São Paulo, Sábado, 08 de Maio de 1999
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Textos de e sobre Georg Simmel e Norbert Elias atestam influência da sociologia alemã no pensamento nacional
Uma tradição absorvida

GABRIEL COHN

Devagarinho eles foram chegando e agora estão solidamente instalados. Com sua radical capacidade de ir ao fundo das coisas (para a qual têm um termo -"Gründlichkeit"- intraduzível em português, mas que em inglês dá "thoroughness"), os alemães foram ampliando e adensando sua presença na sociologia brasileira em duas frentes decisivas. Primeiro, pela presença na bibliografia, com nomes como Weber e em seguida os frankfurtianos e Habermas (para não falar de Marx, que é universal). Depois, pela formação de jovens quadros intelectuais brasileiros de primeira linha, atraídos para a Alemanha pelos seus programas de intercâmbio cultural.
Agora chegou a hora da colheita. Completando a tarefa antes reservada a uma intelectual com raízes nas duas culturas como Barbara Freitag, um seleto grupo de sociólogos brasileiros vem trazer ao debate a presença alemã nessa área, já agora não restrita aos clássicos, mas atenta ao debate contemporâneo. Não é mais possível ignorar as contribuições de autores como Jessé Souza, com sua criativa incorporação de Weber e Habermas, ou Leopoldo Waizbort, com seus trabalhos sobre a sociologia da música em Weber e Adorno e com sua importante tese (ainda inédita) sobre Simmel, ou Sérgio Costa, que tem o mérito de trazer para o nosso meio figuras como o responsável pela recuperação na teoria social do tema da "luta pelo reconhecimento", Axel Honeth. Desses três sociólogos, dois estão presentes como organizadores e como autores em coletâneas de publicação recente.

Simmel e a modernidade
Publicada no final do ano passado, a coleção de textos "Simmel e a Modernidade", organizada por Jessé Souza e Berthold Öelze, é uma preciosa adição à ainda escassa bibliografia brasileira sobre esse grande contemporâneo de Durkheim e Weber, de estatura suficiente para não recuar diante de nenhum deles. Na verdade, à parte o frequentemente lembrado texto sobre a metrópole, dele pouco mais tínhamos à disposição do que o importante volume organizado por Evaristo de Moraes Filho para a coleção "Grandes Cientistas Sociais". Na coletânea de Souza a Öelze não temos uma panorâmica da obra sociológica de Simmel, mas um conjunto de textos com foco preciso. Trata-se de ver como Simmel enfrenta a questão da modernidade, que está no âmago da sua obra e se exprime no próprio gênero de que se vale para dar conta do seus temas: o ensaio sociológico, criação sua e do qual é um mestre que só encontraria par em Adorno.
Os organizadores são precisos no seu prefácio. Simmel estava às voltas (vale a expressão, pois ela traduz bem o modo ágil e sinuoso como ele se aproxima do seu objeto e o rodeia com olhar atento) com "o ritmo próprio, nervoso, fragmentário, fugidio" no qual se manifesta, "no nível do cotidiano e das consciências singulares, a enorme transformação levada a cabo pelas grandes mudanças estruturais do mundo moderno". Essa formulação já mostra o cuidado dos organizadores com a mais rigorosa atenção às características do pensamento que estão apresentando, como se confirma na introdução de Jessé Souza, um breve e denso texto de 11 páginas sobre "a crítica do mundo moderno em Georg Simmel".
É verdade que esse cuidado com a fidelidade aos textos em alguns momentos chega ao exagero, levando à proliferação de uma prática discutível por si mesma. Trata-se do recurso à apresentação, entre parênteses, do termo original sempre que a tradução possa dar margem a dúvidas. Isso pode ser útil ao leitor que tenha acesso ao original (e que portanto dispense a tradução), mas amarra demais a leitura. É uma pena, porque o cuidado com os textos é evidente e revela sensibilidade para aquilo que esse recurso acaba prejudicando, que é a fluência e a finura próprias ao ensaio. Mas isso não compromete a importância desse conjunto de 11 textos de Simmel (incluindo alguns indispensáveis, como os dedicados à "tragédia da cultura" e ao "dinheiro na cultura moderna", e outros em que se cruzam a análise sociológica com a análise estética) e quatro estudos sobre Simmel ou inspirados nele (como o interessante artigo de Gilberto Velho sobre "unidade e fragmentação em sociedades complexas").
Voltemos agora nossa atenção para a outra coletânea, dedicada à obra de Norbert Elias. Aqui aparentemente estamos em outro campo, longe de Simmel. Ou não? De acordo com Leopoldo Waizbort, isto não é o caso. Num artigo notavelmente instigante, ele procura mostrar que "os elementos fundantes e fundamentais da sociologia de Norbert Elias derivam da obra de Georg Simmel". A passagem de um para outro é fluente, sustenta Waizbort, com argumentos que chegam a desconcertar, como quando demonstra como a mera substituição de dois termos numa citação de Simmel nos leva direto ao universo da Elias.
Mas esse livrinho interessante guarda outras preciosidades, como o artigo de Jessé Souza sobre "Elias, Weber e a Singularidade Cultural Brasileira". Fazendo uso de modo muito criativo da noção de "ambiguidade cultural", ele traz à tona as diferenças nos dois autores e aplica isso a uma reconstrução de aspectos importantes da reflexão brasileira sobre o Brasil. De passagem, o seu exame da relação entre os paradigmas da raça e da cultura nas interpretações do Brasil produzidas na primeira metade deste século suscita formulações incisivas como a de que "o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda tem as mesmas qualidades desprezíveis do negro de Gobineau".
Num registro mais metodológico, Sérgio Miceli oferece uma demonstração exemplar de como a afinidade entre o autor comentado e o comentarista pode resultar em alto "rendimento analítico", para usar uma das suas expressões prediletas. Discutindo a espinhosa questão da determinação nas relações entre os diversos domínios da vida social, Miceli consegue produzir um texto arguto e fino, numa linguagem que se amolda ao seu objeto com uma desenvoltura que talvez arrancasse um gesto de apreciação, não de Elias, que não é um grande estilista, mas do próprio Simmel. Some-se a isso os textos da antropóloga Heloísa Pontes, preocupada com a relevância de Elias para a sua ciência, e de Frederico Neiburg, que usa Elias para discutir a questão da violência política, e a conclusão se impõe: uma bela homenagem ao centenário do nascimento dessa figura que saiu do completo esquecimento para tornar-se, ainda em vida, algo próximo a um clássico (e que, mimado na velhice, acabou sendo levado a publicar um pouco a mais do que o seu fôlego permitiria).

