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Um relato biográfico baseado nas cartas da filha de Galileu
Narrativas ao léu
A Filha de Galileu
Dava Sobel
Tradução: Eduardo Brandão
Cia. das Letras (Tel. 0/xx/11/3846-0801)
385 págs., R$ 31,50
PABLO RUBÉN MARICONDA
Este livro de Dava Sobel tem o mérito
de tornar acessível, em excelente tradução, uma parte significativa do conjunto
de cartas escritas por Virgínia Galilei a
seu pai. A autora soube entremear as cartas com a construção de uma narrativa
viva e envolvente, que prende o leitor e o
faz ansiar pela leitura da próxima carta.
As duas filhas de Galileu, Virgínia e Lívia, foram internadas no Convento das
Clarissas, segundo um costume e uma
prática (incentivados pela Igreja) das famílias patrícias italianas que servia muitas vezes para fugir do pesado dote a ser
pago para conseguir consumar o casamento de jovens ilegítimas. No convento,
aguardava-lhes uma vida de reclusão, penúria, pobreza, trabalho, devoção e comunhão com o Senhor. Ao fazer seu voto, Virgínia toma como nome confessional sóror Maria Celeste, em homenagem
às descobertas telescópicas de seu pai.
Até aqui a história seria banal, igual a
centenas de outras do seiscentos italiano.
Mas, ao contrário de sua irmã Lívia, que
responde à reclusão da maneira usual,
com o silêncio e o afastamento da relação
familiar e do mundo, sóror Maria Celeste
abre-se, na reclusão confessional, para a
realização plena do amor filial por meio
de um conjunto admirável de cartas escritas ao pai entre 1623 e 1633. Com elas,
sóror Maria Celeste consegue seu objetivo de chamar a atenção do pai, despertar-lhe a admiração e, por fim, o amor
-com provas assíduas de consideração
profunda, de preocupação com a saúde,
de compreensão pelos seus dissabores,
de admiração pelos seus feitos, como a
própria escolha do nome expressa. Pulsa
nas cartas de sóror Maria Celeste o mesmo amor pela escrita que na correspondência de Galileu.
O melhor do livro está justamente nas
belas narrativas de aspectos da vida cotidiana na Itália, particularmente da vida
devocional e reclusa dos conventos de
freiras na Florença do século 17. Nesse aspecto, a autora vale-se para sua reconstrução das belas cartas da filha de Galileu,
que possuem uma admirável correspondência de estilo com as do pai: a eloquência, a elegância da língua toscana, aliada a
uma fina sensibilidade e aguda perspicácia. Nelas se pode apreciar o domínio do
estilo epistolar barroco, em que o mais
simples pedido vem acompanhado de
longas justificativas, repletas de qualificativos, deferências e súplicas.
Falta de rigor
Mas o senso narrativo não é suficiente.
Falta a este livro precisamente o rigor historiográfico anunciado pela apresentação da contracapa. Nesse aspecto, há graves deficiências, algumas bem flagrantes.
Primeiro, a bibliografia é quase exclusivamente de língua inglesa. A autora desconsidera totalmente autores como Alexandre Koyré, Maurice Clavelin, Ludovico Geymonat e Paolo Rossi, para falar
apenas dos mais óbvios. Ora, não se pode
dizer que existe rigor historiográfico onde não foram confrontadas todas as principais linhas históricas interpretativas.
Segundo, na apresentação do episódio
da torre de Pisa, supostamente ocorrido
em 1597, a autora reconhece ser uma fábula a história segundo a qual Galileu
realizou o experimento de deixar cair bolas de pesos diferentes do alto da torre para refutar a teoria aristotélica, mas não
percebe que contribui para a fábula, ao
tentar explicar qual poderia ter sido o objetivo e a conclusão de Galileu, parafraseando uma passagem das "Duas Novas
Ciências" de 1638. Comete, assim, o evidente anacronismo de interpretar à luz
de um texto escrito 40 anos depois e, portanto, da fase madura, um suposto acontecimento do início da carreira de Galileu.
Terceiro, a autora faz reiteradas afirmações das quais não cita as fontes documentais: o que obviamente impede a verificação da veracidade ou plausibilidade
da afirmação. Falha grave, pois muitos
repetirão afirmações que não poderão
justificar documentalmente e que, portanto, são improcedentes e podem conduzir a distorções interpretativas.
Outras deficiências historiográficas são
menos óbvias, mas muito importantes.
