São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2001

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Elefante complexo

O crítico e ensaísta Roberto Schwarz escreve sobre a poesia de Francisco Alvim

ROBERTO SCHWARZ

Na boa explicação de Cacaso, Francisco Alvim é "o poeta dos outros", aquele que encontra a sua voz ao ceder a palavra aos demais, a ponto de transformar a solicitude em técnica de poesia (1). É claro que vai um pouco de malícia nessa descrição do escritor como bom samaritano. Como o próprio Cacaso sublinha, além de abertura, a consideração ao próximo não deixa de ser um meio artístico para melhor apropriar-se dele em flagrante.
Acresce que aqueles "outros" não coincidem com o "outro" de que fala a filosofia, ligado a uma condição humana geral. Pertencem a uma esfera menos abstrata, que não inclui os propriamente estranhos. A expressão faz pensar nos brasileiros "que nem eu", de Mário de Andrade, ou em "todos esses macumbeiros", de que Macunaíma -o "coraçãozinho dos outros"- é "o herói sem nenhum caráter" (2). É o mesmo âmbito recoberto de familiaridade a que se referia Drummond, com cordial ambivalência, ao dizer que "(a)qui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só" (3). Noutras palavras, passados três quartos de século, a pesquisa modernista da peculiaridade brasileira, de nossas falas, relações, ritmos, cumplicidades etc. volta à ordem do dia no novo livro de Francisco Alvim. Não foi pouco o que mudou no intervalo, e o tino histórico e estético para essas mudanças é uma qualidade do poeta.
O essencial de sua posição cabe em poucas palavras. "Quer ver?// Escuta." Está aí a poética do livro, mais complexa do que parece, desde que notemos a cor local da inflexão. A indisciplina no uso das segundas e terceiras pessoas gramaticais, à brasileira, bem como certa informalidade no trato, além do modernismo oswaldiano da composição, cuja brevidade não deixa de ser um lance de humor, destoam do corte universalista da máxima. De fato, licença gramatical e coloquialismo à parte, estaríamos diante de uma lição lapidar, impessoal, fora do tempo etc. sobre as relações entre visão e palavra.
Como é óbvio, a peça não é bem isso, embora não deixe de sê-lo um pouco. As particularidades sociais e culturais de sua entonação puxam para um mundo especial, tornando instáveis as acepções. As mesmas palavras ora sugerem a pessoa inteligente qualquer, que recomenda a humildade da escuta, ora o poeta douto e conciso, ora o brasileiro esclarecido e desabusado, que vai avisando o interlocutor de que não perde por esperar.
Note-se que esse três-em-um, sustentado pela fala corrente, nada tem da complicação interior do Eu romântico, dos seres ou das situações de exceção. O seu lugar é o cotidiano raso, sem prejuízo da peculiaridade nacional e da complexidade, que nos interrogam vivamente. Radica aí, se não estou errado, o segredo dessa literatura. Linguagem e situações rigorosamente comuns, mas pertencentes a uma formação social singular, em discrepância, ou em falta, com a norma da civilização contemporânea.
Há ainda a posição equívoca em que o poema vem colocado no livro, seja ao final de uma série dominada pelo sentimento lírico, seja no início de outra, marcada pela notação crítico-realista, com alto teor de desigualdades e disparates caracteristicamente brasileiros. Uma vez que se encaixa nas duas, o "Quer ver?" da pergunta-título tanto pode expressar o convite à poesia, quanto o humor escarninho de quem conhece a mula-sem-cabeça de que está falando e de que se sabe parte (a expressão é de Francisco Alvim).
O livro deve a consistência ao tom, que na verdade é a dramatização de um conteúdo abstrato, sempre o mesmo, levada a cabo de maneiras muito diversas, com a liberdade de meios estabelecida pelo Modernismo. Trata-se das relações brasileiras entre informalidade e norma, cuja heterodoxia, dependendo do ponto de vista, funciona como um defeito de fábrica ou como um presente dos deuses.
Muito se escreveu a respeito, e o tema tem mesmo alcance. Seja como for, a sua transposição metódica para a estrutura dos poemas é a marca d'água do conjunto. Isso posto, não é preciso ser artista para notar que as dissonâncias correspondentes àquela constelação se encontram espalhadas por todos os cantos da vida nacional. Elas podem ser colecionadas como anedotas da vida real, podem ser reduzidas a diagrama, formando módulos e variações, com potência de revelação, e podem ser inventadas e construídas, de modo a explorar as possibilidades extremas da idéia.
O poeta, que tem um ouvido diabólico para elas, fez de tudo isso um pouco. A variedade de que são capazes vai da inocência pitoresca -"Argumento// Mas se todos fazem"- aos toques impalpáveis, nem sempre fáceis de notar, mas suficientes para manter viva a noção. Assim, por exemplo, a formalidade suntuosa, muito articulada e um pouco ridícula de uma argumentação oficial francesa, faz ressaltar, na página em frente, as claudicações de um funcionário compatriota nosso: "Eu quis colocar esse tipo de coisa/ mas então pensei/ mas meu deus do céu/ aí ele disse". Analogamente, a inteireza ultranítida cultivada num par de espanholadas verbais contrasta com a malandragem, ou com a falta de acabamento, das dicções nacionais. São outras tantas formas de dar existência literária ao espaço brasileiro, configurando-lhe a face externa, no concerto das nações, por meio da diferença de tom entre as línguas.
Num extraordinário poema sobre a caminhada do olhar na trama da luz, assunto filosófico deveras, o movimento é introduzido por um "Às vezes", que o desuniversaliza, ao qual em seguida se agregam coloquialismos leves, fazendo que o encontro do olhar com o tempo e o sempre, que não estão longe, se dê como que entre conhecidos, ali na esquina, onde tudo pára, sem destino, perguntando pelo "lugar?". No poema de abertura, "Carnaval", a transfiguração paradoxal e meio insultuosa da água em deserto se explica pela ressaca do personagem, cuja sede não há água que mate, o que -desde que o pressuposto seja adivinhado- faz sorrir da questão final em que o poema desemboca, também ela filosófica, sobre a realidade e a irrealidade da poesia. Em "Comentário", um poema no qual não se sabe quem é quem e as frases não formam sequência, o segredo das descontinuidades está no medo, nos vazios mentais que se impõem a quem fala da ditadura. Etc.

