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Da militância política à filosofia
Um panorama da filosofia brasileira
RICARDO MUSSE
Elaborar listas sempre é um ato polêmico. A seleção de 16 filósofos em
atividade no Brasil não foge à regra.
Mesmo levando em conta o propósito, enunciado na "Apresentação" do
volume, de guardar distância da pretensão de estabelecer um cânone, privilegiando critérios como a contribuição para a institucionalização da
filosofia no país ou como a busca de
equilíbrio entre diferentes áreas de
especialização e entre representantes
de diversas regiões geográficas, convém examinar os acertos e os desacertos dessa escolha.
Alguns nomes selecionados são
praticamente unânimes no mundo filosófico brasileiro e constariam obrigatoriamente de qualquer lista isenta.
Creio que é o caso de Henrique de Lima Vaz, Gerd Bornheim, Benedito
Nunes, José Arthur Giannotti, Oswaldo Porchat, Bento Prado Jr., Raul
Landim Filho, Marilena Chaui e Paulo Arantes. Os demais não são consensuais, uns pela pouca importância
atribuída à área em que se especializaram, outros por controvérsias acerca de sua relevância intelectual.
Um dos méritos do livro foi a inclusão de representantes de duas vertentes banidas da maioria dos departamentos de filosofia do país (que em
geral seguem o modelo do departamento de filosofia da USP que, por
sua vez, excluiu tais áreas por contingências locais): a filosofia do direito e
a exegese marxista. Mérito ampliado
pela adequada seleção de Tércio Sampaio Ferraz Jr., representante da primeira corrente, e de Ruy Fausto,
Leandro Konder e Carlos Nelson
Coutinho, estudiosos da obra de
Marx e da tradição do marxismo.
A gafe do livro, sem dúvida, é a ausência de Gilda de Mello e Souza.
Além de última representante viva do
trio (composto por ela, Lívio Teixeira
e João Cruz Costa) que consolidou a
aclimatação da filosofia universitária
em São Paulo, após o pontapé inicial
dado pela presença da "missão francesa" na fundação da USP, e de ter encabeçado a resistência dos filósofos
nos anos mais negros do regime militar, tal ausência é injustificável sobretudo pela qualidade ímpar de sua
produção intelectual, ainda hoje modelo de ensaísmo e de crítica estética.
Inexplicável também a ausência do
lógico, internacionalmente reconhecido por seus pares, Newton da Costa.
Apesar da alegada preocupação com
o equilíbrio, essas duas áreas ficaram
sub-representadas, sobretudo se se
leva em conta que também ficou de
fora Otília Fiori, autora de uma reflexão poderosa e original acerca dos
descaminhos da arte moderna.
Opção parcial
A inclusão de Miguel Reale surge
como uma opção bastante parcial,
não se justificando por nenhum dos
critérios aventados na "Apresentação". Talvez tenha sido incluído por
ser teórico de uma tendência política
importante na cultura brasileira, o integralismo, e, posteriormente, de certo conservadorismo que tentou conferir legitimidade à ditadura militar.
Mas então por que ficaram de fora representantes do nacionalismo agrupados nos anos 1950, no Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros)?
Talvez Reale esteja presente porque
os entrevistadores do livro tenham
visto alguma originalidade em sua
obra, como dá a entender uma pergunta feita a Carlos Nelson Coutinho
(cf. pág. 381). Mas que originalidade
há num ecletismo sem peias, que insere em um mesmo movimento pensadores da fenomenologia, do idealismo alemão e do fim da Idade Média e
ainda se define como "historicismo
axiológico"? Por fim, por que começar o livro com frases como: "Assim
como uma pessoa nasce dependendo
de determinados antecedentes biológicos, também já possui, inerente a
sua mentalidade ou a sua sensibilidade, uma vocação para esta ou aquela
função social"; ou essa: "Eu prefiro
manter a linha tradicional. A beleza,
para mim, é uma coisa, e a feiúra, outra".
Talvez a maior objeção que se pode
fazer à lista seja a inusitada inclusão
de Guido Antônio de Almeida e Balthazar Barbosa Filho. Excelentes professores, importantes quadros burocráticos da Capes (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior), possuem em comum o
fato de nunca terem publicado nem
mesmo uma coletânea de artigos. Seriam novos Sócrates? A presença de
Barbosa Filho não se justifica nem sequer pelo critério geográfico: Ernildo
Stein, João Carlos Brum Torres e Valério Rohden são muito mais representativos da filosofia que se faz no
Rio Grande do Sul, além, é claro, de
terem escrito vários livros.
A opção dos entrevistadores de
submeterem os filósofos a uma mesma bateria de dez perguntas (complementadas com perguntas adicionais
específicas) uniformizou os depoimentos, cristalizando-os em três blocos distintos: descrição da trajetória
intelectual, reflexões sobre a própria
obra e dissertação sobre temas atinentes às diversas áreas da filosofia.
Tal clivagem nos permite examinar o
conjunto das entrevistas, tomando
como fio as constantes presentes em
cada um desses blocos.
A comparação e a confrontação das
diversas trajetórias individuais (muitas delas expostas pela primeira vez
sob forma impressa) constituem documento imprescindível para uma
futura história ou sociologia dos intelectuais brasileiros.
