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O novo cinema brasileiro
ALFREDO MANEVY
A chamada "retomada" do cinema brasileiro transcendeu a
produção de filmes na última década para incluir o incremento de
debates e o amadurecimento de
uma reflexão crítica brasileira. Os
críticos percorreram, como os
produtores, um caminho de acúmulo que hoje resulta numa relação mais dinâmica e madura com
o filme nacional. Três livros recém-lançados confirmam que a
produção da "retomada" não
apenas "foi aceita" pelo público e
pela crítica de jornais e revistas especializadas, mas também interagiu com os debates estéticos e
evoluiu com eles.
Primeiro livro a ser lançado, "O
Cinema da Retomada" é um amplo painel de 90 entrevistas realizadas no âmbito de um projeto de
pesquisas coordenado por Lúcia
Nagib. O resultado é uma amostra
das idéias dominantes no mundo
cinematográfico e de alguns dados biográficos dos cineastas. Cineastas ao pé da letra, já que o trabalho exclui autores de experiências importantes com origem na
televisão, como é o caso de Guel
Arraes, cuja relação com o cinema
já era um fato.
Organizado também por Lúcia
Nagib, "The New Brazilian Cinema" foi publicado na Inglaterra
com artigos de diversos interlocutores da retomada: de Cacá Diegues, apresentando uma política
cultural, e José Álvaro Moisés, defendendo números do período
Fernando Henrique Cardoso, a
críticos como Ismail Xavier, Fernão Ramos, José Carlos Avellar,
Luiz Zanin, entre outros, discutindo temas variados.
Inclinação estética
"Cinema de Novo", de Luiz Zanin Oricchio, realiza um balanço
lúcido das questões brasileiras
abordadas, comparando e comentando um vasto espectro de
filmes nacionais. A "feudalização" da violência nas cidades, a
representação da história, a relação com o estrangeiro, os amores
no fim do milênio, eis alguns dos
eixos que possibilitaram a discussão de um amplo conjunto de filmes.
Como aponta Zanin, a retomada teve uma inclinação estética
dominante, buscando o uso de
gêneros narrativos de fácil comunicação com o público (inclusive
alguns já testados na "era Embrafilme"). Daí a tese, presente em
"Cinema de Novo", de que "Cidade de Deus" encerra o ciclo da retomada, como obra que finalmente consegue realizar o projeto
explícito dessas gerações que o livro de Lúcia Nagib mapeia. Um
filme imbuído de questões sociais
-"ma non troppo"- e com firme domínio das técnicas visuais
contemporâneas.
Nesse sentido, os três livros confirmam que a retomada do cinema brasileiro, longe de ser uma
insurreição estética, teve como
discurso dominante o diplomático "cada um na sua, mas com alguma coisa em comum" ou, com
a dose de realismo do crítico Inácio Araújo, o autêntico "salve-se
quem puder".
As incertezas e precariedades
do período trouxeram fraturas,
rearranjos, perdas, não conseguindo atingir uma gama imensa
da população e, de fato, levando
muitos cineastas a ir fazer outra
coisa na vida.
Essa dimensão mais sombria
não se encontra muito presente
nos livros. "O Cinema da Retomada" ajuda a revelar duas posturas distintas por parte dos cineastas que conseguiram manter-se
em sua profissão: alguns passaram incólumes pelos debates e dilemas estéticos da década, engessando seus projetos numa tecla
única, enquanto outros interagiram e reformularam seus projetos. Em mais de um caso, temos
filmes inexpressivos seguidos por
obras impactantes, ao longo de
uma mesma carreira. Aliás, os filmes mais debatidos pela sociedade vieram de cineastas irregulares, que realizaram mais de um
filme nesse período. Erraram,
mudaram e depois acertaram.
Beto Brant, por exemplo, um
dos talentos dessa geração, diz ter
lido numa crítica de jornal a melhor definição do que era seu projeto. Como Brant, há outros diretores abertos ao que Zanin, numa
incorporação de um termo de
André Bazin, chama de "impureza". Na acepção do crítico, "impureza" significa mistura de linguagens, mas seu significado abrange
perfeitamente a incorporação de
uma pauta que marca a vida pública, ou seja, a impureza entre
documentário e ficção.
Cinema pseudocomercial
Uma das perguntas dirigidas
aos cineastas, no painel coordenado por Lúcia Nagib, refere-se à
política cultural assentada nas leis
de isenção. Embora tenha viabilizado alguns diretores, essa legislação emancipou o cinema brasileiro do mercado. E do público. Não
foram emancipados do mercado
os filmes experimentais, mas, ironicamente, os que almejavam
uma carreira comercial.
