São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2001

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O animal simbólico

Uma compreensão filosófica da cultura

A Filosofia das Formas Simbólicas - A Linguagem
Ernst Cassirer
Tradução: Marion Fleischer
Martins Fontes
(Tel. 0/xx/11/239-3677)
416 págs., R$ 36,50

VINICIUS FIGUEIREDO

Dando sequência ao intuito de apresentar ao público livros consagrados lá fora, mas inéditos por aqui, a coleção "Tópicos" acaba de publicar o primeiro volume da obra mais importante de Ernst Cassirer, de 1923. O segundo e o terceiro volumes (1925, 1929), que tratam do mito e do conhecimento, devem ser lançados no próximo ano. Consta da mesma coleção "Ensaio Sobre o Homem", em que Cassirer, no fim da vida, retoma a trilogia dos anos 20. O conjunto faz com que o mais renomado filósofo da escola neokantiana ganhe seu merecido lugar entre nós.
Cassirer sempre circulou nos meios acadêmicos como historiador do pensamento filosófico, literário e científico modernos. Mas já há alguns anos cresce o interesse por sua própria filosofia. Com isso, suas incursões historiográficas passam a ser vistas sob seu viés original: o projeto filosófico de compreender a cultura, entendendo por isso o conjunto das formas simbólicas abarcadas pelo mito, a linguagem, a estética e a ciência, como o processo da progressiva autolibertação do homem.
Essa oportunidade de devolver a Cassirer suas credenciais especulativas, porém, exige acuidade do leitor. Sua crença na emancipação humana soa como se ouvíssemos um iluminista mal acomodado aos tempos sombrios da primeira metade do século 20. Da polêmica travada entre Cassirer e Heidegger em Davos, em 1929, aos elogios que lhe dirige Merleau-Ponty na "Fenomenologia da Percepção", subjaz sempre uma mesma suspeita de fundo: como empreender uma filosofia da cultura, capaz de fornecer às ciências humanas uma fundamentação crítica, sem ceder ao duplo preconceito, antropológico e humanista, conforme o qual o homem dispõe de uma essência inscrita em um processo que a realiza historicamente? A presente publicação, restituindo a Cassirer sua cidadania filosófica, permite medir essa objeção e compreender por que ele é uma peça essencial no quebra-cabeça filosófico contemporâneo.

