São Paulo, Sábado, 10 de Abril de 1999
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A nudez de Laocoonte

JORGE COLI

Desde que foi descoberta, em Roma, no início do século 16, a escultura em mármore do "Laocoonte" impôs sua força expressiva como estímulo ou modelo para as artes do Ocidente. Michelangelo trabalhou amorosamente em sua restauração, encontrando estreitas afinidades entre seu próprio gênio e as dramáticas contorções dessa escultura helenística, que o impulsionaram para os mais atormentados escravos do túmulo de Júlio 2º ou para as terríveis figuras do "Juízo Final".
Durante muito tempo, o "Laocoonte" foi tomado não como uma obra tardia, mas como a quintessência do gênio clássico da Antiguidade. De Ticiano a El Greco, de Berruguete a Blake, ele seria revisitado sem cessar, visualmente discutido pelos maiores artistas. Quando, no século 18, a reforma iluminista e neoclássica das artes dispara um retorno "autêntico" e filológico à Antiguidade, o "Laocoonte" é centro de atenções dentro de um debate que envolveria Winckelmann e Lessing. Winckelmann fundou a arqueologia como disciplina moderna; era ainda esteta e historiador da arte. Lessing, renovador da crítica literária e do teatro na Alemanha, admirável autor dramático, é também um pensador inteiramente envolvido nas transformações trazidas pela filosofia das Luzes.
Lessing publicou, em 1766, uma obra essencial sobre as artes, que acaba de ser traduzida em português, de modo exemplar, por Márcio Seligmann-Silva, responsável também pelo rigoroso aparato crítico. Seu título é "Laocoonte ou Sobre as Fronteiras da Pintura e da Poesia".
Não é um tratado filosófico de estética, em que o olhar se desvia das obras para construir um sistema. O próprio Lessing ironizou: "A nós alemães não faltam livros sistemáticos. A partir de um par de definições aceitas deduzir tudo aquilo que queremos na mais bela ordem, quanto a isso somos melhor do que qualquer nação do mundo". Seu livro é, em verdade, um extraordinário ensaio que, até hoje, suscita reflexões vivas e atuais.
Lessing avança sempre em contato estreito com os exemplos precisos, generaliza por indução e não tende nunca aos raciocínios abstratos. O tema do Laocoonte é paradigmático e ajusta-se à questão que Lessing quer desenvolver. Ele fora tratado em dois grandes momentos da Antiguidade. Num, pelo admirável grupo de mármore que chegou até nós. Em outro, por meio da narração de Virgílio na "Eneida", contando a morte do sacerdote de Apolo e de seus filhos por duas monstruosas serpentes. Perfeito paralelo para se discutir a natureza da poesia e das artes visuais.
As atitudes mais modernas no século 18 buscavam eliminar as seduções, os excessos, os contrastes, as emoções violentas que presidiam as artes daquilo que, hoje, nós chamaríamos de barroco. Winckelmann investe nessa batalha, propondo o exemplo da serenidade grega: "A expressão nas figuras dos gregos mostra, em todas as suas paixões, uma alma grande e sedimentada". "Laocoonte" seria o grande exemplo, em que o sofrimento físico é contido pela força do espírito e em que a anatomia tensa, a boca entreaberta, são sinais das relações controladas entre a alma e o corpo.
Winckelmann possui uma percepção muito mental do classicismo: ela precede o conhecimento dos mármores do Partenon pela Europa do Ocidente e anuncia a escultura de Thorvaldsen, feita de abstrata harmonia. Ela tende ainda a minimizar as torções dramáticas da escultura helenística, que então era tida por clássica. Winckelmann participa também de um processo que terminaria por destituir os latinos de um papel primordial: eles deixam de ser a fonte mais importante de cultura e são substituídos pelos gregos. Em sua análise, "ele (Winckelmann) lança sobre Virgílio" -diz Lessing- "um olhar lateral de reprovação", por causa do grito terrível que o poeta faz Laocoonte soltar. A dor física do "Filocteto" de Sófocles, no pensar de Winckelmann, seria melhor comparação para o mármore do Laocoonte.

