São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 1999

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O espectador e a cena

MARIA SÍLVIA BETTI

Jean-Pierre Ryngaert já é conhecido de pesquisadores e estudantes de teatro no Brasil com seu livro "Introdução à Análise do Teatro" (Martins Fontes, 1997). Esse dado representa, sem dúvida, um fator de interesse sobre o livro que, precisamente, vem dar continuidade ao anterior.
Na verdade, ainda que se tratasse de uma obra isolada, o trabalho de Ryngaert já seria merecedor das atenções de todos os que se interessam pelo teatro, uma vez que o autor procura desenvolver, sistematizar e aplicar modelos de abordagem do texto dramatúrgico de forma ao mesmo tempo profunda e simples, evitando os contorcionismos técnicos e conceituais.
Voltando-se basicamente sobre a dramaturgia contemporânea desenvolvida e encenada em contexto francês, Ryngaert preocupa-se em estabelecer premissas para uma leitura produtiva e prazerosa de textos considerados herméticos e pouco propícios à leitura dos não-iniciados. Ao fazê-lo, ilustra fartamente dois aspectos essenciais de seu perfil de autor: o de professor universitário, pelo didatismo com que desenvolve sua abordagem, e o de diretor teatral, pelo fato de estender suas reflexões para além dos limites do texto, voltando-se também para o exercício da encenação e da criação dramatúrgica.
O aspecto do didatismo se faz sentir principalmente na forma como o autor conduz a discussão do conceito de teatro contemporâneo, empreendendo um percurso que vai da leitura aplicada de cinco trechos escolhidos de peças à discussão mais ampla das teorias e das escritas dramatúrgicas. Ryngaert encerra o trabalho com uma pequena e representativa antologia de textos críticos, um quadro cronológico para contextualização histórica e um glossário de noções fundamentais. Esse cuidado dá bem a medida de sua preocupação em propiciar um conhecimento mais rico do texto contemporâneo em todas as suas instâncias estruturais, temáticas e contextuais.
Para Ryngaert, a dramaturgia que surge com as vanguardas dos anos 50 é vítima de um mal-entendido de base: a idéia generalizada de que o cerne expressivo do texto reside no enredo e de que a ausência ou rarefação deste é sinal de deficiência qualitativa que restringe e, às vezes, inviabiliza a leitura, pelo menos por parte do leitor comum, que se debruça sobre o texto com a expectativa de encontrar uma história -um eixo narrativo central na criação.
Partindo do pressuposto de que todo texto é "legível", quando se têm as ferramentas adequadas, Ryngaert defende a idéia de que a "legibilidade" imediata não é critério de valor e de que o interesse maior, tanto técnico como temático, reside na forma de organização, ou seja, no modo como se desenvolve o diálogo implícito entre autor e leitor. O teatro contemporâneo não prioriza a representação abrangente do mundo em seu interior: a cena mostra-se como concretização provisória do texto e nela tudo é representável sem o ser de forma absoluta ou definitiva. Com isso, cresce em importância o papel a ser exercido pelo leitor diante do texto e do espectador diante da cena.
São esses os pressupostos que fornecem a Ryngaert o fio da meada de seu trabalho, ou seja, a investigação de como conduzir a leitura de peças que se mostram, desde o início, resistentes a uma compreensão linear e imediata, preocupada em responder à velha pergunta: "Qual é a história?" ou "De que trata a peça?".

A OBRA
Ler o Teatro Contemporâneo Jean-Pierre Ryngaert Tradução: Andréa Stahel M. da Silva Martins Fontes (Tel. 011/239-3677) 252 págs., R$ 27,50



Há, porém, o outro lado da questão, ou seja, o de quem encena: Ryngaert é claro e preciso ao referir o impasse de quem dirige e produz o teatro contemporâneo e se vê dividido entre o desejo de inovar e romper com as estruturas preexistentes e a necessidade de sobreviver comercialmente, diante de um público pagante ou de subsídios estatais (lembremos que Ryngaert refere-se, todo o tempo, ao que acontece no contexto francês, especificamente).
Preocupado em discutir essas questões sem a pretensão de esgotá-las, ele estende o debate para o campo mais amplo do confronto entre o épico e o absurdo, as duas correntes dramatúrgicas centrais do século 20.
Embora empreenda, neste ponto, um interessante panorama das formas que nortearam as criações entre 68 e os anos 80, seu olhar analítico encontra-se, aqui, direcionado sobre os efeitos que a desagregação do enredo e a fragmentação de categorias essenciais ("tempo", "espaço", "diálogo") exercem sobre o texto.
Para Ryngaert, o processo de dissolução da grande narrativa, que havia vigorado até o final do século 19, atingiu, em nossa época, o seu limite pelo recurso a formas como o monólogo, com suas numerosas variantes, as colagens e a hibridização das falas e das técnicas. Brincar com a linguagem, com suas contradições e inconsistências, à maneira consagrada pelo teatro do absurdo, é algo que perdeu, nos dias de hoje, sua virulência. A vanguarda dos anos 50, de Becket, Ionesco e Adamov, já frequenta, nos dias de hoje, a lista de leituras das academias, em que, aliás, esses autores tendem a ser estudados como se integrassem um grupo coeso e homogêneo.
Entrar nos textos -nesses, fragmentados e desprovidos de eixo narrativo, criados entre os anos 50 e os 80- implica desafio: é necessário medir o quanto cada um negaceia e resiste ao ato interpretativo e saber lidar com a descontinuidade, com a rarefação do enredo, já que tempo, espaço e linearidade de diálogos foram relativizados ou desapareceram em suas formas convencionais. É necessário, ainda, ousar tocar certos limites da criação dramatúrgica: aqueles para além dos quais ela desaparece enquanto tal, engendrando formas que suscitam ao mesmo tempo recusa diante de sua opacidade e fascínio por sua ousadia.
Embora de forma velada, Ryngaert deixa implícita, num breve momento de sua análise, a perspectiva da volta às grandes narrativas, latente na criação de obras chamadas por ele de "textos-limite", em que a própria língua é desconstruída e reinventada e para além dos quais já não há mais criação.
A antologia de textos críticos inserida no final do volume ilustra, no vetor teórico, o desenvolvimento das formulações, inventariando de forma concisa e abrangente os editoriais dos principais periódicos críticos voltados ao teatro e as principais questões relativas à encenação e à dramaturgia discutidas por figuras representativas do panorama dramatúrgico e teatral da França de 1953 a 1985: Bertolt Brecht, Jean Genet, Eugène Ionesco, Michel Vinaver, Michel Deutsch e Nathalie Sarraute são apenas algumas dessas figuras.
Exercitando seu olhar analítico sobre o panorama teatral e dramatúrgico francês, Ryngaert acaba por abrir o apetite de seu leitor brasileiro para o exercício de uma análise de igual teor, direcionada ao contexto da dramaturgia e da encenação nacional.
Seu trabalho vem, assim, auspiciosamente, abrir perspectivas para que desenvolvamos um debate crítico sobre o teatro contemporâneo no ano que se inicia, e -acima de tudo- para que leiamos textos, assistamos a espetáculos e alimentemos, assim, um processo de reflexão no qual o teatro tem um papel fundamental a cumprir.


Maria Sílvia Betti é professora de literatura inglesa na USP, coordenadora do Núcleo de Estudos Teatrais do Centro Ángel Rama e autora de "Oduvaldo Vianna Filho" (Edusp).



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