São Paulo, sábado, 9 de janeiro de 1999 |
Texto Anterior | Índice O espectador e a cena
MARIA SÍLVIA BETTI
Há, porém, o outro lado da questão, ou seja, o de quem encena: Ryngaert é claro e preciso ao referir o impasse de quem dirige e produz o teatro contemporâneo e se vê dividido entre o desejo de inovar e romper com as estruturas preexistentes e a necessidade de sobreviver comercialmente, diante de um público pagante ou de subsídios estatais (lembremos que Ryngaert refere-se, todo o tempo, ao que acontece no contexto francês, especificamente). Preocupado em discutir essas questões sem a pretensão de esgotá-las, ele estende o debate para o campo mais amplo do confronto entre o épico e o absurdo, as duas correntes dramatúrgicas centrais do século 20. Embora empreenda, neste ponto, um interessante panorama das formas que nortearam as criações entre 68 e os anos 80, seu olhar analítico encontra-se, aqui, direcionado sobre os efeitos que a desagregação do enredo e a fragmentação de categorias essenciais ("tempo", "espaço", "diálogo") exercem sobre o texto. Para Ryngaert, o processo de dissolução da grande narrativa, que havia vigorado até o final do século 19, atingiu, em nossa época, o seu limite pelo recurso a formas como o monólogo, com suas numerosas variantes, as colagens e a hibridização das falas e das técnicas. Brincar com a linguagem, com suas contradições e inconsistências, à maneira consagrada pelo teatro do absurdo, é algo que perdeu, nos dias de hoje, sua virulência. A vanguarda dos anos 50, de Becket, Ionesco e Adamov, já frequenta, nos dias de hoje, a lista de leituras das academias, em que, aliás, esses autores tendem a ser estudados como se integrassem um grupo coeso e homogêneo. Entrar nos textos -nesses, fragmentados e desprovidos de eixo narrativo, criados entre os anos 50 e os 80- implica desafio: é necessário medir o quanto cada um negaceia e resiste ao ato interpretativo e saber lidar com a descontinuidade, com a rarefação do enredo, já que tempo, espaço e linearidade de diálogos foram relativizados ou desapareceram em suas formas convencionais. É necessário, ainda, ousar tocar certos limites da criação dramatúrgica: aqueles para além dos quais ela desaparece enquanto tal, engendrando formas que suscitam ao mesmo tempo recusa diante de sua opacidade e fascínio por sua ousadia. Embora de forma velada, Ryngaert deixa implícita, num breve momento de sua análise, a perspectiva da volta às grandes narrativas, latente na criação de obras chamadas por ele de "textos-limite", em que a própria língua é desconstruída e reinventada e para além dos quais já não há mais criação. A antologia de textos críticos inserida no final do volume ilustra, no vetor teórico, o desenvolvimento das formulações, inventariando de forma concisa e abrangente os editoriais dos principais periódicos críticos voltados ao teatro e as principais questões relativas à encenação e à dramaturgia discutidas por figuras representativas do panorama dramatúrgico e teatral da França de 1953 a 1985: Bertolt Brecht, Jean Genet, Eugène Ionesco, Michel Vinaver, Michel Deutsch e Nathalie Sarraute são apenas algumas dessas figuras. Exercitando seu olhar analítico sobre o panorama teatral e dramatúrgico francês, Ryngaert acaba por abrir o apetite de seu leitor brasileiro para o exercício de uma análise de igual teor, direcionada ao contexto da dramaturgia e da encenação nacional. Seu trabalho vem, assim, auspiciosamente, abrir perspectivas para que desenvolvamos um debate crítico sobre o teatro contemporâneo no ano que se inicia, e -acima de tudo- para que leiamos textos, assistamos a espetáculos e alimentemos, assim, um processo de reflexão no qual o teatro tem um papel fundamental a cumprir. Maria Sílvia Betti é professora de literatura inglesa na USP, coordenadora do Núcleo de Estudos Teatrais do Centro Ángel Rama e autora de "Oduvaldo Vianna Filho" (Edusp). Texto Anterior | Índice |
|