São Paulo, sábado, 08 de abril de 2000


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O fato arquitetônico

CARLOS LEMOS

Dizia Damian Bayon, em suas aulas, que o quadro das manifestações artísticas, no caso das colônias americanas, era totalmente alheio à lógica da sucessão de estilos, própria da história européia das artes. Com razão, pois, aqui, as intervenções estilísticas vieram de cambulhada, levando à formação de conjuntos arquitetônicos sem nexo visível. Não se vê um fio condutor que ordene com clareza a sucessão dos estilo arquitetônicos; por exemplo, o mapa arquitetônico baiano dos séculos 17 e 18 não passa de uma colcha de retalhos. Cada exemplar tem sua personalidade e, todos, qualidade estética indiscutível, mas é vã a tentativa de alinhar os seus estilos de modo cronológico.
As localidades da nossa imensa orla marítima, ao contrário das interioranas, sempre foram frequentadas por arquitetos e engenheiros militares, por técnicos e governantes bem instruídos, por mestres de obras e construtores de ordens religiosas, que eram enviados ininterruptamente à Colônia a fim de atender à demanda crescente de edificações, para distintos fins. Sendo tais profissionais de formação variada e apoiando-se cada um em modelos de distintas origens, torna-se, na verdade, impossível constatar uma ordenação cronológica a partir de variações estilísticas ou de aperfeiçoamentos técnicos correlatos.
A arquitetura do Rio de Janeiro constituiu-se de modo tumultuado como a baiana. Nela atuaram diversos engenheiros militares, todos extremamente conservadores, e zelando sempre pelo maneirismo, que aprenderam com os fortificadores italianos pós-renascentistas, contratados pelos reis espanhóis, para gerenciar o sistema fortificatório das colônias africanas, orientais e americanas. Francisco Frias de Mesquita foi o mais antigo deles; em 1617, fez a praça da igreja de Nossa Senhora do Monserrate, do mosteiro de São Bento. Na sua obra, notam-se, certamente, os padrões do gosto artístico maneirista, determinados por seu superior, o arquiteto italiano Tibúrcio Spanochi, contratado por Felipe 2º, quando Portugal sujeitava-se à Espanha (1580-1640).
Depois de Frias, vieram, entre outros: o engenheiro-mor Manoel Azevedo Fortes, autor da preciosa capela de São José da Ilha das Cobras; o brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim; o engenheiro sargento-mor Francisco José do Roscio, autor, em 1775, do projeto da igreja de Nossa Senhora da Candelária, cuja construção demorou mais de cem anos; e, finalmente, o brigadeiro José Custódio de Sá e Faria, arquiteto, em 1780, da igreja de Santa Cruz dos Militares, que foi inaugurada por d. João 6º somente em 1811. Esta igreja é um exemplo máximo do conservadorismo de tais engenheiros portugueses, que desconheceram o barroco solenemente. Assim, no último quartel do século 18, Sá e Faria se inspirou simplesmente na igreja de Gesú, dos jesuítas de Roma.
Com justa razão, Sandra Alvim optou por deixar de lado a história dos estilos. Porém tal metodologia é inusual entre nós, e a autora a explica: "O enfoque deste livro distancia-se daquele convencionalmente empregado pelo historiador da arquitetura, cujas atenções voltam-se, na maioria das vezes, para a autoria, datação e classificação estilística da obra. A ênfase do trabalho concentra-se na forma e em sua composição, procurando (...) oferecer ao leitor (...) um sistema de análise que o auxilie na identificação dos conjuntos e não apenas dos elementos.(...) Antes de fazer um estudo histórico-sociológico da arquitetura, é necessário analisar detalhadamente o fato arquitetônico em sua verdade formal, livre de conceitos teóricos".
O livro focaliza arquitetos militares, às vezes erroneamente classificados como proto-neoclássicos, assim como arquitetos religiosos, mestres-de-risco improvisados, e os mais variados profissionais, cada um, conforme o caso, servindo às suas ordens, fazendo o que sabe ou o que gosta... E a obra analisa, ainda, fundamentalmente, aquilo que chamamos de partido arquitetônico das igrejas cariocas; isto é, estuda a volumetria do acoplamento dos espaços internos, distinguidos segundo as funções do ritual católico. São do maior interesse as análises referentes às inter-relações das naves e das capelas-mor com os arcos-cruzeiro. Também o estudo dos critérios de iluminação natural dos templos é do maior proveito. Não deixou a autora de examinar as modinaturas, onde os paramentos brancos fazem contraponto com as pedras aparelhadas, que ficam aparentes. Desse modo, estudam-se e dissecam-se os edifícios, a partir da continuidade da prática religiosa, isto é, como continentes variados de um só conteúdo.
A bibliografia existente sobre a história de nossa arquitetura colonial é insignificante diante de vasto panorama das construções e, nele, é necessário distinguir precisamente as obras do litoral e as do interior. Com bastante brilho, surge este estudo, segundo volume de uma série infelizmente interrompida pelo falecimento, em 1997, da professora Sandra Poleshuck de Faria Alvim. É uma pena que não esteja mais nas livrarias o primeiro volume, que trata de revestimentos, retábulos e talha.



Arquitetura Religiosa Colonial no Rio de Janeiro
Sandra Alvim
Editora da UFRJ (Tel: 0/xx/21/226-8786)
356 págs., R$ 52,00 (Vol. 1) e 360 págs., R$ 60,00 (Vol. 2)



Carlos A.C. Lemos é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (USP) e autor de "Casa Paulista" (Edusp).


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