O país-problema
Tomadas uma a uma, algumas dissonâncias remetem ao país, concebido na sua má-formação estrutural, outras não. No correr da leitura a referência nacional se impõe, conferindo aos poemas, sobretudo aos brevíssimos, uma certa ressonância suplementar, para a qual o leitor vai se educando. Polarizados com a totalidade social, eles passam a dispor de novas possibilidades de alusão e elipse, que lhes permitem enxugamento ainda maior, até o ponto em que o humorismo deixa de ser um objetivo. Digamos que, a despeito do engenho, a porção de espírito que circula em cada um é restrita, como corresponde ao gênero, vizinho da piada, ao contrário do que se passa no espaço visado através deles, aberto em direção da realidade histórica, para além da fronteira do texto -mas será de texto que se trata, se a parte da elipse é tão grande?
Aqui a leitura adequada é francamente ativista, a mais livre, instruída e perspicaz possível, complementar da forma elíptica extrema exercitada pelo poeta. Cabe ao leitor acreditar nos indícios e formular as situações a que as falas pertencem, quando então toma conhecimento do parcialismo delas. Digamos que cada poema, mesmo quando composto só de um título e uma linha, é episódio e perfil da vida de uma totalidade. Assim, ao mesmo tempo que leva a condensação ao limite, o artista a compensa noutro plano, buscando a soltura e a amplitude do universo histórico-social. Este é representado sem recurso às continuidades de intriga e personagem, ou seja, fora dos pressupostos individualistas e dos travejamentos épico e dramático oferecidos pela tradição.
O aspecto iludido e ultrapassado da problemática individual, que a certa altura levou à crise o drama e o romance oitocentista, está como que explicitado pela sua miniaturização nos poemas-minuto, onde dor de cotovelo, ressentimento social, guerra em família, medo de apanhar, fumaças de grandeza, vontade de passar a perna etc. estão reduzidos à devida proporção, sem prejuízo das incríveis sutilezas. Já a gravitação de conjunto, à distância das emoções baratas do romanesco, que no entanto são o seu motor, é um enigma de outra ordem, que é preciso escutar para ver. Noutras palavras, "Elefante" participa da categoria especial das obras em que a verificação recíproca entre as formas artísticas e a experiência histórica está em processo.
Dito isso, os poemas se agrupam segundo aspectos inesperados, do simples contraste ao comentário mútuo fulminante, interagem à distância etc. "Parque// É bom/ mas é muito misturado." Eis aí uma opinião esclarecida "sui generis", favorável aos melhoramentos públicos, embora hostil à participação popular. Nada menos do que uma variante-chave do progressismo nacional até hoje, preso ainda às suas origens coloniais. Não custa dizer com todas as letras que num parque sem mistura não seria admitida a massa indistinta dos pobres, negros ou brancos. A formulação antiga, anterior ao Brasil pseudo-integrado pela mídia, faz sorrir. Não obstante, com os ajustes devidos, o sentimento antipovo continua a ser um esteio da fratura social. Isoladamente, a vinheta se poderia ler em veia saudosista, documentária, oligárquica etc. Uma originalidade e sobretudo um acerto de Francisco Alvim consistem em integrá-la à crise do presente.
"Olha// Um preto falando/ com toda clareza/ e simpatia humana." Ao contrário do anterior, este poema espantoso registra uma vitória sobre o preconceito, mas tão preconceituosa ela mesma que faz engolir em seco. O resultado crítico fica ainda mais intrincado se notarmos que o gosto pela fala humana, simpática e clara, que de fato é esclarecido, comportando o reconhecimento da pessoa e a hipótese da emancipação, hoje deixou de contar, de sorte que aquele momento do pior preconceito aparece agora como a oportunidade de superação que foi perdida.
"Mas// é limpinha." O conteúdo do poema naturalmente é tudo o que ele cala e que terá precedido a adversativa do título: a enciclopédia das objeções que os proprietários fazem aos sem-propriedade, obrigados a trabalhar para eles, à qual no caso só escapa a virtude menor que tem uma mocinha de não ser muito suja. A expressão não perde nada ao passar da sala de estar para a zona do meretrício, como bem observou um amigo.
"Descartável// vontade de me jogar fora." Não se sabe se a vontade é alheia ou própria, possivelmente as duas coisas. Mas, mesmo que seja o desejo de entregar os pontos, trata-se da interiorização das apreciações de classe que viemos comentando.
É claro que entre esse "descartável" e o anterior "misturado" passou tempo. Uma noção pertence à sociedade de consumo, a outra terá nascido com o fim da escravidão. Ainda assim, a constelação de classe a que as duas se referem permanece constante: de um lado, a gente distinta e esclarecida, dita civilizada, mas que manda; de outro, a massa dos sem-direito. O condicionamento recíproco dos campos, nos termos paralegais da autoridade e da informalidade, é um veio central de nossa experiência. O ouvido de Francisco Alvim para as variantes dessa equação lhe permite a unificação certeira e surpreendente de esferas que não se costumam enxergar sob um mesmo signo. Anedotas de Minas, notícias da ditadura, negócios de droga, mães que pegam no pesado em casa e na rua, virações no estrangeiro, a mistura entre desastre de automóvel e dor-de-corno, aflições da política, do funcionalismo e da corrupção, o empurra-empurra da culpa nas separações conjugais, o quero-não-quero amoroso etc. compartilham alguma coisa que o seu trabalho literário soube objetivar. Na grande tradição de Machado de Assis, o poeta conhece a ligação interna entre os opostos da sociedade brasileira e recusa as fixações estereotipadas. Em especial, vê a civilidade peculiar de que são capazes os sem-direito, bem como os momentos de barbárie dos esclarecidos.
Note-se que a matéria-prima desta poesia não são versos nem palavras, mas falas, algo socialmente muito caracterizado. Quando dizia que Chico Alvim é o poeta dos outros, Cacaso queria salientar a generosidade democrática do impulso que o leva a buscar o autoconhecimento e a expressão em palavras e situações alheias, ou seja, no espaço comum, desconsideradas as fronteiras de classe e suas ramificações. E, de fato, a figura artística de Chico respira uma atmosfera de humanidade que é excepcional e deriva daí. Dito isso, haveria as perguntas complementares a fazer: de quem e de que sorte são as falas e as situações a que o poeta empresta a voz e que falam através dele?

