São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 1999

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Poética de ponta

JOÃO BANDEIRA

Em um encontro promovido em agosto de 1998, em São Paulo, pela Casa das Rosas, sobre "O Que é o Novo" em poesia, Antonio Risério entrou no tema desse livro falando principalmente da necessidade de se procurarem critérios de criação e de leitura. Uma necessidade real para os mais despertos, agora que a expressão "vale-tudo" funciona mais como uma espécie de solução preguiçosa, significando "é tudo a mesma coisa mesmo", do que como predisposição a um reconhecimento das diferenças que inicie um diálogo. Com razão, o poeta Frederico Barbosa reclamou há pouco do relativo silêncio em torno deste "Ensaio", que é a continuação das operações de Antonio Risério no território da poesia, por meio da crítica, da tradução ou de sua produção pessoal. Modalidades que ele não teme mesclar, como em livros anteriores, "Oriki Orixá" e "Fetiche" (1996).
Visto como um todo, o livro, mais do que oferecer balizas muito definidas, abre o campo de discussão sobre por que, como e a partir de que experiências anteriores construir critérios de leitura aplicáveis àquela produção de poesia que nos últimos, digamos, 30 anos procura enfrentar realidades como a que os homens do MIT (Massachusetts Institute of Technology) agora chamam de "vida digital".
Risério quer fazer "uma limpeza de terreno, tentando colocar as "vanguardas históricas' e as "neovanguardas' em seus merecidos lugares", não se interessando, portanto, em dar um mapeamento completo de tendências. Nessa tarefa cabem argumentos estéticos, históricos, antropológicos, da linguística, da teoria literária ou da filosofia da ciência, incluindo uma bem-amarrada série de citações de outros autores. Num tom conversacional muito sedutor -e próprio, já que não se trata nem de um manual nem tampouco de um manifesto-, o discurso funciona aqui como um convite à reflexão, um "que-tal-pensarmos-um-pouco-juntos?" sem que por isso Risério deixe de marcar claramente suas posições, com uma fala que evita tanto a ortodoxia quanto o deixa-disso.
Não há proselitismo a favor da rendição imediata e incondicional dos poetas à informática. Já na terceira página vem o aviso: "Não se trata de tecnolatria, necessariamente. Nem de aceitação integral da sociedade em que vivemos. O lance é não ficar de fora assistindo passivamente ao jogo". E o jogo só está vencido quando se aceita a concepção de uma ciência que domina tudo. Como lembra Risério, apoiando-se em Pierre Lévy, "tecnologias são negociáveis, passíveis das mais diversas refuncionalizações e ressemantizações, em consequência dos jogos projetuais que se armam, se articulam e se atritam no espaço-tempo social". É por isso que as linguagens da informática também podem ser "acionadas esteticamente em nome do respeito à diferença. Do diálogo das culturas. Da semiodiversidade".
Nesse livro pródigo em levantar temas que dão o que pensar, mesmo quando não desenvolvidos, a parte que trata mais detidamente das "zonas de fronteira em dimensão semiótica" ou "de fronteira cultural" (a produção que estabelece o comércio entre meios e linguagens artísticas e/ou entre nichos culturais) é, para mim, justamente um dos pontos altos. Assim como o trecho que vai até as teorias sobre as relações entre oralidade e escrita para, fechando o foco, discutir a não-linearidade em poesia.

A OBRA
Ensaio sobre o Texto Poético em Contexto Digital Antonio Risério Fundação Casa de Jorge Amado/Copene (071/321-0070) 204 págs., R$ 20,00



Entre muitos outros, pode-se destacar ainda o capítulo em que Risério atualiza a demarcação do território da poesia dos "beats" norte-americanos diante da poesia concreta brasileira, refazendo uma genealogia que liga aquela ao romantismo e ao universo perceptivo da oralidade, e esta, por sua vez, ao simbolismo e à visualidade para, ao final, descobrir aí uma oposição não-antagônica. Em que pesem as diferenças manifestas, "o fato é que ambos os movimentos se solidarizaram, antes de mais nada, por sua localização à margem do sistema literário estabelecido". Na década de 50, houve atuações conjuntas e mais tarde, "já em águas contraculturais", poetas como Paulo Leminski podiam ser aceitos nos dois times.
Com esse rápido excurso histórico-estético, o texto joga luz sobre uma das áreas mais interessantes exploradas pela poesia de agora, embora não seja a única relevante. É só ver como, de um lado, a procura da exatidão da forma, o fascínio pela tecnologia de ponta e pela sofisticação da escrita, e, de outro, a incorporação da imperfeição, a valorização de culturas marginais e da poesia que vive na voz do próprio poeta entram de cheio, por exemplo, no trabalho de Arnaldo Antunes ou Walter Silveira. A força com que se dá neles a reunião de tecnologias da palavra recentes e antigas faz desandar qualquer crença, ainda persistente, nalguma marcha do desenvolvimento da poesia que culmine na infografia, seja para divinizá-la ou para demonizá-la.
Apesar de, na prática, muitos poetas lidarem com computadores há décadas, a resistência ainda é forte quando se trata dos que procuram novos instrumentos de escritura em proveito da poesia. Nos piores casos, pela recusa pura e simples em nome de sabe-se lá que essencialidade poética. O mais comum é a acomodação ao processador de textos associada à defesa intransigente da norma literária contemporânea ao advento da máquina de escrever. Melhor ficar com as palavras de Augusto de Campos citadas no livro: "O que ocorre é a viabilização, num grau sem precedentes, das linguagens e procedimentos da modernidade -a montagem, a colagem, a interpenetração do verbal e do não-verbal, a sonorização de textos e imagens -, em suma, a multimidiação do processo artístico.
A circunstância de que esses recursos possam também ser utilizados convencionalmente ou de que se possa, por outro lado, criar obras inventivas e originais com procedimentos não-informatizados não desqualifica a importância dos novos mídia". E, acrescento, não custa lembrar a quem afirma que muita bobagem sai desses novas mídias, a quantidade muitíssimo maior, lançada semanalmente no mercado, de livros contendo poesia tatibitate de formato tradicional.
Num ambiente que suporta até poeta dublê de crítico passando certificado de qualidade à obra de outro poeta chamando-a de "poesia de cultura" com base nos títulos dos livros, que contêm referências clássicas ou a autores consagrados, cresce o valor da frase dita por Godard: "A cultura é a regra, a arte é a exceção. Faz parte da regra querer a morte da exceção". Este "Ensaio" do poeta-crítico Antonio Risério está do lado da exceção.


João Bandeira é compositor e poeta, autor de "Rente" (Ateliê).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.