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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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Deciframento sem fim


A Tripla Hélice.
Gene, Organismo e Ambiente
Richard Lewontin
Tradução: José Viegas Filho
Companhia das Letras
(Tel. 0/xx/11/3707-3500)
144 págs., R$ 27,50


CRODOWALDO PAVAN

A era genômica nos coloca atualmente diante de uma situação complexa, em que precisamos entender o comportamento e as interações dos genes, assim como seus mecanismos de regulação, e não apenas a sequência dos nucleotídeos que integram o genoma de um organismo. Na verdade, cada gene representa uma "pedra de Roseta" para ser decifrada. Muito mais do que o conhecimento da ação primária de um dado gene, é preciso conhecer as interações que são estabelecidas com outros genes, com os ambientes intra e extracelular e com o meio em que o organismo está incluído. Só pela análise das atividades de um número ponderável de genes assim decifrados poderemos tentar, de forma racional, interpretar o comportamento do genoma.
É interessante evidenciar que o desenvolvimento da genética nos primeiros 25 anos do século 20 foi extraordinário, embora a grande maioria dos trabalhos fosse realizada, e com muitos bons resultados, sem que houvesse por parte dos produtores dos trabalhos a necessidade do conhecimento dos fatores genéticos responsáveis pelos resultados obtidos. Com isso, hoje estamos sem possibilidades de utilizar os genomas (sequências de nucleotídeos do DNA de um organismo) como um instrumento de análise de seu próprio funcionamento.
Em "A Tripla Hélice" encontramos uma análise crítica de como vêm sendo estudadas as relações entre os vários fatores que interagem no comportamento e na atividade dos genes, fornecendo ainda sugestões preciosas sobre o que deve ser feito e, não menos importante, fazendo o leitor se envolver nas interpretações teóricas do assunto.
No primeiro capítulo, explica-se a forma como as relações entre os genes e organismos são normalmente analisadas. O autor apresenta vários casos em que, para mais facilmente se compreender as explicações, são utilizadas metáforas que envolvem grande risco: o de que venhamos a confundir a metáfora com aquilo que realmente interessa. Nesse caso, a compreensão seria bastante satisfatória, só que não explicaria a realidade.
Segundo Lewontin, "o organismo não é determinado nem pelos seus genes, nem pelo seu ambiente, nem mesmo apenas pela interação entre eles, mas carrega uma marca significativa de processos aleatórios. Ele não se computa a partir de informações de seus genes nem das informações de seus genes e da sequência de ambientes. A metáfora da computação é apenas uma atualização da metáfora da máquina usada por Descartes. Como toda metáfora, ela capta alguns aspectos da verdade, mas pode desencaminhar-nos se a tomarmos ao pé da letra".
No segundo capítulo, destaca-se que "muitas metáforas já foram invocadas para ilustrar a relação entre ambiente e organismo independentes entre si. O organismo propõe, o ambiente dispõe. O organismo faz conjeturas, e o ambiente as refuta. Na forma atualmente mais popular na literatura técnica sobre evolução, o ambiente propõe problemas e o organismo lança soluções aleatórias. Nessa estrutura conceitual, a metáfora da adaptação é, sem dúvida, apropriada. Adaptação é, literalmente, o processo pelo qual um objeto se torna apto a satisfazer uma exigência preexistente. Uma chave se adapta a uma porta desde que suas reentrâncias sejam aptas a abrir o segredo da fechadura".
O autor apresenta uma série de exemplos pertinentes ao que quer explicar e chega a algumas conclusões como a seguinte: "O crescente movimento ambientalista que visa a evitar alterações do mundo natural que sejam, no mínimo, desagradáveis e, na pior das hipóteses, catastróficas para a existência humana não poderá proceder racionalmente sob a falsa palavra de ordem "Salvemos o ambiente". Não existe "ambiente" a ser salvo. O mundo habitado por organismos vivos está sendo constantemente modificado e reconstruído pelas atividades de todos os organismos, não apenas pela atividade humana. Tampouco o movimento pode continuar a empunhar a bandeira "Não à extinção!". Dentre todas as espécies que existiram, 99,99% estão extintas, e todas as que hoje existem um dia estarão extintas. Na verdade, um dia toda a vida da Terra estará extinta, se não por outras razões, pelo fato de que o Sol se expandirá e queimará o planeta dentro de cerca de 2 bilhões de anos. Como a vida teve início há mais de 2 bilhões de anos, podemos dizer com segurança que a vida na Terra está pelo menos 50% concluída".
No capítulo seguinte, Lewontin assinala que "o problema de dividir o mundo em partes e peças apropriadas é consequência da tradição analítica que a ciência herdou do século 17. Se o animal é como uma máquina, como afirmava Descartes na quinta parte do "Discurso do Método", então ele será composto de partes e peças que podem ser, claramente, diferenciadas, cada uma das quais terá uma relação causal determinada com o movimento das demais. Contudo o modelo da máquina de Descartes é não apenas uma descrição de como o mundo opera, mas também um manifesto sobre como estudar os fenômenos naturais". Apresenta, a seguir, numerosos exemplos para explicar as relações entre partes e todos, causas e efeitos.

Novas metodologias
No quarto e último capítulo, intitulado "Direções no Estudo da Biologia", o autor observa que os capítulos anteriores possuem uma conotação caracteristicamente negativa. Dedicam-se a "explicar por que um enfoque reducionista do estudo dos organismos vivos pode nos levar a formular respostas incompletas a perguntas relacionadas à biologia, ou a ignorar características essenciais dos processos biológicos ou a formular as questões erradas em primeiro lugar. É fácil criticar. Basta concentrar bem a atenção em qualquer aspecto complexo do mundo e logo se tornam visíveis as falhas apresentadas pelos diversos enfoques em um ponto ou outro. Muito mais difícil é apontar as maneiras de trabalhar melhor na prática. Não ajuda em nada defender em termos gerais a necessidade de um enfoque mais sintético, ou dizer que de algum modo precisamos de uma nova maneira de ver".
Faz a seguir uma série de considerações, em sua maioria críticas, do modo como têm sido analisados e trabalhados importantes problemas biológicos; considerações que permitem conhecer melhor os problemas analisados e, tão ou mais do que isso, estimular o interesse e o envolvimento pelos assuntos discutidos. Sem dúvida, é uma publicação muito oportuna e excitante, que deve ser recomendada não só para os alunos de biologia, mas também para todos os interessados em biologia que aprenderam que, dado o progresso científico atual, hoje não basta fazermos só cursos nas várias etapas das escolas; além desses, deveremos nos envolver em estudos de nossa especialidade ou interesse pelo resto da vida.
A conclusão final do livro é que o progresso da biologia não depende de novas conceituações revolucionárias, mas sim da criação de novas metodologias que permitam na prática responder a perguntas em um mundo de recursos finitos.
Embora não dito de modo explícito no livro, acho que posso também chegar à conclusão de que o Projeto Genoma Humano (PGH), para que tenha qualquer valor prático, foi executado com uma antecedência de algumas décadas.
Se os vultosos recursos (mais de US$ 2 bilhões) fossem aplicados no estudo aprofundado da genética das várias doenças humanas que estão sendo usadas como solucionáveis depois da finalização do PGH, obteríamos resultados muito mais proveitosos para a prevenção ou cura das doenças referidas, além da elaboração de forma mais racional e profunda de partes do genoma humano.

Crodowaldo Pavan é biólogo, professor emérito da USP e da Unicamp e presidente da Associação Brasileira de Divulgação Científica (Abradic).


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