São Paulo, sábado, 10 de março de 2001

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Manual de guerrilha

MAM expõe trajetória do artista plástico Antonio Dias

LUIZ RENATO MARTINS
A mostra de Antonio Dias contém 36 peças e dá uma idéia geral da sua poética a partir de 1965. Constam 16 telas, além de obras em pedra, plástico, papel e outros suportes, como filmes. As telas são maioria, mas sua poética não se explica, nos termos da tradição, como pintura. As operações de Antonio Dias o equiparam ao montador, ao editor, ao químico, ao dermatologista... Usa resíduos de matérias, e não cores, realçando a opacidade dos suportes. Assim, as obras são elaboradas à base de óxidos, reagentes ou sobras de materiais aplicados a elementos diversos, ou ainda mediante a subtração de partes e a lavagem de superfícies entintadas (1).
Elas se destacam também pelo teor descontínuo e heterogêneo, tal como produtos industriais, negando o teor orgânico, a unidade e a expressividade como valores estéticos. Porém, se aí unidade empírica ou positiva inexiste, um princípio há em tal poética: ele reside na reflexão crítica que supera a idéia da arte como obra única e não-serial ou como representação e artesanato.
A ironia dá a tônica na entrada, como segunda porta do recinto, em "Laço - Eu e Você" (1965), peça que mescla de modo ácido elementos da arte pop e da canção romântica. Mário Pedrosa diria do novo autor: "Permanentemente condenado a jamais apaziguar-se".
Tal juízo colhia mais que um flagrante da subjetividade de Dias em 1967. Ironia e provocação constituiriam marcas produtivas também do artista maduro. Por que o recurso aos apelos contraditórios, por que desejar desencontros? Na mostra se multiplicam rupturas; surge desassossego entre uma obra e outra. O autor move suas peças tal qual um enxadrista que atua em vários tabuleiros. E a curadoria em consonância, precisa e sintética nas suas escolhas, muito bem orquestradas, desafia-nos com os movimentos de uma obra continuamente cambiante na aparência e nos meios. Assim, diante do jogo poético enigmático, acaba por levar à reflexão histórica, permitindo distinguir coerência e estratégia no contínuo variar dos peões e tabuleiros.

Quebra-cabeças
"Alpha-Omega Biography" (1968), segunda peça da mostra, apondo legendas a imagens seriais similares, designa oposições ou disjuntivas: "image/flesh", "isolation/universe" etc. Como se situar nesse quebra-cabeças, no qual ademais falta um pedaço? Os códigos modernistas não desfazem o embrulho; a pesquisa genética dá com muitas pistas: suprematismo, construtivismo, serialismo etc... Mas e daí? Diante de disjuntivas, o diletante costuma se escudar no amor à arte. Para este, há uma armadilha na terceira parede: ironizando o artifício do claro-escuro, uma obra da série "The Art of Transference" traz ora um quadrado opaco, ora um espelho, ora a falta de uma das partes, sobrepondo à parede um módulo transparente de vidro. Por fim, inverte o jogo do prazer estético, estampando a frase: "I Love You", que desnuda o sentimento privado do espectador.
Frequentes na obra, as palavras destroem a presunção de autonomia e de imediatez da visão e eliminam do ato estético a fusão narcísica eu-imagem. A palavra, presente no corpo do trabalho ou como legenda ao lado, fazendo as vezes de título, corrói a imediatez sensível e ironiza a evidência visual como marca de autonomia, própria do credo estético formalista. Assim, as séries como "A Ilustração da Arte" e a antes citada, críticas da autonomia da visão, ao modo de Brecht e Duchamp, questionam o prazer estético e as regras do jogo no campo oficial da arte.
De "fósforo em fósforo", o observador acorda do sono dogmático, mesmo se o dedo do artista sai chamuscado, segundo o chiste de um dos filmes da mostra. Mas sem o curto-circuito dos opostos, sem ironia não se escapa do labirinto por meio do qual a arte de Dias toma distância didática da visão. "The Space Between" (1969-99) traz dois imensos dados, um negro, de granito brasileiro, outro branco, de mármore de Carrara. As palavras estampadas, "the beginning", num, "the end", noutro, além da nobreza dos materiais, evocam teologicamente o "início" e o "fim".
Porém, sendo pontilhados, os cubos recordam também dados de jogar e evocam, pois, o acaso, suspendendo a questão teológica. Para além dessa aporia há outra, própria à história da arte. Os "drippings" de Pollock celebrizaram-se como emblemas da liberdade na era do existencialismo, e também do não-controle, parecendo como som inverso ou reação contrária aos imperativos da vida administrada. Os dados salpicados de Antonio Dias recordam esses "drippings", mas desfazem tais chavões da leitura. Assim, bem olhados, mostram-se bem regulares. De fato, foram produzidos por brocas e o pó resultante, misturado a uma resina, foi levado de uma pedra para o furo da outra.
Logo, nessa arte analítica e reflexionante, que insiste em desaclimatar e desnaturalizar os sistemas de linguagem ou valor, o elo comum é a reflexão histórica que conduz o sujeito, entre a imediatez e a redelimitação de si, a rever a sua condição, cuja verdade seria igual à de outrem, se não fosse, em cada um, o impulso urgente de viver por si o que os demais também vivem.
Radicadas na dimensão histórica, várias obras aludem explicitamente às lutas populares e ao inimigo. "Anywhere is My Land" muda o jato coeso dos sprays, usados nas frases de protesto nos muros, para ampliar a largura do espectro da tinta e criar um "céu estrelado". Se os trabalhos dos anos 60 e 70, pontuados de vermelho, se referem aos motes revolucionários e às ditaduras, já aqueles dos anos 80, recorrentemente impregnados do pó cinzento-prateado do grafite, denotam uma unificação da sensibilidade, em grande escala. Nas novas estruturas, os acidentes parecem partículas de um sistema, e as efígies das ferramentas, da produção e do mercado, da morte e do valor são agora as únicas que subsistem, no lugar dos sinais do corpo, recorrentes na obra dos anos 60.

