São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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Filósofo francês contemporâneo defende universalidade
Os novos sofistas

VLADIMIR SAFATLE

Nossa época produziu feitos notáveis. Um deles foi engendrar uma suspeita geral contra todos os que defendem perspectivas universalistas. Para uma certa contemporaneidade, todo universal tem parte com discursos de cunho totalitário. Sentimo-nos muito mais à vontade conjugando as gramáticas da multiplicidade ou de um certo relativismo prudente que encontrou sua realização política nas práticas comunitaristas de reificação das minorias.
Dentro de tal quadro consensual, o projeto filosófico de Alain Badiou tende a provocar dissonâncias. Dono de um pensamento que trafega entre psicanálise, filosofia, matemática e a tradição política da esquerda francesa pós-68, Badiou crê que a contemporaneidade está à espera de um "gesto platônico". Gesto filosófico inaugural que consistiria na defesa do espaço da universalidade de um "logos" matematizado contra a retórica sofista. Pois nossa época seria marcada pela hegemonia dos "sofistas": uma nebulosa ampla que engloba os que aceitaram os dispositivos de relativização da unicidade da verdade. Nela encontraríamos: Derrida, Lyotard, Rorty, a antifilosofia de Nietzsche, Deleuze em momentos menos inspirados e mesmo Wittgenstein com sua reorientação do problema da verdade mediante a multiplicidade de jogos de linguagens. Uma articulação extremamente particular da história contemporânea da filosofia, é certo, mas que não deixa de nos colocar novas questões.
Mas qual seria então o programa positivo de Badiou? Algumas de suas facetas gerais podem ser encontradas em seu novo livro. Nele, Badiou utiliza uma linguagem introdutória para falar de ética, real, subjetivação, antifilosofia e, principalmente, de política. De fato, "introdutório" diz respeito muito mais à contenção conceitual que aos resultados propriamente apresentados. O livro é um conjunto de posições advindas de um questionamento ontológico cuja fonte se encontra em "O Ser e o Evento". Dessa forma, ele funciona como uma boa porta de entrada às consequências do pensamento de Badiou.

Matemática e ontologia
Antes de passarmos às tais consequências, retornemos ao programa. É possível esquematizá-lo a partir de duas estratégias fundamentais. Primeiro, trata-se de recuperar a dimensão transcendental da filosofia mediante uma ontologia fundada na matemática. Essa ontologia pode ser vista como uma espécie de resposta francesa à guinada logicista anglo-saxã. A aposta de Badiou consiste em utilizar a matemática como modalidade de apresentação formalizada do ser, já que a matemática diria o que é dizível do ser. Versão parisiense de um sonho positivista-lógico (acrescido do vocabulário do ser)?
Não exatamente, já que estamos distante de qualquer doutrina da verdade enquanto adequação. A complexidade do projeto está na tentativa de pensar as condições de fundamentação da filosofia mediante um modo de apresentação do real que abra espaço à dimensão da universalidade, mas que, ao mesmo tempo, forneça uma crítica às estratégias correspondenciais do pensamento representativo. A segunda estratégia de Badiou consiste em refundar uma teoria do sujeito. Pois, se sua filosofia procura escapar do regime correspondencial de verdade, é porque a verdade tem, para ela, a forma de um evento indecidível e originalmente inominável.
A guinada ontológico-matemática apenas daria as condições para a formalização adequada desse espaço não saturado onde ressoaria o evento. A astúcia consiste em utilizar a matemática para formalizar um limite à própria ação de formalização matemática e abrir, assim, as portas à contingência do evento. Fundamentar a filosofia por meio de uma operação de apreensão da externalidade irredutível do fundamento. A filosofia poderia apenas reconhecer a existência de verdades, e não produzi-las, já que essa produção viria dos campos da ciência, da política, da arte e do encontro amoroso.
Dada tal estrutura da verdade, Badiou precisa de uma teoria do sujeito a fim de articular uma modalidade de reconhecimento da validade universal do evento. Essa teoria do sujeito é a segunda estratégia de seu programa. Mas, como o evento-verdade é produzido, nesses quatro campos, pelo ser (e não pelo sujeito), o que Badiou realmente precisa é de uma teoria da subjetivação, ou melhor, de uma subjetivação sem sujeito original.
Basta ver sua conferência intitulada "São Paulo: Um Contemporâneo". A conversão de Paulo mostraria, na verdade, como o sujeito advém sujeito mediante um ato de reconhecimento e de ser fiel a um evento que aspira validade universal (lembremo-nos que São Paulo é exatamente aquele que declara a universalidade da lei cristã contra o comunitarismo judaico dos primeiros cristãos). Slavoj Zizek percebeu bem que há aí uma certa similitude estrutural com a interpelação subjetiva de Althusser: dispositivo teórico construído para mostrar como um sujeito advém sujeito por intermédio do ato de se reconhecer na interpelação do outro. A diferença é que, em Badiou, o sujeito responde a uma interpelação do ser. A semelhança é que o sujeito é agente, no máximo, do ato de reconhecimento, e não do evento, já que, do evento propriamente dito ele é apenas um suporte.
Vale a pena perceber a articulação política desse esquema filosófico. Por intermédio de sua teoria da subjetivação como identificação com a universalidade do evento, Badiou pode fazer a crítica à tendência contemporânea de reificação das identidades particulares presente na política comunitarista. Ele compartilha o diagnóstico de uma certa esquerda que vê, nessas práticas de minorias, o anverso complementar da universalidade do automatismo do capital. Todas essas reivindicações identitárias (que se dão principalmente na esfera do mercado: para cada identidade um "target" com uma linha completa de produtos e uma linguagem publicitária específica), estão subordinadas à falsa universalidade do capital.
Mas quais seriam, na perspectiva política, as condições de possibilidade de um ato que nos levaria para além dessa falsa universalidade? Badiou nos dá duas: a recusa à idéia de representação e o abandono da noção de Estado e de política vinculada ao Estado.
De fato, essas são questões caras ao pensamento contemporâneo de esquerda e, na maioria dos casos, elas o levam a um diagnóstico similar: desconsiderar a experiência ocidental de democracia representativa, já que se trataria de um regime atrelado à falsa universalidade do Capital, com seu sistema de diferenças controladas que impede o aparecimento de novos eventos capazes de produzir a verdadeira universalidade. No limite, isso leva Badiou a afirmar que a distinção entre um Estado totalitário (como, digamos, o Chile de Pinochet) e um Estado que adota a forma da democracia representativa (como o Chile de Allende) limita-se a uma diferença jurídica. Sem dúvida, a afirmação é polêmica, mas ela materializa um dos problemas postos por uma filosofia que, longe de admitir a consolidação do vazio de uma história sem eventos, procura permitir o reconhecimento de eventos não prescritos pela situação histórica. E, desses problemas, ninguém que defende a possibilidade do universalismo pode escapar.



Conferências de Alain Badiou no Brasil
Organização: Célio Garcia
Autêntica (Tel. 0/xx/31/481-4860)
134 págs., R$ 20,00.



Vladimir Safatle é doutorando em filosofia pela Universidade Paris 8.

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