Método regressivo
Reinterpretação de Kant: "As Formas Simbólicas" tem por origem a tentativa de estender a epistemologia das ciências naturais, fundada por Kant, às ciências do espírito, cujo advento data do século 19. Mas essa aplicação do método regressivo de Kant a todas as formas de simbolização humana dá ao projeto de Cassirer uma feição própria. Sua novidade -perceptível na "Introdução" que, precedendo a abordagem da linguagem, do mito e do conhecimento, abre o volume ora traduzido- pode ser compreendida a partir dos três pontos de incisão que Cassirer realiza sobre a filosofia crítica: o alargamento da noção de teoria, sua interpretação da relação entre forma e matéria da experiência e a abordagem de um tema -a cultura- que, ao contrário da natureza, é essencialmente diacrônico. Como o deslocamento configurado por esses três pontos transcorre sob a noção de "símbolo", compreendê-los em sua articulação dá idéia do que está em jogo com o sistema das formas simbólicas.
Para Cassirer, as ciências naturais constituem um tipo particular de configuração do Universo, ao lado de outras formas de apreensão do ser pela consciência. Cada uma -mito, religião, linguagem e arte, além da teoria- simboliza um aspecto do real, todas envolvendo uma transformação das impressões sensíveis "em um mundo de pura expressão espiritual". Mas definir a teoria como conformação do campo sensível equivale a dizer que ela já opera no nível pré-científico da percepção: como professou Goethe, não tivesse em si mesmo o Sol, o olho não veria sequer a luz. Retomando essa idéia, Cassirer submete a consciência cognitiva a uma análise fenomenológica que, aproximando-a de outras formas de compreensão do sensível, faz dela uma modalidade de inscrição originária do homem no mundo.
Revela-se, assim, a segunda incisão operada sobre o kantismo. Se, como dirão na trilha aqui aberta os filósofos analíticos, a teoria é um "framework" -um "esquema de pensamento" ou "horizonte" que pauta nossas ações mais ordinárias-, a razão disso, para Cassirer, está no fato de que o saber se enraíza na determinação recíproca entre forma e conteúdo, que precede e condiciona toda unidade objetiva. Daí que o objeto não seja senão função da consciência, a "forma de sua própria atividade", enfim, a evidência material da realização do espírito.
Eis-nos no coração do idealismo crítico pleiteado por Cassirer: só há representação onde a consciência recuou diante do ser, onde ela se diferenciou das impressões a fim de configurá-las em uma idealidade significativa. Por isso, o real jamais é reproduzido "ipso facto", ele é toda vez uma expressão do espírito. Por certo, esse recuo frente à matéria admite uma hierarquia. Como mostra esse primeiro volume, a fala representa um ganho simbólico frente ao gesto, pois o som "flutua no éter da significação"; quanto maior for o distanciamento da matéria, mais complexa a simbolização.
Porém, mesmo no seu grau mais próximo do sensível, na mímica, a linguagem dispõe de pregnância simbólica e, nessa medida, expõe em vez de reproduzir conteúdos. Foi munido dessa convicção que Cassirer enfrentou a disputa entre a ontologia de um Hartmann e as filosofias da existência, em voga na Alemanha do início do século; ele propôs, no lugar dessa alternativa que via como dogmática, uma analítica das "diversas leis e formas da expressão" sob as quais se diz o mundo.
Essa opção, convém lembrar, projetou a sombra de Cassirer sobre muita coisa produzida no século 20. Basta pensar nos "schemata" de Ernest Gombrich ou na sociologia da arte de Pierre Francastel: para ambos, sem mencionar Erwin Panofsky, cuja filiação é óbvia, a noção de forma, tal como matizada no texto ora traduzido, é decisiva.

O passo original
Porém, sem mencionar a terceira incisão realizada sobre o kantismo, não saberíamos avaliar a originalidade de Cassirer. O alargamento da teoria e a passagem da imaginação a primeiro plano no trabalho de conformação do sensível servem ao intuito de oferecer uma filosofia do mundo cultural, cuja diversidade se unifica mediante a definição do homem como animal "symbolicum".
Eis o passo mais original e mais controverso de Cassirer. É que fornecer as condições de possibilidade do "faktum" da cultura requer uma reconstrução da gênese das formas simbólicas, cujo desenvolvimento coincide, nas palavras do autor, com a progressiva marcha do espírito rumo a sua auto-objetivação. Estaríamos próximos de Hegel, não fosse o fato de que, passando ao largo da dialética transcendental, Cassirer reconstrói a história do espírito a partir da ampliação da analítica kantiana.
Como fazê-lo, todavia, sem atribuir ao homem uma essência que seja, a um só tempo, tema da análise e unidade de sua inscrição na história? Ao revelar todo seu alcance, o projeto de anexar à analítica as ciências humanas parece cobrar seu preço: a história, dissipando os contornos do homem e remetendo sua explicação a causas remotas, devolve-nos sua figura sob tal diversidade de formas expressivas que, sem uma natureza pressuposta pela análise, não teríamos sequer como nos assegurar de que o sujeito desse processo permanece sendo o homem.
Vale, então, a acusação de humanista? O risco de reincidência dogmática representado pela premissa antropológica não passou despercebido a Cassirer: sua definição da humanidade a partir de nossa capacidade de simbolização faz da cultura um ideal cuja atualização requer, sempre, nossa iniciativa moral. Com isso, a natureza humana, até aqui sob suspeita, se presta a outra interpretação. Em vez do impensado do epistemólogo, ela reaparece como cláusula explícita de leitura, convite e aposta dirigidos a quem, em última análise, detém a palavra -o leitor.


Vinicius Figueiredo é professor de filosofia na Universidade Federal do Paraná.



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