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A mais estranha das ilhas
Ensaio célebre do historiador inglês Thompson é analisado por Nicolau Sevcenko
As Peculiaridades
dos Ingleses
E.P. Thompson
Tradução: Antonio Luigi Negro e
Sergio Silva
Ed. da Unicamp
(Tel.0/xx/19/3788-1094)
286 págs., R$ 34,00
NICOLAU SEVCENKO
Para ter uma idéia da importância do trabalho de Edward
Thompson, atentemos para o que
dele dizem alguns dos mais notáveis historiadores do século 20.
Para Christopher Hill, ele "era o
historiador contemporâneo britânico mais conhecido fora da Inglaterra. Sua influência mundial
sobre os estudantes de história
tem sido incalculável... O vasto
sucesso de seu grande livro "A
Formação da Classe Operária Inglesa" (1963), fundou o valor da
história a partir de baixo... Ele não
tinha paciência alguma com o determinismo demográfico e estatístico nem com termos enganosamente "neutros", como "modernização" e "industrialização", usados com o fim de evitar o rude termo "capitalismo". O marxismo de
Thompson era inteiramente
alheio a dogmas preconcebidos".
Com mais verve ainda, Eric
Hobsbawm comentou: "Nos anos
80 Thompson era, de acordo com
o Arts and Humanities Citation
Index, o historiador do século 20
mais recorrentemente citado em
todo o mundo e um dos 250 autores mais frequentemente citados
de todos os tempos... (Sua) obra
aliou paixão e intelecto, os dons
do poeta, do narrador, do analista. Ele foi o único historiador que
conheci dono não só de talento,
brilhantismo e erudição -e da
dádiva da escrita- como também capaz de produzir algo qualitativamente diverso de tudo aquilo que o resto de nós produziu,
impossível de ser medido pela
mesma escala. Chamemos simplesmente de genial, no sentido
tradicional da palavra".
Pode soar generoso, mas está
longe de ser exagerado, sobretudo
partindo de quem parte. Desde o
lançamento da "Formação", que
já surgiu como um clássico,
Thompson se tornou uma das
principais referências mundiais
tanto no que se referia ao desenvolvimento teórico e metodológico da pesquisa em história social
quanto no incremento e qualificação da reflexão histórica como
um dos instrumentos críticos
mais eficazes para o avanço do debate democrático.
Grande polemista, personalidade magnética, capacidade rara de
traduzir com a maior clareza os
mais intrincados argumentos filosóficos, sua popularidade cresceu em progressão contínua. De
seu prestígio único como historiador, ele em breve se tornou a
fonte por excelência da consciência humanitária no Reino Unido.
Quando o conheci, em meados
dos anos 80, não foi como historiador, mas como a voz dominante na campanha pacifista e no
apoio à luta contra o apartheid.
Thompson não era pessoa que
se sentisse à vontade no meio acadêmico, partidário ou de toda instituição restritiva. Vindo de uma
família de longa tradição radical,
ele e o irmão eram comunistas filiados desde a adolescência e ambos lutaram na Segunda Guerra.
Frank foi preso e executado na
Bulgária, Edward lutou na África
e na Itália. Depois da guerra colaborou nas brigadas de solidariedade à Iugoslávia. Em 56, ante as
relutâncias do Partido Comunista
da Grã-Bretanha de aceitar as denúncias aos crimes do stalinismo
e após a invasão da Hungria pelas
tropas soviéticas, ele rompeu com
o partido, junto com a maior parte do notável grupo de historiadores que ali se haviam aglutinado
entre meados dos anos 40 e 50.
Com outros jovens de sua geração, criou a revista "New Reasoner", fonte do que se tornaria a
chamada Nova Esquerda, agrupada a partir de 1958 na "New Left
Review". Na universidade, trabalharia de 47 a 71, a maior parte do
tempo em programas de extensão
voltados para adultos sem formação superior. Devido à intolerância e ao ambiente repressivo pós-68, abandonou a academia. Confrontou as tendências autoritárias
e positivistas dentro do marxismo, mantendo um diálogo crítico
franco com outras correntes,
sempre fiel à suas convicções democráticas e humanitárias, até
sua morte em 93.
