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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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Protagonistas de nossa arquitetura


Depoimentos de uma Geração
Alberto Xavier
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
408 págs., R$ 45,00


RENATO ANELLI

"Depoimentos de uma Geração" é um livro básico para o entendimento da cultura moderna no Brasil, pois reúne uma ampla seleção de textos de arquitetos e intelectuais produzidos no calor do embate pela instituição da arquitetura moderna.
O autor, Alberto Xavier, faz parte de uma geração que percebeu, no início da década de 1960, que as manifestações dos protagonistas desse debate necessitavam ser documentadas e transmitidas às novas gerações. Essa intenção foi explicitada por Joaquim Guedes na apresentação de "Depoimentos 1", coletânea de textos dos "mestres" paulistas publicada pelo Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em 1960, ao ressaltar que o valor desses escritos "transcende o episódio" para o qual foram produzidos e "são para nós uma lição sem limites".
Pouco depois, em 1962, Xavier reunia e publicava os escritos de Lúcio Costa ("Lúcio Costa: Sobre Arquitetura"), esforço apenas superado com a publicação recente de "Registros de uma Vivência". Durante muitos anos a organização e a divulgação desses documentos foi realizada de forma singela, nas universidades e organismos profissionais, por meio de publicações simples, de tiragem pequena, ou em fotocópias passadas de mão em mão.
A publicação de "Depoimentos de uma Geração" mostra um novo quadro, em que parece se consolidar um mercado editorial de arquitetura. Trata-se de uma coletânea marcada pela profundidade e extensão da pesquisa em fontes primárias e pela seleção criteriosa dos textos que mereceram ser destacados e trazidos ao presente. Pode parecer estranho ao leitor menos informado, uma vez que hoje o debate sobre arquitetura tem pouco espaço na mídia não especializada, que grande parte dos textos reunidos tenha sua origem em publicações como "Diário Nacional", "O Globo", Folha, "Jornal do Brasil", "O Estado de S. Paulo" e não tenha sido escrita apenas por arquitetos.
Os textos de intelectuais como Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Werneck Sodré, Anísio Teixeira, Mario Pedrosa e outros demonstram que a arquitetura era entendida como um "fato de cultura". No entanto, tratava de uma concepção de cultura estranha à nossa contemporaneidade. Ao lermos os textos da coletânea descobrimos um debate estruturado como campo de discussões fundamentais da sociedade, constituindo-se em uma cultura essencial à construção do país.
Já foi ressaltado por vários pesquisadores que os protagonistas da nossa arquitetura moderna usaram alguns estratagemas para se sagrarem vitoriosos na disputa pela hegemonia que atingiram nos anos 1950. Legítima naquele momento, essa operação acabou por condicionar uma certa linha historiográfica que privilegiou a corrente "carioca" (Costa e Niemeyer), minimizando outras produções modernas do período.
Na segunda metade dos anos 1980 iniciou-se um processo de revisão historiográfica da arquitetura moderna que vem pautando muitas pesquisas de pós-graduação e alimentando a atual produção editorial de arquitetura. "Depoimentos de uma Geração" traz grande contribuição para esse processo ao recuperar documentalmente a complexidade dos confrontos internos ao campo da arquitetura moderna no Brasil durante o período enfocado.
A boa organização dos textos em capítulos conduz a leitura, conferindo um caráter didático que lhe garante importância na formação das novas gerações de arquitetos e pesquisadores. Os capítulos iniciais reúnem os primeiros manifestos pela nova arquitetura, publicados em São Paulo em 1925, e pela necessidade de transformações no seu ensino, permitindo ao leitor acompanhar a crise da Escola Nacional de Belas Artes após a adesão de Lúcio Costa ao movimento moderno. Com os depoimentos sobre os projetos do Ministério da Educação e Saúde, do Pavilhão do Brasil na Feira de Nova York e do conjunto da Pampulha, reunidos em "Obras-Chave", o leitor poderá entender o papel do Estado na afirmação da hegemonia dos "cariocas".
Os capítulos seguintes trazem as "confrontações" ao sucesso do movimento moderno brasileiro, apresentando de forma abrangente a polêmica em torno das críticas formuladas por Max Bill entre 1951 e 1954. A energia da resposta de Lúcio Costa não consegue ocultar que as palavras do designer suíço calaram fundo em uma hegemonia que tentava se transformar em unanimidade. Em "Olhar Estrangeiro" acompanhamos a repercussão dessa discussão em "Architectural Review", "Casabella" e outras revistas que compunham a linha de frente do debate internacional. No entanto, fica claro que isso só foi possível devido à força da arquitetura aqui produzida, mesmo nos anos anteriores a Brasília, que permitiu sua incorporação à produção internacional sem "complexos de inferioridade".
Ao explorar os debates sobre as relações da arquitetura com a sociedade, a forma, a técnica, a nacionalidade, a crítica, o ambiente e as artes plásticas, Xavier apresenta uma amplitude de temas e abordagens que desmascara as acusações de dogmatismo, confortavelmente propostas nos últimos anos por críticos oportunistas. O autor nos leva a perceber que muitas das questões ali colocadas são importantes para pensarmos a situação contemporânea. No seu conjunto, mostram o moderno muito mais como postura propositiva do que como momento histórico superado.
O autor destaca, na "Nota Introdutória", o seu desconforto com o novo papel do Estado, "agente decisivo na construção desse período aqui retratado -travestido de observador de outros agentes aos quais delegou seu papel histórico". O desenrolar dos últimos anos demonstra que, apesar de imprescindível, a recuperação histórica da riqueza da cultura arquitetônica moderna não basta para a nossa ação contemporânea. A atual ausência de um debate consistente sobre arquitetura acompanha o seu mergulho no reino do marketing imobiliário e a torna, em grande parte, cúmplice da decadência de nossas cidades. Ao lado de outras publicações que recuperam o melhor da produção moderna no Brasil, esse livro é uma importante contribuição para concebermos novos projetos, quem sabe mais bem-sucedidos na construção de um país mais justo.

Renato L.S. Anelli é professor de arquitetura da Escola de Engenharia de São Carlos (USP) e Secretário Municipal de Obras, Transportes e Serviços Públicos de São Carlos.


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