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O lugar do observador
PABLO RUBÉN MARICONDA
Nenhuma outra realização científica causou
tanta fascinação e produziu tamanha reação e
resistência quanto a concepção de
Copérnico de que a Terra não está
situada no centro do mundo e gira
ao redor do Sol. Interrogando-se
sobre o alcance da transformação
suscitada pela simples idéia de
movimento da Terra, Szczeciniarz
organiza sua reflexão em torno de
duas questões básicas: qual é o elemento nevrálgico e essencial de
nossa história sobre o qual incide
a chamada "revolução copernicana"? Até que ponto é possível obter uma espécie de forma pura, como um invariante, que permitiria
caracterizar o copernicanismo como um certo tipo de postura científica e filosófica?
Há um sentido claro em que se
pode dizer que, antes de Copérnico, as próprias categorias do pensamento estão organizadas em
torno da afirmação de nossa posição central no universo. Percebemos, por razões ligadas em parte à
estrutura de nossa percepção, em
parte a nossa evolução antropológica, que a Terra está imóvel no
centro do lugar da percepção. Ou
seja, a imobilidade da Terra assenta em um conceito de observador
ligado a seu lugar central, que se
confunde com aquilo que sua percepção lhe informa. Há, portanto,
uma unidade entre o geocentrismo e a fenomenologia do sensível
espontaneamente praticada por
nós.
No universo ptolomaico, o lugar
central do observador terrestre
imóvel é a lei daquilo que é. A organização real do fenômeno é o
efeito da percepção de um observador e depende de seu lugar, mas
sua autopercepção permanece
imediata. Assim, embora se possa
dizer que no geocentrismo aristotélico e ptolomaico exista uma
aparência constituída, ela se constitui a partir do próprio ser e de
suas categorias (que são como
uma sintaxe do próprio ser das
coisas e não dependem da maneira pela qual podemos conhecer essas coisas).
Para entender o impacto revolucionário da obra de Copérnico sobre o conjunto especificamente
organizado da cultura tradicional
do século 16, é preciso lembrar,
como insiste Szczeciniarz, que a
tese do movimento da Terra acarreta fundamentalmente uma descentralização do observador e sua
colocação em movimento. Evidencia-se aí seu alcance filosófico
pela produção de uma nova forma
de "desenraizamento" do mundo sensível, construído a partir de
uma nova concepção da aparência.
Em Copérnico, o movimento do
observador tem uma função radical ou primitiva, de modo que
"salvar as aparências" quer dizer
agora restaurar sob as aparências
os princípios da física que as explicam e que, portanto, as tornam
possíveis. A ilusão do movimento
das estrelas ou do repouso da Terra provém de considerarmos a
aparência em si como se ela se encontrasse nas coisas, não como
efeito do movimento do observador. Do mesmo modo, é graças à
hipótese do movimento da Terra
que podemos ir além das aparências irregulares dos movimentos
planetários. Vemos os planetas
descreverem "loops", que são
apenas aparências que nosso movimento nos faz perceber. É o
ponto de vista do movimento da
Terra, ele mesmo imperceptível,
que permite explicar nossa percepção dos movimentos planetários.
A OBRA
Copernic et la Révolution Copernicienne
Jean-Jacques Szczeciniarz
Flammarion
438 págs., 170 FF
Onde encomendar: Livraria Francesa (Tel. 011/829-7956)
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Pode-se desejar uma prova física
da existência do movimento da
Terra, desse movimento que não
aparece. Copérnico argumentou
suficientemente para mostrar que
não aparecer pertence à natureza
desse movimento. As únicas provas que podem ser fornecidas estão nos efeitos explicativos que se
deduzem desse movimento invisível. É nesse poder explicativo teórico que reside a verdadeira prova
para Copérnico. A tese do movimento da Terra é, pois, surpreendente: ela contraria a percepção
direta e só se prova com base em
demonstrações indiretas.
A categoria de aparência pressupõe uma escolha sobre a natureza
e o posicionamento do observador e "um uso da percepção cuja
lei será exterior à própria percepção". Em suma, a categoria de
aparência, tal como empregada
por Copérnico, supõe: 1) um deslocamento ou manipulação da
percepção; e 2) o consequente exame das condições da percepção.
Essa ação sobre as condições da
percepção por um deslocamento
abre a possibilidade de ação sobre
as condições técnicas da observação.
A tese do movimento da Terra
comporta assim uma "saída para
fora da Terra", numa espécie de
exterioridade que já estava implicada pela formulação copernicana
do princípio da relatividade descritiva. Quando Copérnico afirma
que o movimento percebido pode
não ser mais que o reflexo de nosso movimento, ele se vê em movimento no próprio reflexo. Prolonga assim a experiência do reflexo
óptico, que todos podem fazer, em
um princípio sistemático de análise para todo movimento.
Com isso, redefinem-se as próprias formas da objetividade. Primeiro, porque se explica a natureza eventualmente ilusória das percepções imediatas. Depois, porque constitui como objeto de reflexão uma teoria do observador.
A objetividade do movimento da
Terra em torno do Sol é, pois, uma
objetividade construída: ela constitui a teoria das condições segundo as quais as observações são dadas ao observador, sendo que as
observações podem ser reconstruídas ao mesmo tempo que suas
condições de produção.
Szczeciniarz esclarece com sua
reflexão o invariante da revolução
copernicana. Copérnico está envolvido sempre que se tenta pensar a razão pela qual o sujeito passa a refletir sobre si mesmo. O fato
de sempre reenviar o observador a
suas condições de observação é
uma condição positiva da construção teórica de Copérnico, que é
por isso considerado o iniciador
de uma revolução que está na origem das filosofias do sujeito ou,
pelo menos, daquelas filosofias
que reconstituem o saber a partir
de uma subjetividade que não é
mais o efeito de uma inscrição ou
de uma localização no universo ou
na natureza.
Pablo Rubén Mariconda é professor do departamento de filosofia da USP.
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