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Poesia sociológica
LUIZ CARLOS JACKSON
As ciências sociais paulistas foram profundamente marcadas pela presença de professores estrangeiros, aqui radicados a partir dos
anos 30, vinculados às então recém-criadas Escola Livre de Sociologia e Política (1933) e Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
USP (1934). Não seria exagero afirmar que, dentre os jovens e depois célebres integrantes da missão francesa, Roger Bastide (1898-1974) foi quem mais contribuiu na USP -como fez o americano
Donald Pierson na ELSP- para o desenvolvimento do alto padrão
de ensino e pesquisa que caracteriza tal instituição universitária.
Alguns números impressionam. Segundo Maria Isaura Pereira
de Queiroz , Bastide publicou, nos 16 anos que esteve no Brasil, "17
livros, 168 artigos de revistas, 506 artigos em jornais e uma enorme
quantidade de resenhas bibliográficas". Para aquilatarmos sua importância, devemos acrescentar à ampla produção, a influência em
aluna(o)s como Gilda de Mello e Souza, Gioconda Mussolini, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Antonio Candido, Florestan Fernandes e Lourival Gomes Machado. "Diálogos Brasileiros" avalia em
profundidade a obra de Bastide, não se restringindo à sua dimensão acadêmica, mas investigando também o impacto de seus escritos no campo cultural do modernismo e do ensaísmo sociológico
brasileiro.
Nesse sentido, a análise relaciona à obra de Bastide os diálogos
realizados em três frentes vinculadas -arte, ensaio e ciência-,
personalizadas em Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Florestan
Fernandes. A tese de que tais debates teriam sido determinantes
para o andamento da produção do intelectual francês ordena a clara exposição da autora, dividida em três partes: "Diálogo Interessantíssimo", "África e Brasil na Encruzilhada de Pontos de Vista" e
"Dilemas da Modernização".
Seguindo os passos de seu objeto, a pesquisadora investiga a obra
de Bastide a partir dos "temas obsessivos" que a atravessam -com
intuição e criatividade, necessárias à "poesia sociológica" defendida pelo autor-, desde a fase francesa, quando discípulo de Gaston
Richard nos anos 30, em Bordeaux: "A religião, o sagrado, a literatura, a vida mística, o sonho, o imaginário, a memória".
A unidade interna à obra residiria na temática do "contato de civilizações", a partir da qual Roger Bastide fixaria posição teórica no
debate brasileiro e francês a respeito das possibilidades (no Brasil)
e consequências da modernidade, com uma atitude "eminentemente relativista e antietnocêntrica", nos termos de Maria Isaura
Pereira de Queiroz .
No "Diálogo Interessantíssimo" com o modernismo e Mário de
Andrade, nos deparamos com influências recíprocas. Bastide teria
definido temas e abordagens de pesquisa "segundo a orientação de
um roteiro previamente traçado pelo grupo paulista". Nesse passo,
seria por meio de Mário de Andrade que o barroco lhe traria a
"preocupação com a autenticidade e originalidade da cultura brasileira". A contrapartida seria a polêmica sobre arte popular, pela
qual o modernista modificaria sua posição algo ingênua, que desprezava inicialmente a influência da cultura erudita sobre a popular.
Revalorizado pelo modernismo, o barroco é assimilado por Bastide como tema próprio à sua busca quase obsessiva de compreensão do Brasil. A autora acompanha, então, as reflexões de Mário, já
marcadas por visada sociológica que explicita "as condições de
classe dos mulatos na colônia e a sua presença nas artes brasileiras", para, em seguida, compará-las às do sociólogo francês. Este
introduz o tema no curso de estética sociológica, ministrado na
USP -cuja parte teórica seria publicada como "Arte e Sociedade",
em 1945- afirmando, a partir da interpretação de Mário de Andrade, a originalidade do barroco brasileiro, sem desprezar a influência portuguesa predominante, dada pelo "contato de civilizações".
O "original autêntico" não provém, portanto, da "cópia" nem da
"pureza". A procura desta levaria, na concepção de Bastide, ao "pitoresco", recusado por Machado de Assis na percepção dos dois
autores, que influenciariam decisivamente a visão de Antonio Candido na "Formação da Literatura Brasileira". Nesse passo, por
exemplo, a autenticidade nacional residiria na qualidade literária
de Machado e não na descrição superficial da realidade brasileira.
A reflexão sobre a "interpenetração de civilizações" ganha densidade na "Encruzilhada de Pontos de Vista", de Roger Bastide e Gilberto Freyre, vale dizer, das tradições sociológicas francesa -que
prevalece- e norte-americana. A segunda parte do livro é, portanto, a que revela maior esforço teórico, visando esclarecer a noção
central e eixo temático da obra do autor. O ponto de partida é constatar o impacto do ensaísmo brasileiro, estudado a fundo desde a
chegada ao Brasil.
A análise destaca a importância decisiva de Nina Rodrigues e, em
especial, de Gilberto Freyre na reflexão brasileira de Bastide. Após
um balanço teórico cuidadoso, a autora define o "sincretismo" religioso como um processo não de fusão, mas de justaposição de partes (o que já havia sido notado por Nina Rodrigues), que permitiria
ao negro resistir e preservar algo da "África no Brasil".
"África no Brasil" em duplo sentido, como resistência cultural
dos negros e processo constitutivo da sociedade brasileira, que
Bastide enxerga "do outro lado da luneta", invertendo a perspectiva de Freyre, mas endossando suas teses principais, entre elas -a
autora segue a interpretação de Ricardo Benzaquen- o "equilíbrio de antagonismos", que na versão bastidiana se complica. "Os
contrastes que cortam o tecido social brasileiro são múltiplos; logo,
a integração ou o equilíbrio, sempre problemáticos." É nessa chave
que a autora toma partido pela sociologia da religião de Bastide
contra críticas e autores (Peter Fry,por exemplo) que, para ela, isolam a análise da religião da interpretação mais ampla da sociedade
brasileira.
Enfim, "Dilemas da Modernização" encerra o livro, enfatizando a
relação do mestre com o discípulo Florestan Fernandes, que viria a
substituí-lo na cátedra de Sociologia 1, para determinar em boa
parte as linhas de pesquisa da sociologia da USP nos anos 60. Em
torno das pesquisas sobre folclore, nos anos 40, e relações raciais
nos 50, Fernanda Peixoto opõe duas visões do processo modernizador: a de Bastide, cética e radicalmente antietnocêntrica; a de
Florestan, crítica e relativamente otimista. Os "diálogos" valem a
pena.
Diálogos Brasileiros - Uma Análise da Obra de Roger Bastide
Fernanda Arêas Peixoto
Edusp (Tel. 0/xx/11/3818-4149)
224 págs., R$ 25,00
Luiz Carlos Jackson é doutorando em sociologia pela USP.
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