São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2000

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Obra mostra importância do tráfico de escravos para nossa formação
O miolo negreiro do Brasil

ALBERTO DA COSTA E SILVA

Sempre me fascinaram os grandes retábulos, nos quais se procura dar unidade e sentido aos gestos das figuras que se acumulam, contraditórias, entre o primeiro plano e o horizonte. De um destes cuido: o livro de Luiz Felipe de Alencastro, "O Trato dos Viventes". Dirige as mãos que ambiciosamente o fabricaram um conjunto de idéias que, ou estão a pedir para ser reiteradas, ou são novas e instigam a controvérsia. Nunca duvidei de que o Brasil se formou na escravidão, o processo mais longo de nossa história, e de que não nos podemos compreender sem estudar a África, de onde compramos o grosso de nossos antepassados. Em Alencastro, vejo mais: que o tráfico negreiro conduziu nossa economia e que a formação brasileira se fez num sistema de exploração colonial unificado, que compreendia, num lado do oceano, enclaves de produção fundada no trabalho escravo e, no outro, áreas nas quais se reproduzia a mão-de-obra servil. Fecha-se o livro convicto de que não se pode entender o que se passava no Brasil sem se saber como ia Angola, e vice-versa, e de que as histórias dos dois países compõem, por três séculos, uma só história.
O tema do livro é a junção atlântica entre Angola e o que Alencastro chama "miolo negreiro do Brasil", tendo por principais portos Luanda e Rio de Janeiro. Houve evidente intenção de fazer um retábulo de um só painel. Algum leitor teria pedido um políptico e se alegraria em ver à tábua central acrescentarem-se abas -uma dedicada à Costa do Ouro, onde, ao findar o Seiscentos, os acãs passaram de compradores a vendedores de escravos, em troca de ouro brasileiro; outra, à Costa, que já se chamava dos Escravos, e onde o tabaco baiano se tornava moeda; outra, ao tráfico mais antigo de todos, do Senegal e dos Rios da Guiné; outra, ao Gabão e aos reinos vilis, ao norte da foz do Zaire, com portos que competiam com Luanda-, mas não era isso o que o nosso autor queria nos oferecer. O que queria mostrar-nos é como o Brasil se formou fora do Brasil, no Atlântico, costurado em ponto miúdo a Angola.

Abas do políptico
Não deixa ele de esboçar algumas das imagens que conteriam as abas do políptico. E, sobre as costas das meias-portas que, fechadas, cobririam o painel, traça o grande arco lusitano entre o Japão e Lisboa, com suas trocas de mercadorias, gentes e costumes. Apesar das convocações de Gilberto Freyre, ainda está por se fazer o estudo do influxo da Índia sobre o Brasil, estudo que talvez venha a nos revelar que, se as águas do Zaire, Cuanza, Níger, Ogun e Gâmbia entram pelos rios brasileiros, o Índico chega às nossas praias. Sei que Moçambique serviu de traço-de-união entre Goa e o Brasil, mas tenho dificuldade em acompanhar Alencastro quando escreve que os negreiros brasileiros operaram, na primeira metade do século 19, a atlantização de Moçambique. Não seria com 250 mil escravos, no período de 50 anos, que o fariam. Antes e depois, as trocas mercantis e culturais de Moçambique davam-se quase todas no Índico, de cujas praias fazia parte. Embora infiltrado pelos europeus, aquele oceano, com uma atividade mercantil antiquíssima, rotas de navegação regulares e centros comerciais prósperos, servidos por eficientes sistemas de crédito e elevadíssimo número de navios, ainda estava, nos séculos 16 e 17, longe de se render e integrar na economia-mundo.
Tampouco a África capitulou com facilidade. Alencastro acentua as peculiaridades do reino de Angola, como chamavam os portugueses aos seus domínios na hinterlândia da cidade de Luanda e nos rios Bengo e Cuanza. Fora deles, e até defronte, na ilha de Luanda, mandavam os africanos. O reino de Angola era um dentre vários, ainda que o mais poderoso. Mas de poder relativo, como mostra o ter demorado 50 anos para vencer o "mani cassanze", um régulo que controlava a área logo ao norte de Luanda. O enclave português expandia-se com dificuldade. Da maioria de suas campanhas militares não resultavam o controle de novos territórios ou vassalagens duradouras. Devemos ler com cautela, nos portugueses, as referências a reis vassalos: muitos destes se viam a si próprios como tendo Luanda por aliada. Assim sucedia provavelmente com aquele Angola Ari, rei do Dongo, a quem Luanda tinha por títere, mas que, na sua luta contra a rainha Jinga, usava os portugueses como estes o usavam.
O cenário de Alencastro é esta Angola no sentido estrito. Ainda que, num dos seus apêndices, ele escreva que utiliza a palavra na acepção extensa, a englobar toda a atual República de Angola, na realidade só o faz ao proceder à contagem dos escravos embarcados para o Brasil. E age assim com razão, pois o Seiscentos se findou sem que os portugueses lograssem submeter os reinos quiçamas e libolos, controlar o comércio de Soyo ou monopolizar as compras de cativos em Matamba e Caçanje, cujos soberanos entrariam no século 17 tão fortalecidos que aumentaram os preços da escravaria. Já os reinos de Loango, Cacongo e Angoio, ao norte da foz do Zaire, ainda que negociassem com Luanda, pertenciam a uma outra zona comercial, controlada pelos vilis, que traziam do interior o marfim, os panos de ráfia e os escravos que ofereciam em seus portos. Qual no resto da África, onde os europeus não só tinham de se valer das redes comerciais dos "uângaras", acanes, hauçás e "ichis", mas também de negociar com reis que monopolizavam as transações externas.

