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Textos de e sobre Georg Simmel e Norbert Elias atestam influência da sociologia alemã no pensamento nacional
Uma tradição absorvida
GABRIEL COHN
Devagarinho eles foram
chegando e agora estão
solidamente instalados.
Com sua radical capacidade de ir ao fundo das coisas (para a qual têm um termo -"Gründlichkeit"- intraduzível em português, mas que em inglês dá
"thoroughness"), os alemães foram ampliando e adensando sua
presença na sociologia brasileira
em duas frentes decisivas. Primeiro, pela presença na bibliografia,
com nomes como Weber e em seguida os frankfurtianos e Habermas (para não falar de Marx, que é
universal). Depois, pela formação
de jovens quadros intelectuais
brasileiros de primeira linha,
atraídos para a Alemanha pelos
seus programas de intercâmbio
cultural.
Agora chegou a hora da colheita.
Completando a tarefa antes reservada a uma intelectual com raízes
nas duas culturas como Barbara
Freitag, um seleto grupo de sociólogos brasileiros vem trazer ao debate a presença alemã nessa área,
já agora não restrita aos clássicos,
mas atenta ao debate contemporâneo. Não é mais possível ignorar
as contribuições de autores como
Jessé Souza, com sua criativa incorporação de Weber e Habermas, ou Leopoldo Waizbort, com
seus trabalhos sobre a sociologia
da música em Weber e Adorno e
com sua importante tese (ainda
inédita) sobre Simmel, ou Sérgio
Costa, que tem o mérito de trazer
para o nosso meio figuras como o
responsável pela recuperação na
teoria social do tema da "luta pelo
reconhecimento", Axel Honeth.
Desses três sociólogos, dois estão
presentes como organizadores e
como autores em coletâneas de
publicação recente.
Simmel e a modernidade
Publicada no final do ano passado, a coleção de textos "Simmel e
a Modernidade", organizada por
Jessé Souza e Berthold Öelze, é
uma preciosa adição à ainda escassa bibliografia brasileira sobre esse
grande contemporâneo de Durkheim e Weber, de estatura suficiente para não recuar diante de
nenhum deles. Na verdade, à parte
o frequentemente lembrado texto
sobre a metrópole, dele pouco
mais tínhamos à disposição do
que o importante volume organizado por Evaristo de Moraes Filho
para a coleção "Grandes Cientistas Sociais". Na coletânea de Souza a Öelze não temos uma panorâmica da obra sociológica de Simmel, mas um conjunto de textos
com foco preciso. Trata-se de ver
como Simmel enfrenta a questão
da modernidade, que está no âmago da sua obra e se exprime no
próprio gênero de que se vale para
dar conta do seus temas: o ensaio
sociológico, criação sua e do qual é
um mestre que só encontraria par
em Adorno.
Os organizadores são precisos
no seu prefácio. Simmel estava às
voltas (vale a expressão, pois ela
traduz bem o modo ágil e sinuoso
como ele se aproxima do seu objeto e o rodeia com olhar atento)
com "o ritmo próprio, nervoso,
fragmentário, fugidio" no qual se
manifesta, "no nível do cotidiano
e das consciências singulares, a
enorme transformação levada a
cabo pelas grandes mudanças estruturais do mundo moderno".
Essa formulação já mostra o cuidado dos organizadores com a
mais rigorosa atenção às características do pensamento que estão
apresentando, como se confirma
na introdução de Jessé Souza, um
breve e denso texto de 11 páginas
sobre "a crítica do mundo moderno em Georg Simmel".
É verdade que esse cuidado com
a fidelidade aos textos em alguns
momentos chega ao exagero, levando à proliferação de uma prática discutível por si mesma. Trata-se do recurso à apresentação,
entre parênteses, do termo original sempre que a tradução possa
dar margem a dúvidas. Isso pode
ser útil ao leitor que tenha acesso
ao original (e que portanto dispense a tradução), mas amarra demais a leitura. É uma pena, porque
o cuidado com os textos é evidente
e revela sensibilidade para aquilo
que esse recurso acaba prejudicando, que é a fluência e a finura
próprias ao ensaio. Mas isso não
compromete a importância desse
conjunto de 11 textos de Simmel
(incluindo alguns indispensáveis,
como os dedicados à "tragédia da
cultura" e ao "dinheiro na cultura moderna", e outros em que se
cruzam a análise sociológica com
a análise estética) e quatro estudos
sobre Simmel ou inspirados nele
(como o interessante artigo de Gilberto Velho sobre "unidade e
fragmentação em sociedades complexas").
Voltemos agora nossa atenção
para a outra coletânea, dedicada à
obra de Norbert Elias. Aqui aparentemente estamos em outro
campo, longe de Simmel. Ou não?
De acordo com Leopoldo Waizbort, isto não é o caso. Num artigo
notavelmente instigante, ele procura mostrar que "os elementos
fundantes e fundamentais da sociologia de Norbert Elias derivam
da obra de Georg Simmel". A passagem de um para outro é fluente,
sustenta Waizbort, com argumentos que chegam a desconcertar,
como quando demonstra como a
mera substituição de dois termos
numa citação de Simmel nos leva
direto ao universo da Elias.