Cristiano ou Darlene?
Já ficou indicado que se trata dos brasileiros de um país-problema, o que especifica os acentos. Note-se ainda que as palavras não são de ninguém em particular. Ou melhor, elas têm a generalidade da fala corrente e das posições com encaixe estrutural em nosso processo. Tanto que muitas vezes, por artes de um lance malabarista de dramaturgia, não sabemos de quem são, a quem se dirigem ou a quem, entre os presentes no poema, se deve o título, que não é uma moldura neutra e que participa do jogo de incertezas do resto. Com a diversidade de leituras a que obriga, essa construção indeterminada, mas sempre exata, deixa que fale em ato o nosso sistema de desigualdades, cujas assimetrias vão determinando destinos e nos ensinando o pouco que somos diante dele. O ponto de vista é de fulana ou de beltrano? Embora as palavras sejam as mesmas, podendo servir a todos, a diferença no efeito é total, para vantagem ou prejuízo de um ou outro.
A figura que lembra o acidente de carro é Cristiano, como parece, ou é Darlene, caso mudemos a entonação do penúltimo verso? Não sabemos nada deles além dos nomes e das diferenças sociais que estes sugerem (moço fino e moça com nome de atriz), diferenças que podem muito bem não coincidir com a realidade do caso e não passar de preconceito. Nada mais objetivo que essas oposições talvez inexistentes, e aliás sem importância, em que a existência interiorizada e o poder da estrutura se tornam tangíveis. Os exemplos se podem multiplicar à vontade.
Os poemas de Francisco Alvim têm uma evidência especial, muito deles. Ela resulta da atitude geral em relação à sua matéria, tanto quanto da técnica, a que a atitude comunica o acerto. A sustentação de fundo é dada pela grande inteligência crítica das relações sociais brasileiras. Há também a recusa da individualização, seja das personagens, seja da "persona" do poeta, já que este não compõe a partir de uma mitologia pessoal (com as exceções que veremos). A complexidade e a poesia que ele procura têm como sítio o domínio comum, por oposição ao privado, à maneira do que queria João Cabral. Por fim, para não desconhecer os rumores recentes, seria também possível considerar que o "sentimento íntimo de seu tempo e de seu país", recomendado por Machado de Assis e intensamente cultivado neste "Elefante", não passa de uma mitologia pessoal ou de grupo. Haveria aí uma certa verdade, caso a nação estivesse mesmo deixando de existir, o que não é tão evidente, nem tira valor àquele desejo político e histórico.