Ao perceber essa distorção com
mais clareza que os cineastas (já
que os últimos defendem o financiamento, seja ele qual for), a crítica mais exigente parece se solidarizar com uma certa afirmação do
mercado, encarado não como
prova de eficiência, mas como
instância de risco e relativa renovação para o filme brasileiro. A
singularidade da legislação brasileira provocou uma inversão estratégica do "público", pois o modo de produção "independente
do mercado" não beneficiou a
vanguarda estética, mas antes um
parasitário cinema pseudocomercial. "Cidade de Deus", nessa
perspectiva, seria um ponto de inflexão final para o cinema da "retomada", seja devido a sua inclinação comercial, ao assumir o risco de uma aposta na rentabilidade, seja pela escolha de um modo
de produção que privilegia atores
amadores e a filmagem em locação.
A busca por comunicação com
o público não excluiu a preocupação política que, no painel de Nagib, surge como atuação dos cineastas e, no livro de Zanin, como
tema dos filmes. Tempos difíceis,
em que os diretores se dedicaram
mais a um estranho linguajar jurídico do que a novas opções de linguagem. Apesar disso, ou talvez
por isso, esteve em alta a porosidade do cinema ao país, a ponto
de diversas questões do Brasil
contemporâneo terem penetrado
nos filmes.
O livro de Zanin confirma que o
cinema brasileiro continua uma
caixa de ressonância privilegiada
para o conhecimento do país. "É
por isso também que [em "O Invasor'] o bandido namora a garota
rica, como se, ao possuir a moça,
possuísse também sua classe social -houve um tempo em que o
encontro entre classes se dava sob
o signo do lirismo", diz o autor
em uma das boas passagens do livro.
O que, no entanto, desaponta
(não no livro, mas no cinema brasileiro que ele analisa) não é a ausência de um diagnóstico do
mundo e do Brasil no interior das
obras, mas que esse diagnóstico
não surja como traço original,
mas frequentemente como sintoma, amparado num pensamento
desenvolvido em outras áreas, como a sociologia da violência, a
teoria do espetáculo, a ciência política e a psicanálise. A particularidade do cinema consistiria em
fornecer maior visibilidade a essas questões e transformá-las em
"evento".
Convencionalismo
A retomada do cinema brasileiro parece marcada, assim, por
uma mescla entre "pertinência"
temática e convencionalismo estético. Nesse sentido, é coerente
com a proposta de "Cinema de
Novo" (embora questionável)
que autores como Julio Bressane
(que continuou sua radical pesquisa de linguagem), Djalma Batista (que fez o belo e esquecido
"Bocage", numa interlocução
com Pasolini) e Arthur Omar (um
artista em plena atividade e sempre se reinventando) tenham ficado de fora. A questão da busca
formal está no livro, inspirando
diversas análises de Zanin, mas
nunca como questão central: no
entanto, pode-se indagar como
um filme cheio de questões interessantes, mas um tanto desastrado estilisticamente, como "Terra
Estrangeira" seja valorizado, enquanto se relega à vala comum
uma obra "de mero entretenimento" como "O Dia da Caça",
que também está recheado de
questões interessantes, se este for
o critério.
Essas contradições, de difícil
resposta, estão expostas nos três
livros como um convite à reflexão. O que se confirma, nas três
obras, é um percurso de acúmulo
do cinema nacional tanto na esfera crítica quanto entre os produtores. Se as inúmeras dificuldades
atravessadas pelo cinema da retomada foram responsáveis pelo
primarismo estético de muitos filmes, pela exclusão de realizadores
fundamentais (como Ozualdo
Candeias) e por carreiras abortadas, por outro lado, estas mesmas
dificuldades aproximaram o cinema brasileiro da dura realidade,
impulsionando sua repolitização.
Alfredo Manevy é doutorando em cinema na Escola de Comunicação e Artes da
USP.
O Cinema da Retomada
Depoimentos de 90
Cineastas dos Anos 90
Lúcia Nagib
Ed. 34 (Tel. 0/xx/11/3816-6777)
528 págs., R$ 48,00
Cinema de Novo
Um Balanço Crítico
da Retomada
Luiz Zanin Oricchio
Estação Liberdade
(Tel. 0/ xx/11/ 3661-2881)
256 págs., R$ 36,00
The New Brazilian Cinema
Lúcia Nagib (org.)
Tradução: Tom Burns e outros
Ed. I.B. Tauris
296 págs.
Onde encomendar:
Livros em inglês podem ser
encomendados, em São Paulo, na
Fnac (Tel. 0/ xx/11/ 3097-0022)
e, no RJ, na livraria Leonardo da Vinci
(Tel. 0/ xx/21/ 533-2237)
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