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O chão e o céu
ANELITO DE OLIVEIRA
Pelo gosto do Simbolismo, especialmente de sua vertente
francesa, a poesia só teria a ver consigo mesma, com o mundo
interior de um artista concebido quase como uma entidade divina. Mas a grande surpresa é que a escrita de Cruz e Sousa
(1861-1898), principalmente aquela que se configurou como lírica, não consegue se desvincular da realidade social e se afirmar
como um artefato puro, apesar dos esforços iniciais do entusiasmado poeta egresso da província do Desterro (Florianópolis). A
impureza, inerente ao mundo, insiste em perturbar seu texto
límpido, tal qual uma sombra evitada e desejada ao mesmo
tempo. Evitada pelo poeta, na sua vontade incontida de se ver
reconhecido como artista requintado, e desejada pelo homem
que, intuitivamente, talvez vislumbrasse nessa sombra uma inscrição de sua condição de negro e pobre.
Vista a partir do ideal asséptico dos parnasianos, esse índice
de impureza não significou, para os primeiros críticos de Cruz e
Sousa (principalmente José Veríssimo, mas também Araripe
Jr.), nada mais que um defeito da forma. Foi preciso chegar a década de 40 para que Roger Bastide abrisse um horizonte mais
amplo para a compreensão da obra sousiana, evocando a problemática do sujeito, da cultura, da simbologia, do conhecimento etc. Nos anos 60, Massaud Moisés aparou as arestas da abordagem de Bastide no que diz respeito à fixação do poeta na cor
branca. E, desde então, passou a fazer falta um olhar não-extremista, capaz de operacionalizar o dentro e o fora em Cruz e Sousa.
Finalmente, estamos assistindo ao surgimento desse olhar em
textos como "Sob o Signo de Cam", de Alfredo Bosi (em "Dialética da Colonização", Cia. Letras), "A Noite de Cruz e Sousa", de
Davi Arrigucci Jr., (em "Outros Achados e Perdidos", idem) e,
agora, o de Ivone Daré Rabello.
Como o próprio título já anuncia, Rabello se detém no centro
da problemática que uma poética como a simbolista, praticada
num país periférico, não poderia deixar de despertar: o relacionamento entre linguagem artística e realidade social. Perpassa
sua análise a intenção de demonstrar o drama de uma sociedade dentro de um código artístico cuja proposta é dizer o indizível, aquilo que aparentemente não faz parte do cotidiano das
pessoas comuns. No entendimento da ensaísta, os "elementos
da vida social" entram na "poética do indizível" porque o sujeito lírico nasce do homem que está com os pés na história, ao
"rés-do-chão".
Animada pela premissa adorniana de que "os antagonismos
não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os
problemas imanentes da sua forma", Rabello desenvolve uma
abordagem minuciosa de alguns dos poemas mais significativos do simbolista, a começar por dois do livro "Faróis", aparecido em 1900, após a morte do poeta.
No primeiro, o soneto "Flores da Lua", a ensaísta atesta a convivência desarmônica entre elementos próprios da poética parnasiana, que então dominava o ambiente, e da simbolista, nova
sensibilidade que emergia a contrapelo. No segundo, o longo
poema "Luar de Lágrimas", Rabello demonstra a perturbação
da forma em consequência da figuração do que chama de "experiência da desventura" por parte do poeta. De um para outro
poema, observa-se uma profunda alteração no modo de orquestrar o poético, sem que o poeta, no entanto, altere o seu modo de percepção.
Recusando-se a abrir mão de sua imagem do artista como entidade sublime, Cruz e Sousa permanece numa posição de contemplação do "inefável", resistindo, de certa forma, à adesão ao
"infando", àquilo que não se lhe apresentaria como digno de ser
dito, mas que é parte fundamental de sua existência, do meio
social em que se encontra. Todavia, à medida que o poeta se
move para o "centro do inefável", o "infando", por influência do
horrendo Baudelaire de poemas como "Les Phares", acaba se
fazendo "signo", o que se daria ainda em "Flores da Lua", poema que emite um "estranho halo", um "misto de luz e sombra".
Esse "halo de luz" desempenharia duas funções, internamente
relacionadas: permitir o "acesso ao conhecimento visionário",
tal como em "Flores da Lua", e clarear o que está abaixo do
"mundo sidéreo" contemplado em "Luar de Lágrimas", o mundo real, digamos.
Deslocando as peças do jogo textual de Cruz e Sousa, procurando visualizar as relações mais internas do poema, a ensaísta
mostra o rol de tensões que marca a assimilação do "chão da
história" por parte da sensibilidade simbolista, platônica, como
quis Bastide, do poeta. A "angústia", a "perturbação da subjetividade", "a contradição", "o desconsolo" e "o despedaçamento
dos esforços do eu" seriam alguns índices dessas tensões apontados ainda em "Luar de Lágrimas". Essas tensões evidenciariam que o poeta está no "chão da história", na iminência de
"lutar pela expressão de seus demônios", mas esses não seriam
apenas dele, motivo pelo qual Cruz e Sousa nos forneceria "uma
visão exemplar da vida cultural nesse Brasil do 2º Império e inícios da República, tanto mais pelo fato de destoar do previsto e
do imprevisível, situando-se nos meios tons que não alcançam
brilho com facilidade".
Assim, Ivone Daré Rabello, em movimento oposto ao de
grande parte dos estudos sobre Cruz e Sousa, reencontra o social por meio de um tensionamento quase obsessivo do textual,
mostrando que o trabalho artístico não mantém uma relação de
subserviência com a realidade, mas uma relação dialógica e, no
limite, dialética. Tudo o que constitui o contexto do poeta negro
-a escravidão, o abolicionismo, as disputas entre literatos, a
pobreza, a discriminação etc.- concorre para a configuração
do seu poema, mas a forma final que esse poema assume não é
compreensível apenas pelo viés do contexto, como se essa forma fosse cópia mal-acabada do lugar onde foi produzida ou arremedo de uma fôrma poética canonizada. A razão da forma se
revela a partir de uma leitura, tanto quanto possível, simultânea
de texto e contexto, à medida que não se confere privilégio excessivo a uma parte em detrimento da outra.
Anelito de Oliveira é poeta e ensaísta, editor do "Suplemento Literário de Minas Gerais" e autor de "Lama" (Orobó Edições).
Entre o Inefável e o Infando
Ivone Daré Rabello
Fundação Catarinense de Cultura
(Tel. 0/xx/48/333-0848)
144 págs., R$ 10,00
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