Quase-módulos, variações
O procedimento técnico mais espetacular do livro, embora mantido em surdina, são as descontinuidades de perspectiva no interior dos poemas, operadas com habilidade de estontear. Embora exíguo, o campo de manobras é muito carregado de hierarquia social, de modo que as inversões de ponto de vista adquirem dimensão didática, proporcionando verdadeiras revelações. Com a certeza política a menos, há aqui algo de brechtiano. Aliás, o minimalismo inspirado na energia do gesto verbal e da circunstância, bem como na acuidade histórico-social, obedece a um propósito demonstrativo, paralelo ao de Brecht. Sem prejuízo de ser drástica, a redução de falas, cenas, sequências, divagações etc. busca intensificar a lógica das situações práticas, a qual proporciona o critério de funcionalidade aos procedimentos formais. A economia do formato mínimo leva naturalmente à decantação de quase-módulos e à variação das relações sociais de base, cuja representação adquire a contundência que vimos, para a qual a brevidade das formulações não deveria nos cegar.
A sequência dos poemas é fruto de muito cálculo e tem o caráter algo voluntarista da montagem, no que não há demérito. Ela se vale de oposições e parentescos ocultos, que só a análise revela, bem como de avaliações de encenador, de panfletário, de arquiteto etc. O surpreendente é que essas operações, cujo ânimo é contraintuitivo e intervencionista, não se apresentam separadas da naturalidade da fala. É como se elas fossem autenticadas pelo ouvido, e só nessa condição pudessem figurar no livro, onde a limpidez construtivista e a forma orgânica parecem mais aliadas que adversárias. A simplificação moderna está aí, não como imposição da vontade, mas como resultado da escuta, que a reconhece e acata -e expõe- com o sentimento dúbio apropriado ao curso das coisas.
A naturalidade, como se sabe, nunca é natural. No caso, ela é obtida: a) pelo ouvido para as ironias objetivas da fala cotidiana, apuradas até o nervo; b) pela notação exata das situações e de sua lógica; c) pela alusão tácita e alegorizante ao Brasil-problema; d) pela precedência da escuta nas escolhas e recusas que governam a figuração da totalidade; e) pelo entrelaçamento dessas operações com a tradição literária culta, conferindo coesão cultural ao conjunto; f) pelo espírito hoje acomodatício da liberdade formal, capaz de emprestar ao todo um à-vontade relativo, sem cacofonias ou deselegâncias insuperáveis, a despeito das estações do percurso. Digamos que tudo bem somado e subtraído, o livro em seu movimento encena a crise dessa última naturalidade, que é a do Brasil.
Há outra vertente no livro, composta pelos poemas propriamente líricos, a que nada do que viemos dizendo até agora se aplica, ao menos diretamente. Aqui a mitologia e a linguagem são pessoais, a intenção é expressiva, a potência transfiguradora da imaginação existe em alto grau e o assunto é a primeira natureza, e não a segunda. Ou seja, trata-se de luz e sombra, água, areia e vento, animais e paisagens, mais que do sistema de nossos constrangimentos sociais. São poemas difíceis, de grande beleza, e uma vez que não há espaço para comentá-los, ficaremos nalgumas indicações. Tudo está em entender as razões que levaram o poeta a combinar formas de imaginação tão discrepantes. É como se ele dissesse que longe do chão comum e das anotações realistas o seu vôo lírico gira em falso, ou melhor, que o ambiente formado pela realidade corrente é necessário à integridade do seu lirismo, ou ainda, que este deve ser visto como personagem do outro universo, com o qual forma uma unidade. Se for assim, qual o nexo entre esses dois mundos, de tonalidade tão díspar? o que dizem um do outro?