Mas esse livrinho interessante
guarda outras preciosidades, como o artigo de Jessé Souza sobre
"Elias, Weber e a Singularidade
Cultural Brasileira". Fazendo uso
de modo muito criativo da noção
de "ambiguidade cultural", ele
traz à tona as diferenças nos dois
autores e aplica isso a uma reconstrução de aspectos importantes da
reflexão brasileira sobre o Brasil.
De passagem, o seu exame da relação entre os paradigmas da raça e
da cultura nas interpretações do
Brasil produzidas na primeira metade deste século suscita formulações incisivas como a de que "o
homem cordial de Sérgio Buarque
de Holanda tem as mesmas qualidades desprezíveis do negro de
Gobineau".
Num registro mais metodológico, Sérgio Miceli oferece uma demonstração exemplar de como a
afinidade entre o autor comentado
e o comentarista pode resultar em
alto "rendimento analítico", para usar uma das suas expressões
prediletas. Discutindo a espinhosa
questão da determinação nas relações entre os diversos domínios da
vida social, Miceli consegue produzir um texto arguto e fino, numa linguagem que se amolda ao
seu objeto com uma desenvoltura
que talvez arrancasse um gesto de
apreciação, não de Elias, que não é
um grande estilista, mas do próprio Simmel. Some-se a isso os
textos da antropóloga Heloísa
Pontes, preocupada com a relevância de Elias para a sua ciência, e
de Frederico Neiburg, que usa
Elias para discutir a questão da
violência política, e a conclusão se
impõe: uma bela homenagem ao
centenário do nascimento dessa
figura que saiu do completo esquecimento para tornar-se, ainda
em vida, algo próximo a um clássico (e que, mimado na velhice, acabou sendo levado a publicar um
pouco a mais do que o seu fôlego
permitiria).
Elias e o tempo
Os dois livros de Norbert Elias
recentemente publicados certamente serão do interesse dos seus
leitores habituais. Mas é difícil não
retirar deles a impressão de que o
forte de Elias consiste mesmo na
análise de processos sociais de
longa duração, e que suas contribuições à sociologia do conhecimento, como é o caso em "Envolvimento e Alienação" (Bertrand
Brasil, 160 págs, R$ 12,00), não são
em nada comparáveis às do seu
grande mestre Karl Mannheim.
Deixando-se de lado a decisão do
tradutor, bastante discutível embora longamente justificada por
ele, de substituir o termo "distanciamento" (que traduziria literalmente o original) por "alienação", o livro estica até a exaustão
um argumento que caberia num
artigo. Ao cabo de um longo trajeto, que percorre desde a pintura
seiscentista até problemas de filosofia da ciência, fica uma advertência do autor, é verdade que perfeitamente civilizada: a de que
uma concepção da sociedade e da
natureza centrada em processos e
relações e portanto avessa à reificação conceitual demonstra que o
distanciamento faz mais justiça às
exigências evolutivas da racionalidade do que o mergulho irrefletido no envolvimento.
Algo semelhante pode ser dito
do estudo "Sobre o Tempo" (Jorge Zahar, 168 págs., 17,00), em que
também comparece o combate de
Elias contra a substantivação de
conceitos relacionais que melhor
se exprimem em formas verbais. O
tema é fascinante, mas Elias não
tem envergadura para discuti-lo
em profundidade por sua própria
conta, e dispensa o uso de bibliografia específica, mesmo quando
clássica. Nos dois livros aprende-se mais sobre Elias do que sobre seus temas.
"Acompanhando mais ou menos de perto, embora sem saber,
os resultados das pesquisas levadas a cabo um pouco antes por
Norbert Elias, os frankfurtianos
perceberam que, conforme a era
moderna progride, a reprodução
das estruturas sociais pouco a
pouco se desloca para o âmbito interior do indivíduo, desvanecendo
seus estímulos externos". A frase
é do sociólogo gaúcho Francisco
Rüdiger no livro "Comunicação e
Teoria Crítica da Sociedade" (Ed.
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 261 págs.,
R$ 20,00) que dedica à reconstrução da crítica do processo cultural
no capitalismo tardio realizada
por Adorno e a um exame do próprio conceito de indústria cultural
no qual essa crítica se estriba. Uma
crítica da cultura que, para Rudiger, evoca as concepções de Simmel sobre a "tragédia da cultura
moderna". Faz justiça a Simmel a
lembrança de que ele tem mais a
ver com Adorno do que este estava
disposto a admitir. A cortante referência de Adorno à "singela metafísica" das relações entre a vida
e as formas em Simmel não basta
para obscurecer quanto ele (e Benjamin) podem ter aprendido com
o seu exercício de uma visão microscópica do social expressa na
forma do ensaio.
Mas isto só dá uma idéia de
quanto este livro é estimulante.
Trata-se de um tratamento de alta
qualidade de um tema controvertido e difícil. O autor escapa de todos os chavões e produz obra corajosa e oportuna. Um digno fecho, na verdade, para um conjunto de textos que revelam a sofisticação com que a contribuição alemã é incorporada entre nós por
uma nova geração de sociólogos.
Simmel e a Modernidade
Jessé Souza e Berthold Öelze (org.)
Editora UnB (Tel.061/226-6874)
274 págs., R$ 22,00
Dossiê Norbert Elias
Leopoldo Waizbort (org.)
Edusp (Tel.011/818-5150)
156 págs., R$ 12,00
Gabriel Cohn é professor do departamento de
ciência política da USP e editor da revista "Lua
Nova", do Cedec (Centro de Estudos e Cultura
Contemporânea).
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