Algumas de suas obras básicas
foram publicadas no Brasil, como
"A Miséria da Teoria" (Jorge Zahar, 1981), "Exterminismo e
Guerra Fria" (Brasiliense, 1985),
"A Formação da Classe Operária
Inglesa" (Paz e Terra, 1987), "Senhores e Caçadores" (Paz e Terra,
1987) e "Costumes em Comum"
(Cia. das Letras, 1998). A presente
edição, centrada no ensaio "As
Peculiaridades dos Ingleses", tem
a dupla intenção de revelar ao público a notável carreira intelectual
e política de Thompson, reunindo
ao mesmo tempo textos que condensam as questões teóricas que
se destacaram em sua pesquisa e
em seus debates com as correntes
marxistas e outras predominantes em seu tempo.
Na parte sobre Thompson e sua
obra há um obituário muito tocante, escrito por Eric Hobsbawm, seguido de ensaios bem
formulados sobre seu percurso
historiográfico e político e seu debate crítico com a herança marxista. Seguem-se o seminal "As
Peculiaridades" e mais quatro artigos, sobre a história social, a cultura popular, a interlocução com
a antropologia e a crítica aos usos
do conceito de classe social.
das ilhas
No conjunto, uma edição enxuta, sintética e imprescindível para
todo e qualquer estudioso de história ou ciências sociais, assim como para o público interessado em
refinar o debate político, sobre
questões tão diversas quanto os
potenciais democráticos do socialismo, as prioridades da agenda
social ou a generosidade interessada dos intelectuais.
O ensaio sobre "As Peculiaridades dos Ingleses", sendo a alma e
o esteio do volume, tem uma história que o precede e lhe dá o contexto. Após o momento de ebulição intelectual e associativa que se
seguiu à fundação da Nova Esquerda, em fins dos anos 50, a intensidade das demandas políticas
e da reorganização acadêmica
dragou suas forças. No início dos
anos 60 uma nova geração, encabeçada por Perry Anderson e
Tom Nairn, assumiu a cena.
Anderson se tornaria o novo
editor da "New Left Review" e, ato
contínuo, junto com Nairn, passaria a escrever uma série de artigos revendo a interpretação da
história inglesa legada pelo grupo
anterior. Suas novas fontes teóricas se alinhavam pela revisão estruturalista do marxismo, segundo em especial a cartilha inflexível
de Louis Althusser.
Guerra aos neopositivistas
Em 1963 Thompson reuniria toda sua sofisticada artilharia teórica e abriria guerra contra os neopositivistas, com seu ensaio sobre
"As Peculiaridades". O artigo põe
em cena um impressionante bailado intelectual, em que se revezam com irresistível elegância elementos de crítica, ironia, lucidez
argumentativa, erudição, rigor
conceitual e uma exuberante riqueza de conhecimentos factuais.
O pomo da discórdia era a caracterização que Anderson e
Nairn faziam do processo social e
político ingleses como incompletos, inconsistentes e irresolutos.
Em virtude de uma revolução
conspurcada e um capitalismo
bastardo, a burguesia inglesa seria
atípica, e o proletariado, subordinado, o que resultou num presente mofino e num futuro estéril.
Uma linha de análise sem respaldo de pesquisa e que fazia tábula
rasa da extraordinária produção
dos historiadores marxistas ingleses.
O que Thompson contesta sobretudo em Anderson é sua obstinação em conceber e apenas admitir um e único "modelo" de
processo histórico, de classe social e de revolução, que no caso da
burguesia implicaria na repetição
universal da história francesa e,
no do proletariado, na reedição
por toda parte do episódio russo.
Nas palavras de Thompson:
"Estou me opondo a um modelo
que concentra a atenção sobre um
episódio dramático -"a" Revolução-, ao qual tudo que vem antes e depois deve ser relacionado e
que institui um tipo ideal dessa
revolução contra a qual todas as
outras devem ser julgadas. Mentes que anseiam por um platonismo asseado logo se tornam impacientes com a história real". O que
leva Thompson a conclusões como: "Se não há lugar para ela (a
história real) no modelo, é este
que deve ser abandonado ou refinado".
