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O animal simbólico
Uma compreensão filosófica da cultura
A Filosofia das Formas
Simbólicas - A Linguagem
Ernst Cassirer
Tradução: Marion Fleischer
Martins Fontes
(Tel. 0/xx/11/239-3677)
416 págs., R$ 36,50
VINICIUS FIGUEIREDO
Dando sequência ao intuito de
apresentar ao público livros consagrados lá fora, mas inéditos por
aqui, a coleção "Tópicos" acaba
de publicar o primeiro volume da
obra mais importante de Ernst
Cassirer, de 1923. O segundo e o
terceiro volumes (1925, 1929), que
tratam do mito e do conhecimento, devem ser lançados no próximo ano. Consta da mesma coleção "Ensaio Sobre o Homem", em
que Cassirer, no fim da vida, retoma a trilogia dos anos 20. O conjunto faz com que o mais renomado filósofo da escola neokantiana
ganhe seu merecido lugar entre
nós.
Cassirer sempre circulou nos
meios acadêmicos como historiador do pensamento filosófico, literário e científico modernos.
Mas já há alguns anos cresce o interesse por sua própria filosofia.
Com isso, suas incursões historiográficas passam a ser vistas sob
seu viés original: o projeto filosófico de compreender a cultura,
entendendo por isso o conjunto
das formas simbólicas abarcadas
pelo mito, a linguagem, a estética
e a ciência, como o processo da
progressiva autolibertação do homem.
Essa oportunidade de devolver
a Cassirer suas credenciais especulativas, porém, exige acuidade
do leitor. Sua crença na emancipação humana soa como se ouvíssemos um iluminista mal acomodado aos tempos sombrios da primeira metade do século 20. Da
polêmica travada entre Cassirer e
Heidegger em Davos, em 1929,
aos elogios que lhe dirige Merleau-Ponty na "Fenomenologia
da Percepção", subjaz sempre
uma mesma suspeita de fundo:
como empreender uma filosofia
da cultura, capaz de fornecer às
ciências humanas uma fundamentação crítica, sem ceder ao
duplo preconceito, antropológico
e humanista, conforme o qual o
homem dispõe de uma essência
inscrita em um processo que a
realiza historicamente? A presente publicação, restituindo a Cassirer sua cidadania filosófica, permite medir essa objeção e compreender por que ele é uma peça
essencial no quebra-cabeça filosófico contemporâneo.
Método regressivo
Reinterpretação de Kant: "As
Formas Simbólicas" tem por origem a tentativa de estender a epistemologia das ciências naturais,
fundada por Kant, às ciências do
espírito, cujo advento data do século 19. Mas essa aplicação do
método regressivo de Kant a todas as formas de simbolização humana dá ao projeto de Cassirer
uma feição própria. Sua novidade
-perceptível na "Introdução"
que, precedendo a abordagem da
linguagem, do mito e do conhecimento, abre o volume ora traduzido- pode ser compreendida a
partir dos três pontos de incisão
que Cassirer realiza sobre a filosofia crítica: o alargamento da noção de teoria, sua interpretação da
relação entre forma e matéria da
experiência e a abordagem de um
tema -a cultura- que, ao contrário da natureza, é essencialmente diacrônico. Como o deslocamento configurado por esses
três pontos transcorre sob a noção de "símbolo", compreendê-los em sua articulação dá idéia do
que está em jogo com o sistema
das formas simbólicas.
Para Cassirer, as ciências naturais constituem um tipo particular de configuração do Universo,
ao lado de outras formas de
apreensão do ser pela consciência. Cada uma -mito, religião,
linguagem e arte, além da teoria- simboliza um aspecto do
real, todas envolvendo uma transformação das impressões sensíveis "em um mundo de pura expressão espiritual". Mas definir a
teoria como conformação do
campo sensível equivale a dizer
que ela já opera no nível pré-científico da percepção: como professou Goethe, não tivesse em si
mesmo o Sol, o olho não veria sequer a luz. Retomando essa idéia,
Cassirer submete a consciência
cognitiva a uma análise fenomenológica que, aproximando-a de
outras formas de compreensão
do sensível, faz dela uma modalidade de inscrição originária do
homem no mundo.
