São Paulo, Sábado, 09 de Outubro de 1999
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Anna Lia de Almeida Prado traduz o primeiro livro da "Guerra do Peloponeso", de Tucídides
O príncipe dos historiadores

JACYNTHO LINS BRANDÃO

Em "Como se Deve Escrever a História", Luciano de Samósata declara que o historiador deve ser destemido, incorruptível, livre, amigo da franqueza e da verdade, estrangeiro nos livros, sem cidade, autônomo, sem rei. Não deve, por amizade ou inimizade, poupar ou atacar alguém, mas referir o que aconteceu. Uma figura sem dúvida idealizada, que logo se identifica com Tucídides, em quem Luciano busca o fundamento dessas verdadeiras leis da historiografia. Em suma: Tucídides não seria só o principal historiador grego, mas, dentre todos, príncipe e princípio de excelência.
Essa imagem atravessou os séculos como paradigma de rigor historiográfico (em geral contraposta à de Heródoto, que se dá mais às Musas e embaralha fronteiras). Difundiu-se também como modelo de composição rigorosa, no sentido de uma obra em que nada sobra, falta ou se encontra onde não devia (quando, como assevera Horácio, até Homero dá suas cochiladas). Finalmente, tornou-se padrão de rigor linguístico, alegria e tormento dos estudantes de grego, que sabem tratar-se de um autor instigante porque difícil (e se, para o senso comum, o que é difícil é "grego", Tucídides então seria o mais "grego" dos gregos).
Os três fatores configuram um verdadeiro clássico, em termos de língua, estilo e história. Qualidades, na presente edição, valorizadas pela tradução de Anna Lia de Almeida Prado, que produz um texto em língua portuguesa cuja marca principal é o rigor, a clareza e a sobriedade. De lamentar apenas que se ofereça ao leitor não mais que o primeiro livro da obra de Tucídides, privando-o do contato, mediante tradução tão acurada, com outros trechos antológicos, como o epitáfio ufanista de Péricles, a descrição dramática da peste de Atenas ou a narrativa trágica da expedição à Sicília.
É bem verdade que o primeiro livro é fundamental. Antes de tudo, porque traz a assinatura do autor: "Tucídides de Atenas escreveu a guerra dos peloponésios e atenienses". Três dados essenciais: de um lado, a pessoa do historiador; de outro, a guerra; mediando ambos, a escrita. A "syngraphé" (narrativa escrita em prosa) desde então se torna sinônimo de história, e o historiador se identifica como "syngrapheús" (escritor).

Modelo épico
Como observou Luciano Canfora, a historiografia antiga quase que se resume à história de guerras. É bem verdade que já nos poetas o interesse pelo tema está presente, bastando lembrar a "Ilíada". Não é descabido admitir que, optando pelo relato alternado de feitos e discursos ("érga" e "lógoi"), Tucídides explore as possibilidades do modelo épico, subjugando-o entretanto às imposições de seu propósito: separar-se tanto do que fizeram os poetas, que adornam seus hinos, quanto do que compuseram os logógrafos, "visando ao que é mais atraente para o auditório de preferência ao que é verdadeiro". Tratando do passado ou do presente, tudo ele submete a prova, sem dar crédito imediato às fontes de que dispõe.
Esse princípio fornece a Tucídides a chave para, na chamada "Arqueologia", reescrever a tradição: Minos foi nada mais que um rei poderoso, por ter sido "o que mais cedo adquiriu uma frota e dominou a maior extensão do mar" helênico; Pélops era um rico migrante que se transferiu da Ásia para o Peloponeso, acabando por dar nome à região; Agamenão tornou-se o chefe da expedição contra Tróia não por suas relações com Helena, mas "porque superava os contemporâneos em poder". Como se vê, Tucídides não recusa o mito, mas busca traduzi-lo em outro registro. Isso implica algumas vezes invocar Homero como prova, outras desclassificá-lo porque, "sendo poeta, naturalmente embelezou para engrandecer".
A finalidade da arqueologia é comprovar a tese proposta no prefácio: a de que a Guerra do Peloponeso "foi a maior para os helenos e para uma parcela dos povos bárbaros e, pode-se mesmo dizer, atingiu a maior parte da humanidade". Essa declaração talvez pareça exagerada e decerto o é (mas nós também não chamamos de "mundiais" as duas últimas grandes guerras deste século, travadas na Europa?). Embora o próprio Tucídides admita que cada qual considerará a guerra que o atinge maior que todas as outras, insiste que os fatos comprovam sua pretensão. No fundo, não se trata tanto de mensurar as guerras em si, mas de demonstrar que a que ele escreve ultrapassa em grandeza as de Homero e de Heródoto -ou as dos poetas e logógrafos.
Trava-se portanto uma autêntica guerra entre os gêneros. Se Homero escreveu sobre o que não viu, Tucídides garante que registra ações que ele próprio "presenciara e depois de ter pesquisado a fundo sobre cada uma junto de outros, com a maior exatidão possível". Conforme François Hartog, uma profissão de fé na autópsia, que tornaria possível apenas a história contemporânea. Entretanto, com relação aos discursos, admite que "reproduzir-lhes as palavras exatamente era difícil", seja quando os tinha ouvido em pessoa, seja quando se informara junto de outros. Escreve pois o que lhe parece que "cada orador teria falado" de acordo as circunstâncias. Já se vê, não se trata de fazer-se prisioneiro da fatuidade de feitos e ditos, mas de reivindicar a "akríbeia" (a exatidão) como método.

Dialogar com o futuro
Essa exatidão, mais racional que factual, visa a garantir a utilidade da obra, decorrente do que "há de claro nos acontecimentos passados e nos que um dia virão a ser semelhantes ou análogos". Dialoga-se pois com o futuro (e por isso a história só pode ser um gênero escrito). Não é sem razão que a "metodologia" tucididiana se fecha com a famosa definição de sua obra como "aquisição ("ktêma") para sempre", mais que "peça para um auditório do momento".
Não interessa quanto a crítica antiga, moderna e contemporânea creu nesses propósitos ou deles duvidou, reconheceu ou não o sucesso do projeto de Tucídides. Interessa antes que a coesão da história depende da coesão da própria "syngraphé", o que o leitor certamente perceberá, auxiliado pela introdução de Anna Lia, que esquadrinha justamente a estrutura do texto.
Em resumo, o que este primeiro livro de Tucídides mais oferecerá ao leitor é matéria para meditar sobre as relações entre a historiografia e a história. Afinal, se o historiador recusa-se a "embelezar para engrandecer", por certo não deixa de engrandecer, em outro registro de discurso, cujo fim pretende ser a utilidade, não se podendo negar a dependência do fato com relação ao texto. Em boa parte, as guerras de 1914 e 1939 foram "mundiais" porque havia uma imprensa capaz de espalhar seus "lógoi" e "érga" ao redor do vasto mundo. Do mesmo modo, a Guerra do Peloponeso ganhou importância em vista do clássico de Tucídides, capaz de transmiti-la ao longo de 23 longos séculos.



História da Guerra do Peloponeso - Livro 1 Tucídides Tradução e apresentação: Anna Lia Amaral de Almeida Prado Texto grego estabelecido por Jacqueline de Romilly Martins Fontes (tel. 0/xx/11/239-3677) 288 págs., R$ 27,50


Jacyntho L. Brandão é professor de grego da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de "O Fosso de Babel" (Nova Fronteira).


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