|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Anna Lia de Almeida Prado traduz o primeiro livro da "Guerra do Peloponeso", de Tucídides
O príncipe dos historiadores
JACYNTHO LINS BRANDÃO
Em "Como se Deve Escrever a
História", Luciano de Samósata
declara que o historiador deve ser
destemido, incorruptível, livre,
amigo da franqueza e da verdade,
estrangeiro nos livros, sem cidade, autônomo, sem rei. Não deve,
por amizade ou inimizade, poupar ou atacar alguém, mas referir
o que aconteceu. Uma figura sem
dúvida idealizada, que logo se
identifica com Tucídides, em
quem Luciano busca o fundamento dessas verdadeiras leis da
historiografia. Em suma: Tucídides não seria só o principal historiador grego, mas, dentre todos,
príncipe e princípio de excelência.
Essa imagem atravessou os séculos como paradigma de rigor
historiográfico (em geral contraposta à de Heródoto, que se dá
mais às Musas e embaralha fronteiras). Difundiu-se também como modelo de composição rigorosa, no sentido de uma obra em
que nada sobra, falta ou se encontra onde não devia (quando, como assevera Horácio, até Homero
dá suas cochiladas). Finalmente,
tornou-se padrão de rigor linguístico, alegria e tormento dos estudantes de grego, que sabem tratar-se de um autor instigante porque difícil (e se, para o senso comum, o que é difícil é "grego", Tucídides então seria o mais "grego"
dos gregos).
Os três fatores configuram um
verdadeiro clássico, em termos de
língua, estilo e história. Qualidades, na presente edição, valorizadas pela tradução de Anna Lia de
Almeida Prado, que produz um
texto em língua portuguesa cuja
marca principal é o rigor, a clareza
e a sobriedade. De lamentar apenas que se ofereça ao leitor não
mais que o primeiro livro da obra
de Tucídides, privando-o do contato, mediante tradução tão acurada, com outros trechos antológicos, como o epitáfio ufanista de
Péricles, a descrição dramática da
peste de Atenas ou a narrativa trágica da expedição à Sicília.
É bem verdade que o primeiro
livro é fundamental. Antes de tudo, porque traz a assinatura do
autor: "Tucídides de Atenas escreveu a guerra dos peloponésios
e atenienses". Três dados essenciais: de um lado, a pessoa do historiador; de outro, a guerra; mediando ambos, a escrita. A
"syngraphé" (narrativa escrita em
prosa) desde então se torna sinônimo de história, e o historiador
se identifica como "syngrapheús"
(escritor).
Modelo épico
Como observou Luciano Canfora, a historiografia antiga quase
que se resume à história de guerras. É bem verdade que já nos
poetas o interesse pelo tema está
presente, bastando lembrar a
"Ilíada". Não é descabido admitir
que, optando pelo relato alternado de feitos e discursos ("érga" e
"lógoi"), Tucídides explore as
possibilidades do modelo épico,
subjugando-o entretanto às imposições de seu propósito: separar-se tanto do que fizeram os
poetas, que adornam seus hinos,
quanto do que compuseram os
logógrafos, "visando ao que é
mais atraente para o auditório de
preferência ao que é verdadeiro".
Tratando do passado ou do presente, tudo ele submete a prova,
sem dar crédito imediato às fontes de que dispõe.
Esse princípio fornece a Tucídides a chave para, na chamada
"Arqueologia", reescrever a tradição: Minos foi nada mais que um
rei poderoso, por ter sido "o que
mais cedo adquiriu uma frota e
dominou a maior extensão do
mar" helênico; Pélops era um rico
migrante que se transferiu da Ásia
para o Peloponeso, acabando por
dar nome à região; Agamenão
tornou-se o chefe da expedição
contra Tróia não por suas relações com Helena, mas "porque
superava os contemporâneos em
poder". Como se vê, Tucídides
não recusa o mito, mas busca traduzi-lo em outro registro. Isso
implica algumas vezes invocar
Homero como prova, outras desclassificá-lo porque, "sendo poeta, naturalmente embelezou para
engrandecer".
