São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 1999

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Novos tempos, velhas histórias

ARACY LOPES DA SILVA

Dentre os projetos indígenas em curso, muitos podem ser corretamente definidos como culturais: compreendem o registro em vídeo, em áudio, em CDs, em livros, de saberes e manifestações próprios. São materiais destinados ao consumo interno, como recurso de uma política de vitalização da identidade e da memória com vistas aos jovens atuais e às gerações futuras, a quem igualmente se destinam os materiais didáticos elaborados por professores índios em línguas indígenas; ou têm por alvo o consumidor externo, não-índio, brasileiro ou não. Trata-se de um movimento em franca expansão: a produção de material próprio com recurso a tecnologias não-indígenas, para fins definidos autonomamente.
É nesse contexto que os xavante Sereburã, Hipru, Rupawê, Serezabdi e Sereñimirãmi e sua equipe de apoio nos brindam com seu livro. É uma belíssima edição ilustrada com desenhos originais de jovens xavante e fotos históricas localizadas por meio de pesquisa em arquivos pela equipe assessora do projeto (Núcleo de Cultura Indígena, São Paulo). O processo de produção da obra durou cerca de três anos, incluindo gravações de narrativas orais na aldeia de Pimentel Barbosa (MT).
A primeira parte do livro, "Antes de Tudo", reúne as narrativas relativas às origens: os clássicos mitos xavante (1) em novas versões, assinadas, contando sobre o começo da humanidade, das plantas cultivadas, dos animais, a obtenção do fogo pelos humanos, a origem das mulheres indígenas e dos homens brancos. Há um evidente trabalho de edição da tradução (embora os bastidores não sejam trazidos ao leitor), visando a tornar os textos compreensíveis por um público não-xavante. O esforço é bem-sucedido, não há adulteração dos sentidos originais e o resultado final é um texto conciso e de leitura agradável. É graficamente muito bem solucionada a apresentação bilíngue das narrativas.
A segunda parte é dedicada à "história" e trata do contato dos xavante com outros povos indígenas e, principalmente, com os não-índios. Como a vida xavante é marcada por intenso facciosismo, construído a partir de uma divisão da população em dois clãs, o livro, inevitavelmente, traz uma versão da história do contato em que o ponto de vista da facção dominante (e seu respectivo clã) na aldeia Pimentel Barbosa é predominante. Há certamente outras histórias, contadas, entre os xavante, de outras perspectivas. Isso, porém, em nada desmerece o livro. Pelo contrário: toda história xavante será sempre narrada a partir de uma posição claramente definida por relações de poder. A possibilidade de outras histórias está prevista, aliás, no texto de abertura do livro, "Primeiras Palavras".
A versão publicada tem o mérito de ser, entre as publicações sobre a história deste povo, a primeira elaborada com narrações destinadas a este fim específico e reconhecida como sua pelos narradores xavante. É, portanto, a única publicação que traz uma visão xavante sobre o processo do contato. As fotos das frentes de atração, dos primeiros encontros e presentes trocados, tiradas e arquivadas por não-índios, contrastam com a perspectiva indígena: os brancos foram atraídos com recursos mágicos para que trouxessem os desejados instrumentos, os machados e facas. Atração e contato são vistos pelos xavante como processos controlados por eles, por seus sonhos, por seus poderes.
Nos relatórios do Serviço de Proteção aos Índios, nas reportagens de época, na memória dos não-índios, os xavante é que foram atraídos e "pacificados". Eram tempos de Getúlio. A "marcha para o oeste", a Fundação Brasil Central e outras iniciativas daquele momento atingiriam em cheio o território habitado então (como hoje) pelos xavante de Pimentel Barbosa: margens do Rio das Mortes e Serra do Roncador (2). Poriam fim a um período de isolamento voluntário dos xavante, que já haviam experimentado o convívio interétnico em séculos anteriores, notadamente no 19, em aldeamentos pombalinos na então Província de Goiás. A data oficial do primeiro contato pacífico neste século é 1946, após vários anos de tentativas missionárias e governamentais. É sobre estes mais de 50 anos que os xavante discorrem detalhadamente na segunda parte do livro, permitindo um interessante contraponto com a história documental até agora levantada.
Uma certa tensão se estabelece entre o tom dos xavante em suas narrativas, revelando os índios como condutores dos processos em tela, senhores de seu destino, e uma perspectiva presente principalmente no texto da quarta capa e, muito mais sutilmente, no prefácio do livro (ambos redigidos por autores não-indígenas), que enfatizam as ameaças do contato, as perdas culturais, a "tradição", que pode acabar sob "o efeito descaracterizador do contato agressivo entre culturas". Do mesmo modo, é difícil entender o porquê de a grafia escolhida para as palavras em língua indígena não incorporar um som característico e frequentemente presente nessa língua. Refiro-me ao "e" nasalizado, invariavelmente grafado no livro como "ê" (com acento circunflexo, o que o transforma em outro fonema). Dificuldades de ordem gráfica (os computadores habitualmente não aceitam o til sobre a vogal "e") em absoluto justificam essa "acomodação", em choque direto com todo o espírito do livro, de afirmação da voz e da perspectiva própria aos xavante de Pimentel Barbosa.

