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São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

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O novo cinema brasileiro

ALFREDO MANEVY

A chamada "retomada" do cinema brasileiro transcendeu a produção de filmes na última década para incluir o incremento de debates e o amadurecimento de uma reflexão crítica brasileira. Os críticos percorreram, como os produtores, um caminho de acúmulo que hoje resulta numa relação mais dinâmica e madura com o filme nacional. Três livros recém-lançados confirmam que a produção da "retomada" não apenas "foi aceita" pelo público e pela crítica de jornais e revistas especializadas, mas também interagiu com os debates estéticos e evoluiu com eles.
Primeiro livro a ser lançado, "O Cinema da Retomada" é um amplo painel de 90 entrevistas realizadas no âmbito de um projeto de pesquisas coordenado por Lúcia Nagib. O resultado é uma amostra das idéias dominantes no mundo cinematográfico e de alguns dados biográficos dos cineastas. Cineastas ao pé da letra, já que o trabalho exclui autores de experiências importantes com origem na televisão, como é o caso de Guel Arraes, cuja relação com o cinema já era um fato.
Organizado também por Lúcia Nagib, "The New Brazilian Cinema" foi publicado na Inglaterra com artigos de diversos interlocutores da retomada: de Cacá Diegues, apresentando uma política cultural, e José Álvaro Moisés, defendendo números do período Fernando Henrique Cardoso, a críticos como Ismail Xavier, Fernão Ramos, José Carlos Avellar, Luiz Zanin, entre outros, discutindo temas variados.

Inclinação estética
"Cinema de Novo", de Luiz Zanin Oricchio, realiza um balanço lúcido das questões brasileiras abordadas, comparando e comentando um vasto espectro de filmes nacionais. A "feudalização" da violência nas cidades, a representação da história, a relação com o estrangeiro, os amores no fim do milênio, eis alguns dos eixos que possibilitaram a discussão de um amplo conjunto de filmes.
Como aponta Zanin, a retomada teve uma inclinação estética dominante, buscando o uso de gêneros narrativos de fácil comunicação com o público (inclusive alguns já testados na "era Embrafilme"). Daí a tese, presente em "Cinema de Novo", de que "Cidade de Deus" encerra o ciclo da retomada, como obra que finalmente consegue realizar o projeto explícito dessas gerações que o livro de Lúcia Nagib mapeia. Um filme imbuído de questões sociais -"ma non troppo"- e com firme domínio das técnicas visuais contemporâneas.
Nesse sentido, os três livros confirmam que a retomada do cinema brasileiro, longe de ser uma insurreição estética, teve como discurso dominante o diplomático "cada um na sua, mas com alguma coisa em comum" ou, com a dose de realismo do crítico Inácio Araújo, o autêntico "salve-se quem puder".
As incertezas e precariedades do período trouxeram fraturas, rearranjos, perdas, não conseguindo atingir uma gama imensa da população e, de fato, levando muitos cineastas a ir fazer outra coisa na vida.
Essa dimensão mais sombria não se encontra muito presente nos livros. "O Cinema da Retomada" ajuda a revelar duas posturas distintas por parte dos cineastas que conseguiram manter-se em sua profissão: alguns passaram incólumes pelos debates e dilemas estéticos da década, engessando seus projetos numa tecla única, enquanto outros interagiram e reformularam seus projetos. Em mais de um caso, temos filmes inexpressivos seguidos por obras impactantes, ao longo de uma mesma carreira. Aliás, os filmes mais debatidos pela sociedade vieram de cineastas irregulares, que realizaram mais de um filme nesse período. Erraram, mudaram e depois acertaram.
Beto Brant, por exemplo, um dos talentos dessa geração, diz ter lido numa crítica de jornal a melhor definição do que era seu projeto. Como Brant, há outros diretores abertos ao que Zanin, numa incorporação de um termo de André Bazin, chama de "impureza". Na acepção do crítico, "impureza" significa mistura de linguagens, mas seu significado abrange perfeitamente a incorporação de uma pauta que marca a vida pública, ou seja, a impureza entre documentário e ficção.