A finalidade da arqueologia é
comprovar a tese proposta no
prefácio: a de que a Guerra do Peloponeso "foi a maior para os helenos e para uma parcela dos povos bárbaros e, pode-se mesmo
dizer, atingiu a maior parte da humanidade". Essa declaração talvez pareça exagerada e decerto o é
(mas nós também não chamamos
de "mundiais" as duas últimas
grandes guerras deste século, travadas na Europa?). Embora o
próprio Tucídides admita que cada qual considerará a guerra que
o atinge maior que todas as outras, insiste que os fatos comprovam sua pretensão. No fundo,
não se trata tanto de mensurar as
guerras em si, mas de demonstrar
que a que ele escreve ultrapassa
em grandeza as de Homero e de
Heródoto -ou as dos poetas e logógrafos.
Trava-se portanto uma autêntica guerra entre os gêneros. Se Homero escreveu sobre o que não
viu, Tucídides garante que registra ações que ele próprio "presenciara e depois de ter pesquisado a
fundo sobre cada uma junto de
outros, com a maior exatidão
possível". Conforme François
Hartog, uma profissão de fé na
autópsia, que tornaria possível
apenas a história contemporânea.
Entretanto, com relação aos discursos, admite que "reproduzir-lhes as palavras exatamente era
difícil", seja quando os tinha ouvido em pessoa, seja quando se informara junto de outros. Escreve
pois o que lhe parece que "cada
orador teria falado" de acordo as
circunstâncias. Já se vê, não se trata de fazer-se prisioneiro da fatuidade de feitos e ditos, mas de reivindicar a "akríbeia" (a exatidão)
como método.
Dialogar com o futuro
Essa exatidão, mais racional que
factual, visa a garantir a utilidade
da obra, decorrente do que "há de
claro nos acontecimentos passados e nos que um dia virão a ser
semelhantes ou análogos". Dialoga-se pois com o futuro (e por isso
a história só pode ser um gênero
escrito). Não é sem razão que a
"metodologia" tucididiana se fecha com a famosa definição de
sua obra como "aquisição ("ktêma") para sempre", mais que "peça para um auditório do momento".
Não interessa quanto a crítica
antiga, moderna e contemporânea creu nesses propósitos ou deles duvidou, reconheceu ou não o
sucesso do projeto de Tucídides.
Interessa antes que a coesão da
história depende da coesão da
própria "syngraphé", o que o leitor certamente perceberá, auxiliado pela introdução de Anna Lia,
que esquadrinha justamente a estrutura do texto.
Em resumo, o que este primeiro
livro de Tucídides mais oferecerá
ao leitor é matéria para meditar
sobre as relações entre a historiografia e a história. Afinal, se o historiador recusa-se a "embelezar
para engrandecer", por certo não
deixa de engrandecer, em outro
registro de discurso, cujo fim pretende ser a utilidade, não se podendo negar a dependência do fato com relação ao texto. Em boa
parte, as guerras de 1914 e 1939 foram "mundiais" porque havia
uma imprensa capaz de espalhar
seus "lógoi" e "érga" ao redor do
vasto mundo. Do mesmo modo, a
Guerra do Peloponeso ganhou
importância em vista do clássico
de Tucídides, capaz de transmiti-la ao longo de 23 longos séculos.
História da Guerra do
Peloponeso - Livro 1
Tucídides
Tradução e apresentação:
Anna Lia Amaral de Almeida Prado
Texto grego estabelecido por
Jacqueline de Romilly
Martins Fontes
(tel. 0/xx/11/239-3677)
288 págs., R$ 27,50
Jacyntho L. Brandão é professor de grego
da Universidade Federal de Minas Gerais e
autor de "O Fosso de Babel" (Nova Fronteira).
Texto Anterior: Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento: A mentalidade quantitativa Próximo Texto: Maria Fernanda Bicalho: Poder e negócios Índice
|