Por exemplo, o livro inicia-se com as descobertas telescópicas de Galileu em 1610 e
sua partida para Florença, fazendo apenas vagas referências ao período paduano (1593-1610), em que Galileu foi professor da Universidade de Pádua na República Sereníssima de Veneza. Essa desconsideração tem consequências desastrosas para a caracterização da personalidade intelectual de Galileu, desfazendo o
vínculo com alguns de seus maiores interlocutores científicos: Sagredo, Salviati
e fra Paolo Sarpi. Desconsidera-se todo o
período em que se forjaram os elementos
mecânicos e a concepção da relação peculiar entre a matemática e a experiência
no estudo da natureza, elementos que
servirão de cimento para a defesa que Galileu empreenderá do sistema copernicano a partir de 1610, com o anúncio das
descobertas telescópicas, até 1632 e com a
publicação do "Diálogo", obra pela qual
será condenado em 1633.
O processo inquisitorial
Por fim, é completamente equivocada a
análise da condenação de Galileu pela Inquisição romana. Isso se torna claro a
partir de uma passagem em que a autora
sintetiza sua posição: "Tecnicamente falando, o édito anticopernicano de 1616 foi
lançado pela Congregação do Índex, e
não pela Igreja. Do mesmo modo, em
1633, Galileu foi julgado e sentenciado
pelo Santo Ofício da Inquisição, e não pela Igreja. E muito embora o papa Paulo 5º
tenha aprovado o édito de 1616, assim como o papa Urbano 8º perdoou a convicção de Galileu, nenhum dos dois pontífices invocou a infalibilidade papal em nenhuma das duas situações" (pág. 267).
Tecnicamente falando, a Sagrada Congregação do Índice e o Santo Ofício da Inquisição são ambas instituições da Igreja
Católica, sem as quais não é possível entender a atuação da Igreja durante o período da Contra-Reforma e sua ação repressiva sobre a cultura humanista italiana.
Ainda maior é o equívoco de dizer que
"o papa Urbano 8º perdoou a convicção
de Galileu", pois Urbano 8º condenou
Galileu à abjuração de suas convicções
copernicanas e à reclusão em vida. A menos que a autora esteja querendo dizer
que, ao fazer assim, o papa na verdade
perdoou Galileu, pois poderia, em vista
de sua convicção sobre o movimento da
Terra, tê-lo condenado à morte, como foi
o caso de Giordano Bruno em 1600.
Infelizmente, o leitor deixará de ver o
desenrolar do "drama pessoal" de Galileu, porque a autora não se limitou a narrar sua dor e prostração diante da derrota
que lhe era imposta pela Inquisição e pela
morte inesperada da filha em 1634. Poderia ter-se centrado mais na relação entre
Galileu e sua filha, terminando com a
morte de sóror Maria Celeste, com o fim
da correspondência entre ambos e com o
profundo sentimento de perda de Galileu. Mas a autora quis ir além, avançando
sobre o terreno da avaliação e do julgamento históricos do processo inquisitorial contra Galileu, desencaminhando o
leitor no entendimento da significação
intelectual e cultural que esse processo
judicial representou para o início da modernidade, para a consciência dos contemporâneos de Galileu. Uma história,
sem dúvida, de intolerância, censura e repressão violenta, que a historiografia
mais recente tem insistido em passar a
limpo.
A relação entre Galileu e sóror Maria
Celeste é uma bela história de amor entre
uma filha reclusa e um pai famoso: uma
história sobre a inevitabilidade dos condicionantes culturais e temporais. Nela
pode-se ver claramente que, por maior
que seja a estatura intelectual e científica
do indivíduo, por maior que tenha sido
sua contribuição ao desenvolvimento da
racionalidade e da ciência, transcendendo na concepção a época em que vivera,
ainda assim, ele também, tal como todos
os outros, é, no fundo, filho de seu tempo
e vive sob as limitações que lhe são aberta
ou tacitamente impostas pelas condições
sociais e culturais de sua época.
Dava Sobel não soube ordenar as peças
desse complexo quebra-cabeças em seu
livro, que não traz nenhuma contribuição significativa para o entendimento
histórico de Galileu. Pretender, portanto,
que esse tipo de literatura tenha "rigor
historiográfico" é uma estratégia mercadológica que não pode passar incólume
ao historiador da ciência.
Pablo Rubén Mariconda é professor do departamento de filosofia da USP.
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