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Sai em português "O Castelo", de Kafka, um dos mais importantes romances modernos
O enigma do castelo
MARCUS MAZZARI
Entre os mistérios que emanam da obra
de Franz Kafka (1883-1924) está o fato de
não ter concluído nenhum dos seus três
projetos de romance. O menos célebre
desses é "O Desaparecido", que Max
Brod trouxe à luz em 1927 sob o título
"América" - o próprio Kafka publicou
apenas o primeiro capítulo, "O Foguista",
em cuja página de abertura resplandece a
Estátua da Liberdade empunhando uma
espada. Figuração clarividente da moderna sociedade industrial, o romance anuncia, nos capítulos que narram o trabalho
do herói no labiríntico hotel "Occidental", as opacas hierarquias de magistrados e funcionários de "O Processo" e "O
Castelo".
Kafka não seria, porém, com menos
força o "poeta da inescrutabilidade" se tivesse dado forma definitiva aos romances, pois estes já estão plenamente completos nas poderosas imagens que lhes
infundem a dimensão do mistério. É
também característico desse escritor fazer suas personagens refletirem sobre o
sentido sempre impenetrável das vivências e relações humanas. Assim também
no último romance, cujo protagonista é
designado apenas por K.: entre os capítulos 15 e 20 o leitor o encontrará na escura
cabana de Barnabás, que faz a ligação entre K. e os funcionários do castelo. Em
conversas que mantém com Amália e sobretudo Olga, as irmãs do mensageiro, K.
fica conhecendo a história da família, cuja marginalização se inicia com a recusa
de Amália à grosseira abordagem sexual
do funcionário Sortini.
Não falta aqui nenhum dos elementos
que costumamos associar ao adjetivo
"kafkiano": a obscuridade da culpa e da
punição, o paradoxo, a espera interminável e absurda (o desespero do pai de Barnabás, ao interromper a espera suplicante por um funcionário, está entre as cenas
mais belas e pungentes de Kafka). Também não falta a estrutura do labirinto, já
que os fatos são vistos de todos os ângulos, resultando inextricável emaranhado.
No momento em que a narração está
prestes a ganhar nova ambiguidade, pois
Olga diz nunca saber quando a irmã está
falando a sério ou com ironia, K. corta-lhe a palavra com a exclamação: "Deixe
de lado as interpretações!". Mas deixar de
lado as interpretações é justamente o que
não se faz nos longos diálogos do romance, e também por isso a história da família
de Barnabás reúne em si todos os elementos que se encontram nas obras-primas do escritor.
"Deixe de lado as interpretações" poderia soar igualmente no nono capítulo do
"Processo", que se passa na sombria atmosfera da catedral em que o sacerdote
da penitenciária conta ao acusado Josef
K. a famosa parábola "Diante da Lei": um
homem do campo que espera a vida toda,
diante de uma porta guardada por temível porteiro, para ingressar na lei, até que
no momento da morte o porteiro lhe diz,
como resposta à sua derradeira pergunta,
que a porta estava destinada apenas a ele,
fechando-a em seguida. Os dois examinam a história de vários ângulos, sem
chegar, porém, a uma interpretação segura. "Você crê, portanto, que o homem
não foi enganado?", pergunta K. em certo
momento. "Não me entenda mal -disse
o sacerdote. Apenas lhe mostro as opiniões que existem a respeito. Você não
precisa dar atenção demasiada às opiniões. O texto é imutável, e as opiniões
são muitas vezes apenas uma expressão
de desespero por isso."
A chave perdida
A parábola ilustra de certo modo a situação do texto kafkiano em meio à copiosa bibliografia que o cerca, e, se algumas abordagens levantam a exigência de
deixar de lado as interpretações, exprime-se assim a perplexidade diante de
uma obra que, como nenhuma outra na
literatura do século 20, suscita e ao mesmo tempo destrói as exegeses. Kafka teria
tomado "todas as precauções possíveis"
para dificultar a interpretação de seus
textos, observa Walter Benjamin em
1934. E Adorno, que ao longo de 13 anos
gestou algumas páginas a que deu o modesto título de "Anotações sobre Kafka",
refere-se também a "uma arte de parábolas para as quais a chave foi roubada; e,
mesmo quem buscasse fazer justamente
dessa perda a chave, seria induzido ao erro". É, contudo, plenamente compreensível que nenhum dos dois pensadores tenha podido esquivar-se dos enigmas propostos por Kafka; e chega mesmo a espantar a ousadia da leitura histórico-política que faz Adorno dessa obra, "criptograma da fase final e resplandecente do
capitalismo".