A título de sugestão, perguntemos pela relação que possa existir entre o universo social rebaixado e as visões do elefante, do rinoceronte ou do mar, gigantes cuja escuridão tem luz, cuja massa imponente e una faz bem e cuja arremetida parece mais destinada a fecundar e a reparar que a destruir. Também o sofrimento moral intenso que domina os poemas finais pode ser visto como parte do mesmo universo social, nesse caso como a sua verdade. Assim, a vertente lírica do livro ocuparia no conjunto um lugar de revelação análogo ao que tem no romance realista a aventura das personagens centrais.
Para concluir, a poesia de Francisco Alvim é um pouco posterior ao concretismo, com o qual tem alguns impulsos em comum, solucionados de modo diferente. Penso na busca de unidades mínimas e na sua utilização construtiva. Centrado na fala, e não na palavra, o seu minimalismo desdobra o tempo específico de uma formação social, o mesmo que seus predecessores imediatos aboliram. Há pouco tempo Flora Süssekind escreveu, com toda razão, sobre a grande presença do tempo na poesia espacializante de Augusto de Campos. Por exemplo, o jogo de variações gráficas sobre a página, que permite à palavra "pluvial" se transformar na palavra "fluvial" e vice-versa, envolve uma certa experiência de tempo. O que Flora poderia acrescentar é que se trata de um tempo reversível, do qual está excluída a história, ou cujo conteúdo histórico é essa ausência (4).
Como os concretos e a geração posterior, Francisco Alvim foi à escola de João Cabral, com quem aprendeu a disciplina da brevidade, da variação e da construção límpida. Há contudo uma diferença quanto à posição relativa ocupada pela estruturação na obra dos dois. Em João Cabral esta é o produto da aplicação concentrada e rigorosa da vontade construtiva. Na poesia de Chico ela é o resultado da escuta, que decanta no real a ordem -de rigor cabralino- a que aspirava, na qual entretanto nos reconhecemos sem triunfo, pois ela é o nosso problema. O despojamento despiu-se da ostentação.
Até onde sei, Francisco Alvim é o poeta de minha geração que mais profundamente assimilou a lição dos modernistas. A diferença dos horizontes entretanto é total. Basta pensar no deslumbramento com que estes descobriram, assumiram e quiseram transformar em saída histórica as nossas peculiaridades sociais e culturais, "tão Brasil". Em "Elefante" estas existem, estão sistematizadas, têm uns poucos e finos momentos de encantamento lúdico, mas no essencial formam a nossa pesada herança político-moral. Como diz o próprio Chico, trata-se de Oswald revisto à luz de Drummond, ou do encontro com o problema que estava escondido no pitoresco.


Roberto Schwarz é crítico e autor, entre outros livros, de "Sequências Brasileiras" (Companhia das Letras).

Notas:
1. Cacaso, "O Poeta dos Outros", "Não Quero Prosa", Campinas, Ed. Unicamp, 1997, pág. 308.
2. Ver, respectivamente, "Dois Poemas Acreanos", em "Clã do Jaboti", e "Macunaíma", caps. 7, 1 e o subtítulo da obra.
3. "Explicação", em "Alguma Poesia".
(4. Flora Süssekind, "Augusto de Campos e o Tempo", "A Voz e a Série", Rio de Janeiro, Sette Letras, 1998.

Elefante
Francisco Alvim
Companhia das Letras
(Tel.0/XX/11/ 3846-0801)
152 págs., R$ 21,00



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