São Paulo, sábado, 10 de março de 2001

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O dono do negócio

CÂNDIDO GRANGEIRO

Os estudos sobre a história da fotografia no Brasil têm um pretenso dono: Boris Kossoy. É essa a sensação que tenho ao ler sua resenha sobre meu livro ("As Artes de um Negócio - A Febre Photographica São Paulo - 1862-1886"), aqui publicada em 13/1. Longe de estabelecer debate, a resenha não define nem sequer o tema do trabalho: a produção, o consumo e a circulação de retratos fotográficos em São Paulo, entre 1862 e 1886. Para o resenhista, as oficinas fotográficas são "protagonistas" de minha pesquisa. Constrangido, sinto-me obrigado a sugerir-lhe que retorne ao meu texto: nele, os sujeitos são pessoas de carne e osso, que desejavam obter um retrato e que não se importavam em gastar o dinheiro reservado ao feijão-com-arroz do dia-a-dia; além dos fotógrafos que atenderam essa clientela e faziam disso o seu ganha-pão.
Só é possível entender o teor da resenha de Kossoy conhecendo as diferenças que separam o meu trabalho do seu (que, como indico em passagens do meu livro, está longe de ser intocável). A periodização da história da fotografia é estabelecida em conformidade com o desenvolvimento da técnica fotográfica. Esse critério está presente na obra de Kossoy, que defende a divisão dos estudos com fontes fotográficas em dois segmentos distintos: uma história pela fotografia, com a interpretação do conteúdo iconográfico da imagem; e outra história da fotografia, estudo das "etapas sucessivas da tecnologia fotográfica, dos estilos e tendências de representação vigentes num certo momento histórico de um determinado país" ("Fotografia e História", Ed. Ática, 1989, pág. 36).
Meu trabalho segue em direção oposta: estou convencido de que a popularização da fotografia no século 19 relaciona-se mais diretamente com o desejo das pessoas em se retratar do que, por exemplo, com o lançamento da câmara portátil por Eastmam Kodak, em 1888. São os desejos de ter um retrato ou as cenas do mundo que geram incentivos para investimentos e o sucesso da técnica fotográfica. São aspectos sociais e culturais que estabelecem os marcos da história da fotografia.
Afastar-se dos marcos técnicos não significa renunciar ao estudo da técnica fotográfica. Todos os historiadores sabem da impossibilidade de trabalhar com qualquer fonte histórica sem elaborar a crítica de sua produção.
Para entender os retratos é preciso conhecer e interpretar os métodos de trabalho e funcionamento das oficinas fotográficas. Isso possibilita compreender essas fontes como resultado da escolha de cada sujeito no momento de se fotografar, conforme valores, desejos, concepções de vida. Essa interpretação está distante da defendida por Kossoy, que entende os retratos como resultado de uma linha de montagem, confeccionados a partir de procedimentos uniformizados, como afirma em sua resenha.
Eis as divergências. Mais do que imprecisões pontuais, são concepções históricas distintas que se confrontam. Boris Kossoy enxerga imagens estereotipadas, produzidas por manipuladores de máquinas. Para ele, o retratado é simples objeto, quase natureza morta. Pensar o retrato como resultado de uma trama social, em que o fotógrafo é o artista que compõe a cena desejada pelo cliente, significa recuperar a historicidade das imagens e os valores culturais que as envolvem.
Não desejo ser o dono da verdade ou do negócio. Atrevo-me apenas a fazer dois pedidos: ao resenhista, que da próxima vez elabore uma crítica mais apurada sobre o meu trabalho e seja um pouco mais humilde; aos leitores, recomendo que leiam o livro e formulem seus próprios comentários.


Cândido Grangeiro é autor de "As Artes de um Negócio - A Febre Photographica São Paulo - 1862-1886" (Mercado das Letras).



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