|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Poética de ponta
JOÃO BANDEIRA
Em um encontro promovido em agosto de 1998,
em São Paulo, pela Casa
das Rosas, sobre "O
Que é o Novo" em poesia, Antonio Risério entrou no tema desse
livro falando principalmente da
necessidade de se procurarem critérios de criação e de leitura. Uma
necessidade real para os mais despertos, agora que a expressão
"vale-tudo" funciona mais como
uma espécie de solução preguiçosa, significando "é tudo a mesma
coisa mesmo", do que como predisposição a um reconhecimento
das diferenças que inicie um diálogo. Com razão, o poeta Frederico
Barbosa reclamou há pouco do relativo silêncio em torno deste
"Ensaio", que é a continuação
das operações de Antonio Risério
no território da poesia, por meio
da crítica, da tradução ou de sua
produção pessoal. Modalidades
que ele não teme mesclar, como
em livros anteriores, "Oriki Orixá" e "Fetiche" (1996).
Visto como um todo, o livro,
mais do que oferecer balizas muito
definidas, abre o campo de discussão sobre por que, como e a partir
de que experiências anteriores
construir critérios de leitura aplicáveis àquela produção de poesia
que nos últimos, digamos, 30 anos
procura enfrentar realidades como a que os homens do MIT
(Massachusetts Institute of Technology) agora chamam de "vida
digital".
Risério quer fazer "uma limpeza
de terreno, tentando colocar as
"vanguardas históricas' e as
"neovanguardas' em seus merecidos lugares", não se interessando,
portanto, em dar um mapeamento completo de tendências. Nessa
tarefa cabem argumentos estéticos, históricos, antropológicos, da
linguística, da teoria literária ou
da filosofia da ciência, incluindo
uma bem-amarrada série de citações de outros autores. Num tom
conversacional muito sedutor -e
próprio, já que não se trata nem de
um manual nem tampouco de um
manifesto-, o discurso funciona
aqui como um convite à reflexão,
um "que-tal-pensarmos-um-pouco-juntos?" sem que
por isso Risério deixe de marcar
claramente suas posições, com
uma fala que evita tanto a ortodoxia quanto o deixa-disso.
Não há proselitismo a favor da
rendição imediata e incondicional
dos poetas à informática. Já na terceira página vem o aviso: "Não se
trata de tecnolatria, necessariamente. Nem de aceitação integral
da sociedade em que vivemos. O
lance é não ficar de fora assistindo
passivamente ao jogo". E o jogo
só está vencido quando se aceita a
concepção de uma ciência que domina tudo. Como lembra Risério,
apoiando-se em Pierre Lévy, "tecnologias são negociáveis, passíveis
das mais diversas refuncionalizações e ressemantizações, em consequência dos jogos projetuais que
se armam, se articulam e se atritam no espaço-tempo social". É
por isso que as linguagens da informática também podem ser
"acionadas esteticamente em nome do respeito à diferença. Do
diálogo das culturas. Da semiodiversidade".
Nesse livro pródigo em levantar
temas que dão o que pensar, mesmo quando não desenvolvidos, a
parte que trata mais detidamente
das "zonas de fronteira em dimensão semiótica" ou "de fronteira cultural" (a produção que
estabelece o comércio entre meios
e linguagens artísticas e/ou entre
nichos culturais) é, para mim, justamente um dos pontos altos. Assim como o trecho que vai até as
teorias sobre as relações entre oralidade e escrita para, fechando o
foco, discutir a não-linearidade
em poesia.
A OBRA
Ensaio sobre o Texto Poético
em Contexto Digital
Antonio Risério
Fundação Casa de Jorge Amado/Copene (071/321-0070)
204 págs., R$ 20,00
|
Entre muitos outros, pode-se
destacar ainda o capítulo em que
Risério atualiza a demarcação do
território da poesia dos "beats"
norte-americanos diante da poesia concreta brasileira, refazendo
uma genealogia que liga aquela ao
romantismo e ao universo perceptivo da oralidade, e esta, por sua
vez, ao simbolismo e à visualidade
para, ao final, descobrir aí uma
oposição não-antagônica. Em que
pesem as diferenças manifestas,
"o fato é que ambos os movimentos se solidarizaram, antes de mais
nada, por sua localização à margem do sistema literário estabelecido". Na década de 50, houve
atuações conjuntas e mais tarde,
"já em águas contraculturais",
poetas como Paulo Leminski podiam ser aceitos nos dois times.
Com esse rápido excurso histórico-estético, o texto joga luz sobre
uma das áreas mais interessantes
exploradas pela poesia de agora,
embora não seja a única relevante.
É só ver como, de um lado, a procura da exatidão da forma, o fascínio pela tecnologia de ponta e pela
sofisticação da escrita, e, de outro,
a incorporação da imperfeição, a
valorização de culturas marginais
e da poesia que vive na voz do próprio poeta entram de cheio, por
exemplo, no trabalho de Arnaldo
Antunes ou Walter Silveira. A força com que se dá neles a reunião
de tecnologias da palavra recentes
e antigas faz desandar qualquer
crença, ainda persistente, nalguma marcha do desenvolvimento
da poesia que culmine na infografia, seja para divinizá-la ou para
demonizá-la.
Apesar de, na prática, muitos
poetas lidarem com computadores há décadas, a resistência ainda
é forte quando se trata dos que
procuram novos instrumentos de
escritura em proveito da poesia.
Nos piores casos, pela recusa pura
e simples em nome de sabe-se lá
que essencialidade poética. O mais
comum é a acomodação ao processador de textos associada à defesa intransigente da norma literária contemporânea ao advento da
máquina de escrever. Melhor ficar
com as palavras de Augusto de
Campos citadas no livro: "O que
ocorre é a viabilização, num grau
sem precedentes, das linguagens e
procedimentos da modernidade
-a montagem, a colagem, a interpenetração do verbal e do
não-verbal, a sonorização de textos e imagens -, em suma, a multimidiação do processo artístico.
A circunstância de que esses recursos possam também ser utilizados convencionalmente ou de
que se possa, por outro lado, criar
obras inventivas e originais com
procedimentos não-informatizados não desqualifica a importância dos novos mídia". E, acrescento, não custa lembrar a quem
afirma que muita bobagem sai
desses novas mídias, a quantidade
muitíssimo maior, lançada semanalmente no mercado, de livros
contendo poesia tatibitate de formato tradicional.
Num ambiente que suporta até
poeta dublê de crítico passando
certificado de qualidade à obra de
outro poeta chamando-a de
"poesia de cultura" com base nos
títulos dos livros, que contêm referências clássicas ou a autores
consagrados, cresce o valor da frase dita por Godard: "A cultura é a
regra, a arte é a exceção. Faz parte
da regra querer a morte da exceção". Este "Ensaio" do poeta-crítico Antonio Risério está do
lado da exceção.
João Bandeira é compositor e poeta, autor de
"Rente" (Ateliê).
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|