O fecundo paradoxo suscitado pela
obra kafkiana está novamente à disposição do leitor na recente tradução de "O
Castelo", assinada por Modesto Carone,
a qual vem coroar o seu projeto de transpor para o português as narrativas do escritor tcheco. A uma tradução depurada
certamente por longo convívio com o estilo, o tom, as menores peculiaridades da
obra, segue-se um posfácio denso e objetivo, em que Carone reconstitui a gênese
do romance, expõe as vicissitudes das
primeiras edições e momentos fundamentais da recepção.
Procurando ainda situar "O Castelo"
no conjunto da literatura kafkiana, Carone coloca-lhe ao lado apenas "O Processo" e "A Metamorfose", novela a que
Elias Canetti chamou "o maior feito da
ficção na literatura ocidental". Exageros à
parte, raras vezes o protesto contra a reificação e a alienação soou de maneira tão
poderosa como nesse texto que, ao invés
de apelar à dignidade do homem, rebaixa-o, na figura do Gregor Samsa explorado pelo pai e pelo patrão, à condição de
"monstruoso inseto". Mas, como Kafka
escreveu "contos de fadas para dialéticos" (W. Benjamin), a novela consegue
suscitar no leitor a indignação que se expressa, por exemplo, no ensaio "A Honra
de Ser Inseto", de Hélio Pellegrino.
Que o ambiente familiar em que se dá a
tragédia de Gregor não está muito distante das chancelarias e repartições do "Castelo", isso também se depreende de outra
observação de Benjamin sobre a semelhança, baseada no sujo e sórdido, entre o
mundo dos pais e o dos funcionários,
ambos "gigantescos parasitas". Além do
motivo da "sujeira", ainda vários outros
convergem para o último romance, sendo portanto plenamente legítimo considerá-lo a "summa" desse universo ficcional. Parece ser essa a visão do tradutor,
como sugere a alusão à obra magna de
Goethe no título de seu posfácio, "O
Fausto do Século 20".
Embora não explicitado, o paralelo deve-se certamente ao motivo da "aspiração". Mas, se é verdade que também em
Goethe aspiração e errância formam um
par inseparável ("Enquanto aspirar, o
homem estará errando"), os esforços de
Fausto são por fim redimidos pelas hostes celestes ("Quem sempre aspirando se
esforça,/ Este podemos redimir"). Para
entender a diferença cardeal que separa o
mundo de "O Castelo" do horizonte goethiano da redenção, é necessário lembrar
alguns passos do herói entre as escuras
habitações da aldeia a que chega numa
noite de inverno e a paisagem de neve dominada pelo misterioso castelo do conde
Westwest no alto de uma montanha.
Por apenas uma semana estende-se a
história, que começa com as dificuldades
de K. para pernoitar na estalagem junto à
ponte, já que não possui permissão oficial. K. declara-se então o agrimensor solicitado pelo conde, o que é primeiro desmentido e, logo em seguida, confirmado
pelo castelo. Paradoxalmente, K. não recebe autorização para estabelecer-se na
aldeia e, ao indagar quando poderia ir ao
castelo, a resposta é "nunca". Começam
então os esforços do incerto agrimensor
para esclarecer a situação, mas o resultado já se prefigura na primeira tentativa de
aproximar-se do castelo: "Assim, seguiu
em frente, mas era um extenso caminho.