Rotas de comercialização
Em Luanda, como mostra Alencastro, a prática negreira era diferente. Os que ali se instalaram, a sonhar com minas de prata, não se deixaram ficar na dependência de mercadores africanos. Saíram atrás dos escravos, de armas na mão. Sem deixar de os comprar, e até de muito longe, nos "pumbos" do Macoco e além Cuango. Possivelmente aproveitaram e desenvolveram rotas e esquemas de comercialização existentes antes da chegada dos portugueses, mas Alencastro, se nos abre o apetite sobre os pombeiros, nos deixa sem saber se, desde o início, entre eles já predominavam os mulatos e os negros, e como atuavam, e como se esgalhava o seu sistema de intermediação e crédito, e como se organizavam as caravanas.
Em Luanda, os portugueses urdiram um modo adicional de conseguir escravos, quase sem custos, ao inverter uma instituição ambunda. Entre os ambundos, costumava-se pôr o estrangeiro sob os cuidados de um dignitário, a quem os portugueses chamaram "amo". Esse "amo" atuava como mediador entre a comunidade e o forasteiro, ajudando-o a adaptar-se ao novo ambiente. Em contrapartida, o hóspede acatava o "amo" e lhe dava preferência no agenciamento das trocas comerciais. Por ser do costume, os portugueses não tiveram dificuldade em aplicar esse sistema aos chefes africanos que a eles se submetiam ou aliavam. Esses chefes não demoraram em perceber que o "amo" português não lhes prestava qualquer serviço e se comportava como senhor, deles exigindo tributo em trabalho, bens e, sobretudo, escravos, que tinham de conseguir por compra, sequestro ou gázua.
Pela minha leitura, o sistema transformara-se numa relação de dependência pessoal entre um chefe ambundo e um português, fosse este governador, soldado ou jesuíta. O primeiro não cedia lugar ao segundo no comando dos seus, e, só excepcionalmente e se africanizando, um português controlaria uma póvoa africana. Não tinha o sistema de "amos" o mesmo molde dos aldeamentos ameríndios, e encontro dificuldade em visualizar, com Alencastro, jesuítas "aboletados na chefia de sobados". Este ou aquele terá convertido um régulo e o influenciado no exercício do mando, mas conversão e tutela foram contadíssimas exceções. Creio, aliás, que a minha leitura reforça o argumento de Alencastro de que o falhanço da evangelização em Angola fundamentou, entre os jesuítas, a tese, justificadora do tráfico negreiro, de que só se retirando o africano da África era possível convertê-lo. Como quer que tenha sido, a instituição dos "amos" não existiu fora das bordas do reino de Angola.
Tenho também por distinto dos aldeamentos e do sistema de "amos" o prazo da Zambézia. Este se originou nos "moganos", ou doações de terras e seus habitantes feitas pelo monomotapa, o rei dos xonas carangas, aos súditos que lhe prestavam serviços relevantes, tipo de recompensa que estendeu aos portugueses que o acompanhavam em suas guerras. Na metade do Quinhentos, os europeus aquinhoados pelo monomotapa passaram a requerer da Coroa lusitana que os confirmassem no gozo das terras. Mas continuaram a pagar tributo ao rei xona e a dever-lhe assistência. Alguns procuraram furtar-se à vassalagem, no que se comportavam como os aristocratas locais, sempre prontos a se rebelar. Mas, só após 1632, quando recolocaram Mazura no zimbaué real, foi que os prazeiros passaram a controlar o monomotapa. Por apenas três décadas, contudo, pois um novo rei, Mucombué, voltou a se impor como suserano de muitos dos prazeiros, chegando a recuperar parte das terras dantes cedidas aos portugueses. Nos séculos 16 e 17, o prazo foi, portanto, uma instituição ao mesmo tempo africana e européia. Para os xonas, um "mogano"; para os portugueses, um aforamento.