Vínculos políticos
Uma característica comum (e de
certo modo insuspeita, tendo em vista o tipo de filosofia que se pratica hoje no país) são os vínculos desses autores -em geral mais fortes durante
o período de formação- com movimentos políticos: Miguel Reale foi
mentor da AIB (Ação Integralista
Brasileira); padre Vaz foi um dos teóricos da JUC (Juventude Universitária Católica) e da AP (Ação Popular),
movimentos nos quais militaram Oswaldo Porchat, Guido de Almeida,
Raul Landim e Paulo Arantes; Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho foram parte dos quadros do PCB
(Partido Comunista Brasileiro) e agora do PT, Bento Prado fez parte da antiga Juventude Socialista e Ruy Fausto
se vinculou ao movimento trotskista.
Marilena Chaui e Giannotti estão entre os intelectuais mais destacados,
respectivamente, do PT e do PSDB.
Mas o que teria aproximado esses
militantes políticos da filosofia? Com
certeza o mesmo fator a que Göran
Therborn alude para tentar explicar
por que Perry Anderson identificou o
marxismo ocidental com um movimento de filósofos profissionais: a filosofia constituía, no Brasil, nos anos
1950 e 1960, como na Europa, nas décadas de 1910 e 1920, a área menos sujeita a controles institucionais (1). Diferentemente dos filósofos do marxismo ocidental que reagiram à superespecialização decorrente da intensificação da divisão do trabalho intelectual, se dirigindo para a teoria social, a
maioria dos membros dessa geração
de militantes brasileiros fez da institucionalização da filosofia (logo, da
despolitização do trabalho universitário) seu programa de vida.
Um mero cotejo dos depoimentos
mostra como o processo objetivo de
institucionalização, inerente à racionalização capitalista, abrange indistintamente autodidatas, religiosos,
militantes e juristas, ao mesmo tempo que uma ilusão (socialmente necessária?) faz com que uns se acreditem heróis da guerra contra a antiga
filosofia de padres e bacharéis e leva
outros a crerem que estão contribuindo verdadeiramente para mudar a sociedade por meio da prática rigorosa
da filosofia universitária.
Outro traço comum às trajetórias
individuais: a adesão à filosofia e a
formação escolar foram quase sempre marcadas por uma relação discípulo-mestre. Padre Vaz novamente é
quem mais encontrou seguidores (de
Raul Landim a Tércio Ferraz), mas
em geral há toda uma geração -Ernani Maria Fiori (RS), Álvaro Vieira
Pinto (RJ), Arthur Velloso (MG), Gilles-Gaston Granger e Gérard Lebrun
(USP)- responsável pela transmissão da filosofia.
Se a filosofia no Brasil ainda não gerou, como muitos reclamam, uma
tradição autóctone, pautada, à maneira do idealismo alemão, pelo diálogo crítico e pela referência mútua
(apesar das tentativas de Bento Prado
Jr. e seus discípulos para apressar esse
processo), já se constituiu entretanto
uma corrente de transmissão que garante ao menos a reprodução de um
padrão filosófico mínimo: certo domínio técnico no trato com autores e
textos, que se disseminou para áreas
limítrofes, como provam, por exemplo, o livro de Gabriel Cohn sobre
Max Weber e a recente incursão de
Pérsio Arida na história do pensamento econômico.
Esvaziamento da filosofia
O projeto de institucionalização da
filosofia no Brasil não se restringiu
porém a tarefas escolares e burocráticas. Marcou profundamente a obra
da maioria desses filósofos, o que fica
patente após uma leitura atenta do
bloco que aborda os textos dos próprios entrevistados. Muitas vezes a
discussão envereda para a explicação
do pensamento de algum clássico
(moderno ou não), quando não parte
diretamente daí. Impulsionada pelo
esvaziamento temático da filosofia ao
longo do século 20, que transformou
a reflexão sobre a história da própria
filosofia em seu objeto por excelência,
o esforço de divulgação e atualização
da tradição filosófica ainda ocupa o
centro da vida filosófica brasileira.
É com esse arsenal que os entrevistados enfrentam o bloco de questões
acerca das diversas áreas da filosofia
-epistemologia, ética, estética, filosofia da linguagem, da religião, da
história e social. Aqui, a heterogeneidade é mais visível, inclusive porque
os esforços foram díspares. Uns (leia-se Gerd Bornheim) adotaram o tom
displicente, outros questionaram os
pressupostos das perguntas, outros
responderam como se fizessem prova
de concurso de livre-docência. O grupo que se autoproclama "de excelência", representado no volume por
Raul Landim, Guido Almeida e Balthazar Barbosa, foi o que mostrou o
resultado mais pífio: quando não se
absteve, mal conseguiu ir além do nível de um bom aluno de graduação.
De modo geral, as respostas desdobram posições adotadas na própria
obra (Porchat, por exemplo, tenta levar ao pé da letra sua "persona" de filósofo cético). Essa explicitação permite classificar a filosofia que se faz
hoje no Brasil (no compasso da filosofia mundial) como uma derivação
(pura ou mesclando as diversas matrizes) de quatro vertentes da filosofia
européia: fenomenologia (nas trilhas
distintas de Husserl ou de Heidegger), neokantismo, marxismo ocidental e filosofia analítica (Wittgenstein).
Ricardo Musse, doutor em filosofia pela USP,
é professor do departamento de sociologia
da USP.
Nota
1. Cf. Therborn, "Dialética da Modernidade - A Teoria Crítica e o Legado do Marxismo no Século 20" em: "Dados", vol 38/2.
Rio de Janeiro: Iuperj, 1995.
Conversas com
Filósofos Brasileiros
Marcos Nobre e José Marcio Rego
Editora 34
(Tel. 0/xx/11/3816-6777)
431 págs., R$ 34,00
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