Cinema pseudocomercial
Uma das perguntas dirigidas aos cineastas, no painel coordenado por Lúcia Nagib, refere-se à política cultural assentada nas leis de isenção. Embora tenha viabilizado alguns diretores, essa legislação emancipou o cinema brasileiro do mercado. E do público. Não foram emancipados do mercado os filmes experimentais, mas, ironicamente, os que almejavam uma carreira comercial.
Ao perceber essa distorção com mais clareza que os cineastas (já que os últimos defendem o financiamento, seja ele qual for), a crítica mais exigente parece se solidarizar com uma certa afirmação do mercado, encarado não como prova de eficiência, mas como instância de risco e relativa renovação para o filme brasileiro. A singularidade da legislação brasileira provocou uma inversão estratégica do "público", pois o modo de produção "independente do mercado" não beneficiou a vanguarda estética, mas antes um parasitário cinema pseudocomercial. "Cidade de Deus", nessa perspectiva, seria um ponto de inflexão final para o cinema da "retomada", seja devido a sua inclinação comercial, ao assumir o risco de uma aposta na rentabilidade, seja pela escolha de um modo de produção que privilegia atores amadores e a filmagem em locação.
A busca por comunicação com o público não excluiu a preocupação política que, no painel de Nagib, surge como atuação dos cineastas e, no livro de Zanin, como tema dos filmes. Tempos difíceis, em que os diretores se dedicaram mais a um estranho linguajar jurídico do que a novas opções de linguagem. Apesar disso, ou talvez por isso, esteve em alta a porosidade do cinema ao país, a ponto de diversas questões do Brasil contemporâneo terem penetrado nos filmes.
O livro de Zanin confirma que o cinema brasileiro continua uma caixa de ressonância privilegiada para o conhecimento do país. "É por isso também que [em "O Invasor'] o bandido namora a garota rica, como se, ao possuir a moça, possuísse também sua classe social -houve um tempo em que o encontro entre classes se dava sob o signo do lirismo", diz o autor em uma das boas passagens do livro.
O que, no entanto, desaponta (não no livro, mas no cinema brasileiro que ele analisa) não é a ausência de um diagnóstico do mundo e do Brasil no interior das obras, mas que esse diagnóstico não surja como traço original, mas frequentemente como sintoma, amparado num pensamento desenvolvido em outras áreas, como a sociologia da violência, a teoria do espetáculo, a ciência política e a psicanálise. A particularidade do cinema consistiria em fornecer maior visibilidade a essas questões e transformá-las em "evento".

Convencionalismo
A retomada do cinema brasileiro parece marcada, assim, por uma mescla entre "pertinência" temática e convencionalismo estético. Nesse sentido, é coerente com a proposta de "Cinema de Novo" (embora questionável) que autores como Julio Bressane (que continuou sua radical pesquisa de linguagem), Djalma Batista (que fez o belo e esquecido "Bocage", numa interlocução com Pasolini) e Arthur Omar (um artista em plena atividade e sempre se reinventando) tenham ficado de fora. A questão da busca formal está no livro, inspirando diversas análises de Zanin, mas nunca como questão central: no entanto, pode-se indagar como um filme cheio de questões interessantes, mas um tanto desastrado estilisticamente, como "Terra Estrangeira" seja valorizado, enquanto se relega à vala comum uma obra "de mero entretenimento" como "O Dia da Caça", que também está recheado de questões interessantes, se este for o critério.
Essas contradições, de difícil resposta, estão expostas nos três livros como um convite à reflexão. O que se confirma, nas três obras, é um percurso de acúmulo do cinema nacional tanto na esfera crítica quanto entre os produtores. Se as inúmeras dificuldades atravessadas pelo cinema da retomada foram responsáveis pelo primarismo estético de muitos filmes, pela exclusão de realizadores fundamentais (como Ozualdo Candeias) e por carreiras abortadas, por outro lado, estas mesmas dificuldades aproximaram o cinema brasileiro da dura realidade, impulsionando sua repolitização.


Alfredo Manevy é doutorando em cinema na Escola de Comunicação e Artes da USP.


O Cinema da Retomada Depoimentos de 90 Cineastas dos Anos 90
Lúcia Nagib
Ed. 34 (Tel. 0/xx/11/3816-6777)
528 págs., R$ 48,00

Cinema de Novo Um Balanço Crítico da Retomada
Luiz Zanin Oricchio
Estação Liberdade
(Tel. 0/ xx/11/ 3661-2881)
256 págs., R$ 36,00

The New Brazilian Cinema
Lúcia Nagib (org.)
Tradução: Tom Burns e outros
Ed. I.B. Tauris
296 págs.

Onde encomendar:
Livros em inglês podem ser encomendados, em São Paulo, na Fnac (Tel. 0/ xx/11/ 3097-0022) e, no RJ, na livraria Leonardo da Vinci (Tel. 0/ xx/21/ 533-2237)



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