Papel dos aliados
Mais de uma vez, Alencastro lamenta que os portugueses, ao relatar suas vitórias, não destaquem o papel dos aliados africanos. Só o fazem no caso dos jagas -ou, como prefiro, imbangalas, para evitar a confusão com os jagas que invadiram o reino do Congo, em 1568, e que não eram, crê-se, a mesma gente. Apesar da queixa, o africano, quer escravo na América, quer homem livre na África, não aparece em "Trato dos Viventes" como o co-construtor, que foi, do mundo atlântico. Porque, interessado sobretudo em demonstrar a unidade da empreitada colonial lusitana no Atlântico Sul, Alencastro só teve lugar, na frente do retábulo, para missionários, militares, mercadores e funcionários do rei de Portugal, para "os do Brasil", os reinóis e o colonato angolano. Por isso também, na parte do cenário correspondente à África, quase tudo se passa em Luanda e em sua órbita, como se Luanda atuasse num vazio de poder, como se não tivesse por vizinhos e próximos não só a monarquia conguesa e um Soyo que dela se separava, mas também os reinos de Libolo, Matamba, Caçanje e Macoco e os estados dembos, quiçamas, ovimbundos, lundas e cubas. No entanto, eram esses reinos os principais fornecedores e clientes dos navios que ancoravam em Luanda.
Alencastro ressalta, como já fizera Pierre Verger em relação ao golfo do Benim, que entre o Brasil e Angola não prevaleceu o comércio triangular considerado característico do tráfico de escravos, mas sim, o bilateral, entre Luanda e os portos brasileiros. Embora não tivesse predominado, esse modelo triangular não deixou de existir nos negócios entre o Brasil e Angola, assim como a sua preponderância nas Caraíbas não excluiu as viagens diretas entre Havana, Boston e os portos da África. Antes que a cachaça, o tabaco, os búzios e o ouro brasileiros se tornassem indispensáveis nos conjuntos de mercadorias com que se adquiriam escravos, houve até uma estrutura de comércio que, na falta de melhor palavra, chamo de poligonal, pois, ainda que a farinha de mandioca tivesse tido o papel para o qual nos chama a atenção inovadoramente Alencastro, pagavam-se as compras na África não apenas com produtos europeus e panaria de Cabo Verde e contas de Ifé, mas também com algodões da Índia, sedas da China, cauris das Maldivas e lãs do Magrebe, transbordados ou não em Lisboa, Rio de Janeiro e Salvador.
O que não falta em "Trato dos Viventes" é matéria de reflexão e debate. Termina-se a leitura altamente estimulado e recompensado, mas não sem desejar que seu autor se tivesse estendido sobre várias afirmações que ficaram sem discussão adequada -ele sabe, por exemplo, que a situação do mulato na África nunca foi tão simples como nos conta-, ou por marginais ao seu enredo, ou por serem, sobretudo, provocações. Ele poderia, porém, responder-nos, com Camões, que sua canção já ia longa e que, por mais que fizesse, não caberia "a água do mar em tão pequeno vaso".



O Trato dos Viventes - Formação do Brasil no Atlântico Sul
Luiz Felipe de Alencastro
Cia. das Letras
(Tel. 0/xx/11/3846-0801)
525 págs., R$ 36,00



Alberto da Costa e Silva é autor de "A Enxada e a Lança - A África antes dos Portugueses" (Nova Fronteira).

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