Pois a rua em que estava, a principal da
aldeia, não levava à encosta do castelo,
apenas para perto dela, e depois, como
que de propósito, fazia uma curva e, embora não se afastasse do castelo, também
não se aproximava dele". Logo K. vislumbra no âmbito do erótico uma possibilidade de enfrentar esse labirinto de curvas
e círculos (refletido muitas vezes nas circunvoluções da sintaxe), e o primeiro
passo será a conquista de Frieda, espécie
de garçonete na Hospedaria dos Senhores, distinguida pela condição de amante
do todo-poderoso Klamm, figura proteiforme na imaginação dos camponeses e
demais aldeões.
Na impossibilidade de sumariar os esforços do herói no sentido de desvendar a
misteriosa ordem do castelo, mescla de
instituição feudal e moderno aparelho de
controle do indivíduo, valeria apontar ao
menos para alguns momentos de sua empresa "fáustica", começando com a entrevista com o prefeito da aldeia, em uma
sala abarrotada de processos, autos, dossiês etc . Nesse mundo protocolado e arquivado, K. fica conhecendo meandros
inimagináveis da administração do castelo, com suas incontáveis "autoridades de
controle" e funcionários tão implacáveis
como o italiano Sordini, a quem coube
investigar o extravio de antiga ordem referente à nomeação de um agrimensor (a
existência de um Sordini e um Sortini, assim como a semelhança estandardizada
dos dois ajudantes de K., insere-se na estratégia narrativa de dissolver contornos
nítidos, multiplicar as dúvidas e contradições, relativizar e obscurecer os fatos.)
Se na conversa com o prefeito a dinâmica do castelo se mostra a K . por via indireta, no penúltimo capítulo lhe é dado
presenciar o ruidoso despertar de funcionários que pernoitaram na Hospedaria
dos Senhores e a disputa generalizada entre estes para abocanhar a maior quantidade possível de processos. K., aliás, só
consegue presenciar essa cena interdita
porque acaba de sair do quarto do funcionário Bürgel, onde foi parar por engano. Mas justamente esse engano lhe propicia a chance de sua vida, pois, se uma
parte em demanda, conforme expõe Bürgel, conseguir surpreender um funcionário no meio da noite, poderá obter deste a
realização de qualquer pedido.
Surpreendido e inteiramente vulnerável, Bürgel passa a discorrer sobre essa
possibilidade, para a qual sugere não haver lugar no mundo; e, de fato, a exaustão
física impede K. de reconhecer a situação
e alcançar por fim o cumprimento de sua
aspiração.
Resta apenas, ao término do episódio, o
balanço do funcionário: "Só que existem,
com certeza, possibilidades que de certo
modo são grandes demais para serem
aproveitadas; há coisas que não malogram em nada a não ser em si mesmas".
Dilema fundamental
Malograda a oportunidade única de
romper a situação absurda em que ingressou ao chegar à aldeia, K. é arremessado de volta ao dilema fundamental: se o
ingresso no castelo se tornou ainda mais
difícil, abandonar agora sua aspiração
significaria assumir em definitivo o vazio
da liberdade que experimentara após a
longa e vã espera por Klamm, no oitavo
capítulo, "como se, ao mesmo tempo,
não existisse nada mais sem sentido, nada mais desesperado do que essa liberdade". Tal como chegou até nós, o texto de
"O Castelo" não permite vislumbrar saída para o dilema do herói. Sabe-se, porém, que Kafka planejava concluir o romance com um momento de máximo
paroxismo: a luta contra a burocracia do
castelo levaria K. à completa exaustão e,
moribundo, receberia enfim uma concessão para estabelecer-se na aldeia.
Apesar dessa morte paradoxal, um final feliz para a história, o momento da redenção para o "Fausto do Século 20"?
Certamente não, considerando tal desfecho à luz das últimas palavras de K. na
conversa com o prefeito: "Não quero favores do castelo, mas aquilo que é o meu
direito".
O Castelo
Franz Kafka
Tradução: Modesto Carone
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/ 3846-0801)
488 págs., R$ 35,00
Marcus V. Mazzari é professor de teoria literária
na USP e autor do livro "Romance de Formação em
Perspectiva Histórica" (Ateliê).
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