A OBRA
Wamrêmé Za'ra - Nossa Palavra - Mito e História do Povo Xavante Sereburã, Hipru, Rupawê, Serezabdi, Sereñimirãmi Senac (Tel. 011/884-8122) 180 págs., R$ 35,00



Considerando a população xavante de modo geral, é possível dizer que são muitas as suas estratégias diante dos processos globais e regionais em curso e das novas situações que fazem hoje parte de suas vidas. Muitas referem-se a processos de redefinição dos termos, em que são vivenciadas as relações interétnicas em que estão envolvidos; outras destinam-se à construção de alternativas econômicas; por intermédio de outras, ainda, reivindicam o acesso a implementos urbanos ou ao conhecimento científico ou tecnológico. Entre elas, e diversamente das escolhas feitas por outros povos indígenas no país, estão uma grande valorização da educação escolar e a formação, sob a orientação dos mais velhos, de jovens intelectualmente preparados para a interlocução com os não-índios. A autonomia política e econômica e o respeito geral a sua especificidade étnica e cultural são objetivos que se expressam claramente pela formação de associações indígenas locais da produção de bens culturais para consumo em mercados urbanos nacionais e internacionais, inclusive o livro que examino aqui.
Alguns dos projetos dos xavante, de diferentes localidades, ilustram as frentes da atuação indígena em curso. Financiado pelo World Wildlife Foundation, um deles propõe o manejo de animais cinegéticos nativos do ambiente habitado pelos xavante, historicamente consumidos por essa população, mas que hoje estão ameaçados; outro, financiado pelo Banco Mundial, combina igualmente a pesquisa epidemiológica e nutricional com ações no campo da saúde; um terceiro, promovido por uma organização pan-indígena, almeja o manejo de plantas frutíferas nativas, enquanto um outro, de autoria indígena e financiado por empresas sediadas no Brasil, busca na apicultura um caminho para a autonomia econômica da aldeia que o idealizou. Projetos no campo da educação escolar têm, invariavelmente, a adesão dos xavante. Professores xavante têm forte atuação no Projeto Tucum, de formação continuada, promovido pelo governo do Estado do Mato Grosso. Na outra ponta, uma pesquisa antropológica proposta individualmente por um pesquisador sobre a classificação indígena de aves é autorizada pelos xavante sob a condição da elaboração posterior de um livro didático contendo seus resultados, para registro do conhecimento indígena e para uso nas escolas das aldeias.
Uma compreensão mais acurada da experiência xavante no mundo atual exige a revisão de certas posturas analíticas: no lugar dos blocos "sociedade indígena"/"sociedade envolvente", cabe pensá-la como processo em curso no âmbito de um complexo sócio-cosmológico mais amplo; no lugar da difundida (e simplista) idéia da "aculturação", a consideração da ação indígena sobre o mundo, como fator de construção da história. São os processos dessa construção que o material narrativo reunido neste livro pelos xavante permite apreender. Wamrêmé Za'ra oferece, tanto ao especialista como ao leitor em geral, matéria viva para conhecimento e reflexão.


Notas
1. Já publicados anteriormente, em várias obras. Ao lado de "Giaccaria & Heide", o livro aqui resenhado apresenta uma das mais completas coletâneas de narrativas xavante.
2. Os xavante habitam hoje seis áreas descontínuas demarcadas no leste mato-grossense. Somam aproximadamente 9.000 pessoas, que vivem em cerca de 55 aldeias e falam a língua A'uwe, da família linguística Jê.


Aracy Lopes da Silva é professora de antropologia na Universidade de Campinas, coordenadora do Mari-Grupo de Educação Indígena da USP e autora, entre outros, de "Nomes e Amigos - Da Prática Xavante a Uma Reflexão sobre os Jê" (Publicações da Faculdade de Filosofia da USP).



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