São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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Mais memória que história

VAVY PACHECO BORGES


A memória da Revolução de 32 continua controvertida. Parece imersa na "zona de penumbra entre a memória e a história" (Eric Hobsbawm), em parte por existir entre nós pessoas que viveram esse acontecimento. Mas não só: 32 é parte importante dos mitos da história do nosso estado. Numa fala oficial-oficiosa, São Paulo aparece como o maior sujeito da história do Brasil, pois os paulistas conquistaram o território, a independência "às margens do Ipiranga" e, em 32, a reconstitucionalização.
Devido às eleições de 33, o final da luta é comemorado pelos perdedores como vitória. Que o Estado Novo tenha alterado o regime democrático, que se tenha estabelecido um novo equilíbrio nas relações entre São Paulo e Vargas, que grande fração da população do estado tenha eleito Vargas senador e presidente, nada conta para essa memória. E como o conhecimento histórico caminha lentamente, na universidade 32 só foi apresentada como guerra civil 50 anos depois, e pelo brasilianista Stanley Hilton. As análises de 70 e 80 procuraram desmontar essa visão glorificadora desenvolvida por participantes ou pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
Em seu livro, Jeziel de Paula faz um vasto levantamento de fotos de época. Sua inovação é apreciável e, a partir de fotos que nos fascinam e mereceriam melhor tratamento, constrói um texto agradável, contando casos de modo entusiasmado e contagiante. Começa por fazer reflexões teóricas sobre imagens e dá exemplos de suas manipulações técnicas e políticas. Depois, analisa de forma temática as fotos: revolução, mobilização e brasilidade. Instiga-nos com exemplos de como se trabalha esse tipo de fonte. Mas a impressão que essas análises me deixaram foi de "clips", em moda nos tempos corridos em que vivemos; a história, porém, deve ser apresentada como filme de longa-metragem.
Em história política é fundamental levantarem-se as falas do maior número de sujeitos envolvidos. Jeziel refere-se à historiografia de forma genérica, ela não o impressiona e ele parece querer contradizê-la "in totum". Sua interlocução quase se limita aos autores que trabalham com fotos.Falta um diálogo com a maioria das leituras que poderia ter organizado em tendências interpretativas, justificando o título de "ensaio" que dá à listagem final.
A partir do material fotográfico, Jeziel faz um percurso diferente, mas o ponto de chegada não é novo, pois não há ineditismo nas apreciações mais importantes sobre o movimento. Já foi mostrado que "32 começou em 30" e que a disputa pelo poder em São Paulo vinha desde a visita de Morato ao Trem da Vitória, que houve enorme adesão popular, que o separatismo não era dominante, que os paulistas, embora regionalistas e preconceituosos, eram também patriotas. Mas que grupos das elites paulistas tinham um projeto para o Brasil, desde os anos 20, Jeziel não menciona.

A OBRA
Imagens Construindo a História Jeziel de Paula Editora da Unicamp (Tel. 019/788-1098) 312 págs. , R$ 21,00



As imagens podem ser enganosas e contraditórias como qualquer outro tipo de documento; examinar um só tipo de fala -o existente nas intenções oficiais- é insuficiente, a não ser que se queira saber somente que tipo de fala esses sujeitos representam, o que Jeziel trabalha bem. Promotores e participantes da revolução querem registrar a grande adesão ao constitucionalismo, que certamente existia em inúmeros corações, mas acompanhado de regionalismo, patriotismo e paixão pelo combate. A campanha pela "Autonomia e Constitucionalização" levada antes da luta transformou-se em "Revolução Constitucionalista" (aliás, o autor nomeia os paulistas "constitucionalistas"). Porém, a disputa política iniciada na "revolução contra São Paulo" em 30 acabou de forma brutal em 32. Apresentar isso como manipulação versus sinceridade é compreensível mas ingênuo.
A partir do relato entusiasta que Jeziel faz do esforço industrial de guerra, fica difícil compreender como a luta foi perdida. Chefes militares e participantes denunciaram a falta de armas, de preparação do voluntariado, a inutilidade das matracas. Os mortos e feridos, a destruição material, os gastos, tudo parece justificado pela "criação artística intensa", pelo esforço de apoio, pelo fato de os serviços públicos não terem sido interrompidos e, claro, acima de tudo, pelo ideal que galvanizou as massas populares. Concordo, porém, com Vargas: 32 foi "uma aventura sinistra".
É certo que o indivíduo tem um caráter irredutível e não se explica sua atuação pela determinação de classe, como lembra Jeziel; mas isso não anula o fato de que as pessoas se deixam envolver pelas paixões e desrazão da política. Ao contrário do que o autor coloca na "Introdução", procurar todas as motivações não é diminuir o porte do movimento, não é questão de ser ou não "democrático". Os críticos da luta não aparecem em fotos, pois tudo que foi dito, escrito e mostrado o foi para promover o ânimo guerreiro e não o esmorecimento (como reconhece Jeziel). A magia das fotos envolve e seduz o autor, fazendo com que se interesse mais pelos sonhos dos soldados que pelas maquinações políticas de seus chefes. Jeziel endossa a representação do movimento que os chefes civis queriam transmitir. Assim, seu livro acaba ficando mais próximo da memória que da história de 32.


Vavy Pacheco Borges é professora de história na Universidade Estadual de Campinas e autora de "Tenentismo e Revolução Brasileira"(Brasiliense) e "Memória Paulista"(Edusp).




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