Mosaico jornalístico
À saída da mostra, "KasaKosovoKasa" (1996) insiste na referência à história, combinando aspectos contrários: um conjunto de cilindros de PVC suspensos como pingentes, falsas colunas que não tocam o chão, se acha revestido por fotos digitais ampliadas da pele. Nessas formas, tal como no mosaico jornalístico, se mesclam signos e situações díspares: o olhar de longe e o close, uma ogiva, o apelo da pele, a queda do artefato, e a casa e o corpo que vão pelos ares... E por fim a inexpressividade gelada das peças, montadas sem sinal de artesanato, contradita o feitiço da imagem isolada.
O texto da curadora estabelece bem a apropriação por Dias da tradição modernista e esclarece com precisão, na reflexão sobre o retângulo amputado, a força da falta, da assimetria e da reflexividade como componentes da sua poética. A designação da colagem como modo central contribui muito para a compreensão da obra. E Sonia Salzstein ainda indica a natureza, dialética e irredutivelmente plástica, da sua configuração formal, que, como "cunha aberta", se abre para outros domínios além da arte. Entretanto, talvez se observe um descompasso no texto com a visada histórica dessa arte, transcrita nas matérias conscientemente. Quando se busca, como Dias, o diálogo arte-história, certas tônicas não são casuais. A variação das matérias, suportes e gêneros, e, no trato da matéria, a indução irônica dos acidentes pseudo-expressivos unidos dialeticamente à frieza e ao mutismo próprios dos processos pós-artesanais, sem falar nas alusões internacionalistas, designam a superação de toda circunscrição territorial e subjetiva. Tem-se, nesses termos, um mundo já sem particularismos, segundo modelos gerais e abstratos de valor.
Enfim essa arte é a de um autor desterrado e resistente; sem dispor mais de língua e matéria nativas, enfrenta o sistema internacional da arte. Em inglês e em chão estranho, remanejando os sistemas visuais alheios, esse combatente subverte a ordem, desmonta os valores, opera mediante intervenções pontuais como na teoria foquista. Se atua no idioma do outro, Dias evidencia o luto de um país ocupado e a opressão cultural sistemática. "Nota sobre a Morte Imprevista" (1965) é uma obra de juventude. O desejo consciente de luta dura na obra atual, como indica o caniço de bronze, flexível e longo como o poder do pensar, mirando decididamente para o país inventado (2).

Notas:
1. Veja, por exemplo, "As Asas do Povo" (1988), em que a tela foi lavada após a aplicação do pó de grafite.
2. Na formulação original, de 1976, na Itália, a obra que dá o nome à mostra trazia o subtítulo de "Dias-de-Deus-Dará".


Luiz Renato Martins é professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

O País Inventado
Antonio Dias
Curadoria: Sonia Salzstein
Museu de Arte Moderna de São Paulo
(Tel. 0/xx/11/5549-9688)
Catálogo da Mostra (de 08/02 a 08/04)
140 págs., R$ 60,00


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