São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 1999

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O lugar do observador

PABLO RUBÉN MARICONDA

Nenhuma outra realização científica causou tanta fascinação e produziu tamanha reação e resistência quanto a concepção de Copérnico de que a Terra não está situada no centro do mundo e gira ao redor do Sol. Interrogando-se sobre o alcance da transformação suscitada pela simples idéia de movimento da Terra, Szczeciniarz organiza sua reflexão em torno de duas questões básicas: qual é o elemento nevrálgico e essencial de nossa história sobre o qual incide a chamada "revolução copernicana"? Até que ponto é possível obter uma espécie de forma pura, como um invariante, que permitiria caracterizar o copernicanismo como um certo tipo de postura científica e filosófica?
Há um sentido claro em que se pode dizer que, antes de Copérnico, as próprias categorias do pensamento estão organizadas em torno da afirmação de nossa posição central no universo. Percebemos, por razões ligadas em parte à estrutura de nossa percepção, em parte a nossa evolução antropológica, que a Terra está imóvel no centro do lugar da percepção. Ou seja, a imobilidade da Terra assenta em um conceito de observador ligado a seu lugar central, que se confunde com aquilo que sua percepção lhe informa. Há, portanto, uma unidade entre o geocentrismo e a fenomenologia do sensível espontaneamente praticada por nós.
No universo ptolomaico, o lugar central do observador terrestre imóvel é a lei daquilo que é. A organização real do fenômeno é o efeito da percepção de um observador e depende de seu lugar, mas sua autopercepção permanece imediata. Assim, embora se possa dizer que no geocentrismo aristotélico e ptolomaico exista uma aparência constituída, ela se constitui a partir do próprio ser e de suas categorias (que são como uma sintaxe do próprio ser das coisas e não dependem da maneira pela qual podemos conhecer essas coisas).
Para entender o impacto revolucionário da obra de Copérnico sobre o conjunto especificamente organizado da cultura tradicional do século 16, é preciso lembrar, como insiste Szczeciniarz, que a tese do movimento da Terra acarreta fundamentalmente uma descentralização do observador e sua colocação em movimento. Evidencia-se aí seu alcance filosófico pela produção de uma nova forma de "desenraizamento" do mundo sensível, construído a partir de uma nova concepção da aparência.
Em Copérnico, o movimento do observador tem uma função radical ou primitiva, de modo que "salvar as aparências" quer dizer agora restaurar sob as aparências os princípios da física que as explicam e que, portanto, as tornam possíveis. A ilusão do movimento das estrelas ou do repouso da Terra provém de considerarmos a aparência em si como se ela se encontrasse nas coisas, não como efeito do movimento do observador. Do mesmo modo, é graças à hipótese do movimento da Terra que podemos ir além das aparências irregulares dos movimentos planetários. Vemos os planetas descreverem "loops", que são apenas aparências que nosso movimento nos faz perceber. É o ponto de vista do movimento da Terra, ele mesmo imperceptível, que permite explicar nossa percepção dos movimentos planetários.

A OBRA
Copernic et la Révolution Copernicienne Jean-Jacques Szczeciniarz Flammarion 438 págs., 170 FF Onde encomendar: Livraria Francesa (Tel. 011/829-7956)



Pode-se desejar uma prova física da existência do movimento da Terra, desse movimento que não aparece. Copérnico argumentou suficientemente para mostrar que não aparecer pertence à natureza desse movimento. As únicas provas que podem ser fornecidas estão nos efeitos explicativos que se deduzem desse movimento invisível. É nesse poder explicativo teórico que reside a verdadeira prova para Copérnico. A tese do movimento da Terra é, pois, surpreendente: ela contraria a percepção direta e só se prova com base em demonstrações indiretas.
A categoria de aparência pressupõe uma escolha sobre a natureza e o posicionamento do observador e "um uso da percepção cuja lei será exterior à própria percepção". Em suma, a categoria de aparência, tal como empregada por Copérnico, supõe: 1) um deslocamento ou manipulação da percepção; e 2) o consequente exame das condições da percepção. Essa ação sobre as condições da percepção por um deslocamento abre a possibilidade de ação sobre as condições técnicas da observação.
A tese do movimento da Terra comporta assim uma "saída para fora da Terra", numa espécie de exterioridade que já estava implicada pela formulação copernicana do princípio da relatividade descritiva. Quando Copérnico afirma que o movimento percebido pode não ser mais que o reflexo de nosso movimento, ele se vê em movimento no próprio reflexo. Prolonga assim a experiência do reflexo óptico, que todos podem fazer, em um princípio sistemático de análise para todo movimento.
Com isso, redefinem-se as próprias formas da objetividade. Primeiro, porque se explica a natureza eventualmente ilusória das percepções imediatas. Depois, porque constitui como objeto de reflexão uma teoria do observador. A objetividade do movimento da Terra em torno do Sol é, pois, uma objetividade construída: ela constitui a teoria das condições segundo as quais as observações são dadas ao observador, sendo que as observações podem ser reconstruídas ao mesmo tempo que suas condições de produção.
Szczeciniarz esclarece com sua reflexão o invariante da revolução copernicana. Copérnico está envolvido sempre que se tenta pensar a razão pela qual o sujeito passa a refletir sobre si mesmo. O fato de sempre reenviar o observador a suas condições de observação é uma condição positiva da construção teórica de Copérnico, que é por isso considerado o iniciador de uma revolução que está na origem das filosofias do sujeito ou, pelo menos, daquelas filosofias que reconstituem o saber a partir de uma subjetividade que não é mais o efeito de uma inscrição ou de uma localização no universo ou na natureza.


Pablo Rubén Mariconda é professor do departamento de filosofia da USP.



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