças a
Deus", exclamou ele num acesso de alegria, "nunca mais
precisarei saber que horas são'".
Decisão que ao mesmo tempo o isola da sociedade da
forma, das aparências e o faz mergulhar em si mesmo,
num processo de reflexão que o transforma num lugar
privilegiado para observar e entender a sociedade de
seu tempo e indicar como seria possível, mesmo assim,
a construção de uma vida melhor, sobretudo com liberdade.
Será necessário, então, para se entender a sua obra,
acompanhar todos os movimentos de seus escritos e
não tomar uma frase ou outra fora do seu contexto. Por
exemplo, tornaram-se lugar-comum afirmações como
estas: "Rousseau propunha a volta ao estado primitivo
da humanidade"; "o autor do "Contrato Social" preconizava um comunismo sem liberdade"; "defendia a institucionalização da pena de morte e o banimento para
quem não obedecesse às ordens do governo"; "o autor
do "Emílio", um tratado sobre a educação, não conseguiu nem mesmo educar seus filhos"; "a proposta de
um contrato social e da submissão à vontade geral é um
absurdo que só pode partir de um escritor ressentido";
"Rousseau dizia que o homem é um animal depravado".
Essas e outras afirmações soltas são trazidas pelos estudantes de filosofia, no primeiro ano, devido à leitura
de manuais de péssima categoria, e uma das nossas tarefas mais difíceis, nesses cursos, é a de eliminar esses
preconceitos.
Um ponto alto dessa edição do ensaio de Cassirer são
o prefácio e o posfácio de Peter Gay, que nos apresentam o estado dos estudos sobre Rousseau, com algumas
alfinetadas em Derrida e nos seus herdeiros desconstrucionistas. O que ele enfatiza, no seu prefácio, o que muitos não perceberam, é que a teoria política de Rousseau
deve ser tratada, acima de tudo, como instrumento crítico e não como agenda política. Ou seja, quem quiser
entender de política não pode deixar de estudar os princípios do direito político de Rousseau. Mas quem quiser
ali encontrar a bola de cristal para a solução de todos os
problemas da política, que não espere milagres, mas
que se ponha ele mesmo, como cidadão, a encontrar os
caminhos da liberdade, que, com certeza, nos foram
abertos pelo cidadão genebrino.
A Questão Jean-Jacques Rousseau
Ernst Cassirer
Prefácio e posfácio de Peter Gay
Tradução: Erlon José Paschoal e Jézio Gutierre
Editora Unesp (Tel. 0/xx/11/232-7171)
144 págs., R$ 16,00
Milton Meira do Nascimento é professor de ética e filosofia política na USP e autor
de "Opinião Pública e Revolução" (Edusp-Nova Stela).
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