Elias e o tempo
Os dois livros de Norbert Elias recentemente publicados certamente serão do interesse dos seus leitores habituais. Mas é difícil não retirar deles a impressão de que o forte de Elias consiste mesmo na análise de processos sociais de longa duração, e que suas contribuições à sociologia do conhecimento, como é o caso em "Envolvimento e Alienação" (Bertrand Brasil, 160 págs, R$ 12,00), não são em nada comparáveis às do seu grande mestre Karl Mannheim. Deixando-se de lado a decisão do tradutor, bastante discutível embora longamente justificada por ele, de substituir o termo "distanciamento" (que traduziria literalmente o original) por "alienação", o livro estica até a exaustão um argumento que caberia num artigo. Ao cabo de um longo trajeto, que percorre desde a pintura seiscentista até problemas de filosofia da ciência, fica uma advertência do autor, é verdade que perfeitamente civilizada: a de que uma concepção da sociedade e da natureza centrada em processos e relações e portanto avessa à reificação conceitual demonstra que o distanciamento faz mais justiça às exigências evolutivas da racionalidade do que o mergulho irrefletido no envolvimento.
Algo semelhante pode ser dito do estudo "Sobre o Tempo" (Jorge Zahar, 168 págs., 17,00), em que também comparece o combate de Elias contra a substantivação de conceitos relacionais que melhor se exprimem em formas verbais. O tema é fascinante, mas Elias não tem envergadura para discuti-lo em profundidade por sua própria conta, e dispensa o uso de bibliografia específica, mesmo quando clássica. Nos dois livros aprende-se mais sobre Elias do que sobre seus temas.
"Acompanhando mais ou menos de perto, embora sem saber, os resultados das pesquisas levadas a cabo um pouco antes por Norbert Elias, os frankfurtianos perceberam que, conforme a era moderna progride, a reprodução das estruturas sociais pouco a pouco se desloca para o âmbito interior do indivíduo, desvanecendo seus estímulos externos". A frase é do sociólogo gaúcho Francisco Rüdiger no livro "Comunicação e Teoria Crítica da Sociedade" (Ed. da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 261 págs., R$ 20,00) que dedica à reconstrução da crítica do processo cultural no capitalismo tardio realizada por Adorno e a um exame do próprio conceito de indústria cultural no qual essa crítica se estriba. Uma crítica da cultura que, para Rudiger, evoca as concepções de Simmel sobre a "tragédia da cultura moderna". Faz justiça a Simmel a lembrança de que ele tem mais a ver com Adorno do que este estava disposto a admitir. A cortante referência de Adorno à "singela metafísica" das relações entre a vida e as formas em Simmel não basta para obscurecer quanto ele (e Benjamin) podem ter aprendido com o seu exercício de uma visão microscópica do social expressa na forma do ensaio.
Mas isto só dá uma idéia de quanto este livro é estimulante. Trata-se de um tratamento de alta qualidade de um tema controvertido e difícil. O autor escapa de todos os chavões e produz obra corajosa e oportuna. Um digno fecho, na verdade, para um conjunto de textos que revelam a sofisticação com que a contribuição alemã é incorporada entre nós por uma nova geração de sociólogos.



Simmel e a Modernidade
Jessé Souza e Berthold Öelze (org.) Editora UnB (Tel.061/226-6874) 274 págs., R$ 22,00

Dossiê Norbert Elias
Leopoldo Waizbort (org.) Edusp (Tel.011/818-5150) 156 págs., R$ 12,00




Gabriel Cohn é professor do departamento de ciência política da USP e editor da revista "Lua Nova", do Cedec (Centro de Estudos e Cultura Contemporânea).



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