A OBRA
Laocoonte G. E. Lessing Introdução, tradução e notas: Márcio Seligmann-Silva Iluminuras (Tel. 011/3068-9433) 320 págs., R$ 25,00



Lessing conduz sua indagação. Há nele uma dupla vertente, "clássica" e "romântica", que incidiria fortemente, por sinal, no pensamento e na arte de Goethe. Lessing está empenhado em fugir dos modelos franceses para o teatro que, no século 18, sucumbiam sob convenções estéreis. Ele prefere levar a Alemanha para a proximidade de Shakespeare. Isto é: ele indica um caminho que seria, mais tarde, o do grande teatro romântico. Os próprios franceses iriam servir-se do grande bardo para libertarem-se dessas regras arcaicas, mas apenas 70 décadas depois que o "Laocoonte" tivesse indicado a direção salutar.
Para as artes plásticas, porém, Lessing desenha um outro trajeto, mais "clássico" do que o do teatro, embora divergindo da harmonia transcendente de Winckelmann. Um classicismo que seria possível chamar de empírico e, num certo sentido, de realista.
Lessing determina que as artes plásticas limitem-se à representação do visível. Elas devem encontrar uma harmonia, um equilíbrio, a partir daquilo que é possível colher pela observação. Uma seleção impõe-se -o artista pode criar algo mais elevado do que a natureza produziu, mas a partir da própria natureza, do modo como Zeuxis pintou sua Helena tomando o que de mais belo as mais belas moças de Crótona possuíam. Não cabem, está claro, nesta seleção, a feiúra ou a dor descontrolada -tão exploradas como efeitos pitorescos ou assustadores pela arte barroca. O que é concedido ao teatro, às formas evocativas e sensíveis da poesia -o feio, o asqueroso, o violento, "suavizados graças à expressão por meio de palavras"- é negado ao artista plástico. Lessing demonstra que o "Filocteto" de Sófocles é, legitimamente, muito mais violento do que o mármore do "Laocoonte".
Deste modo, se Lessing nos permite vislumbrar o romantismo no teatro por meio da adesão a Shakespeare, ele indica também muitas das inflexões decisivas que serão tomadas pela pintura de David nos anos de 1780. Quando se afirmar o heroísmo neoclássico nas artes visuais, as considerações de Lessing permanecerão como horizonte mental. Toda a construção da pintura de David é feita por meio da análise do mundo visível, parte por parte, para ser remontada e cristalizada em tensão e nobreza. É uma arte que evita a ação: David irá proclamar a necessidade de se representar uma cena antes ou depois do acontecimento brutal, tal como Lessing determinara. Mais tarde ainda, o romantismo tão "clássico" de Delacroix parece seguir, com cuidado, as indicações de Lessing para figurar Medéia e seus filhos.
Mais ainda: as roupas são possíveis na poesia, mas a nudez é essencial nas artes visuais (Lessing faz uma admirável comparação entre o Laocoonte vestido de Virgílio e o Laocoonte nu do grupo escultórico). David baseará suas obras nos personagens que são traçados, primeiro, nus, para em seguida serem vestidos, como se as roupas fossem consequência de uma anatomia respeitada e que se encontra sob elas.
Os pintores barrocos, que desdobravam seus maravilhosos panejamentos, saem implicitamente condenados pelo texto e pela prática neoclássica que o sucedeu. Por trás do "Laocoonte" de Lessing transparece sempre a característica recusa iluminista da arte barroca, arte esta que destruira as fronteiras entre os diferentes gêneros artísticos, para dar-se numa constante interação.
Lessing determina: poesia, arte do tempo; pintura, arte do espaço. A melancólica reflexão sobre a temporalidade trazida pela paisagem de sua época, pela pintura de ruínas, é combatida por obras que se projetam no intemporal. Concretamente, alguns anos depois: "O Juramento dos Horácios" contra Hubert Robert. Fora do tempo, o mundo visível transforma-se então em emblema ético ou político (1).

Nota:
1. Sobre o espaço e o tempo no "Laocoonte" de Lessing, ver Mitchell, W. J. T. - "Space and Time: G. E. Lessing", in "Iconology - Image, Text, Ideology", The University Chicago Press, Chicago, 1986.


Jorge Coli é professor de história da arte na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


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