Revela-se, assim, a segunda incisão operada sobre o kantismo.
Se, como dirão na trilha aqui
aberta os filósofos analíticos, a
teoria é um "framework" -um
"esquema de pensamento" ou
"horizonte" que pauta nossas
ações mais ordinárias-, a razão
disso, para Cassirer, está no fato
de que o saber se enraíza na determinação recíproca entre forma e
conteúdo, que precede e condiciona toda unidade objetiva. Daí
que o objeto não seja senão função da consciência, a "forma de
sua própria atividade", enfim, a
evidência material da realização
do espírito.
Eis-nos no coração do idealismo crítico pleiteado por Cassirer:
só há representação onde a consciência recuou diante do ser, onde
ela se diferenciou das impressões
a fim de configurá-las em uma
idealidade significativa. Por isso,
o real jamais é reproduzido "ipso
facto", ele é toda vez uma expressão do espírito. Por certo, esse recuo frente à matéria admite uma
hierarquia. Como mostra esse
primeiro volume, a fala representa um ganho simbólico frente ao
gesto, pois o som "flutua no éter
da significação"; quanto maior
for o distanciamento da matéria,
mais complexa a simbolização.
Porém, mesmo no seu grau
mais próximo do sensível, na mímica, a linguagem dispõe de pregnância simbólica e, nessa medida,
expõe em vez de reproduzir conteúdos. Foi munido dessa convicção que Cassirer enfrentou a disputa entre a ontologia de um
Hartmann e as filosofias da existência, em voga na Alemanha do
início do século; ele propôs, no
lugar dessa alternativa que via como dogmática, uma analítica das
"diversas leis e formas da expressão" sob as quais se diz o mundo.
Essa opção, convém lembrar,
projetou a sombra de Cassirer sobre muita coisa produzida no século 20. Basta pensar nos "schemata" de Ernest Gombrich ou na
sociologia da arte de Pierre Francastel: para ambos, sem mencionar Erwin Panofsky, cuja filiação
é óbvia, a noção de forma, tal como matizada no texto ora traduzido, é decisiva.
O passo original
Porém, sem mencionar a terceira incisão realizada sobre o kantismo, não saberíamos avaliar a
originalidade de Cassirer. O alargamento da teoria e a passagem
da imaginação a primeiro plano
no trabalho de conformação do
sensível servem ao intuito de oferecer uma filosofia do mundo cultural, cuja diversidade se unifica
mediante a definição do homem
como animal "symbolicum".
Eis o passo mais original e mais
controverso de Cassirer. É que
fornecer as condições de possibilidade do "faktum" da cultura requer uma reconstrução da gênese
das formas simbólicas, cujo desenvolvimento coincide, nas palavras do autor, com a progressiva
marcha do espírito rumo a sua
auto-objetivação. Estaríamos
próximos de Hegel, não fosse o fato de que, passando ao largo da
dialética transcendental, Cassirer
reconstrói a história do espírito a
partir da ampliação da analítica
kantiana.
Como fazê-lo, todavia, sem atribuir ao homem uma essência que
seja, a um só tempo, tema da análise e unidade de sua inscrição na
história? Ao revelar todo seu alcance, o projeto de anexar à analítica as ciências humanas parece
cobrar seu preço: a história, dissipando os contornos do homem e
remetendo sua explicação a causas remotas, devolve-nos sua figura sob tal diversidade de formas
expressivas que, sem uma natureza pressuposta pela análise, não
teríamos sequer como nos assegurar de que o sujeito desse processo permanece sendo o homem.
Vale, então, a acusação de humanista? O risco de reincidência
dogmática representado pela premissa antropológica não passou
despercebido a Cassirer: sua definição da humanidade a partir de
nossa capacidade de simbolização faz da cultura um ideal cuja
atualização requer, sempre, nossa
iniciativa moral. Com isso, a natureza humana, até aqui sob suspeita, se presta a outra interpretação.
Em vez do impensado do epistemólogo, ela reaparece como cláusula explícita de leitura, convite e
aposta dirigidos a quem, em última análise, detém a palavra -o
leitor.
Vinicius Figueiredo é professor de filosofia na Universidade Federal do Paraná.
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