Essa é a questão das "peculiaridades" da história inglesa. Há no
caso inglês uma interpenetração
entre interesses capitalistas e
agrários, em particular dada a singularidade dessa camada ambivalente que é a "gentry", capitalista,
mas assentada no campo e envolta em práticas senhoriais. Ela redefiniu o conjunto do cenário social, tanto colaborando para a sobrevivência tardia da aristocracia
quanto para a consolidação de
um padrão teatral e legalista da
hegemonia burguesa, baseado
nos tribunais, juízes e numa tradição casuística, aberta a todo tipo
de mediação e negociação. Situação que predispunha, por sua vez,
a classe trabalhadora a uma práxis
de lutar por direitos, franquias e
regulamentações a partir do reconhecimento do seu papel e peso
político particular no confronto
geral das forças sociais.
Atitude utilitarista
A resultante desses processos
peculiares é a mesma na Inglaterra como em outros países, a formação do proletariado e a consolidação do capitalismo. Mas,
Thompson repete várias vezes,
"aconteceu de um modo na França e de outro na Inglaterra". Em
especial, ressalta ele, esse apego ao
prático, ao tópico, ao contingente,
derivava da atitude utilitarista da
burguesia inglesa. Ela negava o
Estado e o controle abstrato da
nação em nome de uma razão
planejadora, em favor do poder
local e da liberdade de iniciativas.
É por isso que não se teria desenvolvido uma ciência política
inglesa, mas sim formulações práticas da gestão econômica e da liberdade de iniciativas. Seria esse
"idioma" empírico que os ingleses aplicariam às ciências naturais
e exportariam, com enorme sucesso, para todo o mundo. No limite, era esse mesmo idioma,
atento ao particular, ao circunstancial, aos mecanismos que comandam a dinâmica da vida e das
mudanças, que Thompson reconhecia como a herança mais preciosa do marxismo inglês, destilado pela sua geração. E é com base
nesse legado atento ao concreto,
às contradições e à vida pulsante
que ele fustigava seus adversários.
"Anderson e Nairn estão muito
tristemente enganados se acham
que, nesses últimos tempos, irão
destronar o "empirismo" em nome de um sistema marxista auto-suficiente, (...) adornado com alguns neologismos. Nem lhes deveria ser permitido empobrecer o
criativo impulso da tradição marxista desse modo. Pois o que falta
ao seu esquema são os "grandes
fatos", e é improvável a Inglaterra
capitular ante um marxismo incapaz de ao menos entabular um
diálogo com o idioma inglês."
Em favor de seu argumento ele
invoca ninguém menos que Engels, o qual em carta a Marx lastimava que "a concepção materialista da história (...) (tenha) muitos amigos hoje em dia, a quem
serve como desculpa para não estudar a história".
No limite, para Thompson, negar o concreto implica em renunciar ao humano, à vida e às circunstâncias que afligem homens e
mulheres de carne e osso, reduzidos à retórica conceitual de uma
doutrina abstrata. Daí seu ataque
a conceitos idealizados de classe e
consciência de classe. "Reduzir
classe a uma identidade é esquecer exatamente onde repousa a
agência, não na classe, mas nos
homens".
Terminemos com uma formulação lapidar que, tanto resume o
argumento deste livro quanto pode servir como uma síntese do
testamento intelectual de Thompson: "A história não pode ser
comparada a um túnel por onde
um trem expresso corre até levar
sua carga de passageiros em direção a planícies ensolaradas. Ou
então, caso o seja, gerações após
gerações de passageiros nascem,
vivem na escuridão e, enquanto o
trem ainda está no interior do túnel, aí também morrem. Um historiador deve estar decididamente interessado, muito além do permitido pelos teleologistas, na qualidade de vida, nos sofrimentos e
satisfações daqueles que vivem e
morrem em tempo não redimido".
Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na USP e autor de "Orfeu
Extático na Metrópole" (Cia. das Letras).
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