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São Paulo, sábado, 10 de maio de 2003

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A força das classes

Atualidade do conceito de classe social


Castas, Estamentos & Classes Sociais
Sedi Hirano
Ed. Unicamp
(Tel. 0/xx/19/3788-7728)
216 págs., R$ 22,00

A Nova Política de Classes
Klaus Eder
Tradução: Ana Maria Sallum
Edusc (Tel. 0/xx/14/235-7111)
364 págs., R$ 40,00

Estrutura de Posições de Classe no Brasil
José Alcides Figueiredo Santos
Ed. UFMG
(Tel. 0/xx/31/3499-4650)
364 págs., R$ 36,00


RICARDO ANTUNES

Em uma época em que tantos afirmam a perda da validade analítica da noção de classes sociais e de sua vitalidade para a compreensão da textura social do capitalismo tardio, as obras aqui tratadas são um bom exemplo de sua força e atualidade categorial para pensar o mundo contemporâneo.
O livro de Sedi Hirano, em edição inteiramente revisada, trabalho ao mesmo tempo didático, sério e meticuloso, percorre comparativamente as noções de casta, estamento e classe social no pensamento dos dois gigantes das ciências sociais, Max Weber e Karl Marx. O autor mostra como o primeiro é dotado de uma visão polihistórica ou transhistórica, enciclopédica, condensada metodologicamente em tipos ideais, enquanto o segundo, também enciclopédico, mergulha na história, navegando entre a dialética da universalidade e da particularidade, em busca de sua totalização analítica.
Hirano mostra que, enquanto para Marx a chave analítica está na produção social e exploração do trabalho, para Weber ela se encontra na ação social. De modo que as classes podem ser mais bem apreendidas pela posição dos indivíduos no mercado e pelas motivações oriundas da ação e relação sociais (Weber) ou pelas determinações particulares do modo de produção e reprodução da vida social e pelas engrenagens da exploração (Marx).
A partir dessas diferenças de fundo, Hirano redesenha as divergências entre Weber e Marx. Se, para o primeiro, conforme lembra Merleau-Ponty, a verdade sempre deixa uma margem de sombras, talvez pudéssemos acrescentar, no espírito do texto de Hirano, que, para Marx, é imperioso descortinar as sombras para se chegar à verdade.

Classe e ação coletiva
O denso texto de Klaus Eder, "A Nova Política de Classes", avança diretamente na discussão atual sobre a extinção ou validade conceitual das classes e o faz por meio da seguinte afirmação teórica: a cultura é o elo perdido entre classe e ação coletiva. Sua hipótese central é que a noção de classe, despida de suas conotações tradicionalistas, de suas formas contingentes de manifestação histórica, consiste em uma determinação estrutural de "oportunidades de vida para categorias de indivíduos", que "delimita espaços de ação".
Modelado pela idéia da sociedade pós-industrial, Eder entra em cheio no debate. Seu interesse maior está em averiguar as configurações atuais dos movimentos sociais e a crise da sociedade de classes.
Sua proposta o leva a afirmar que o conflito de classes está se transformando num antagonismo fluido que perpassa a totalidade da vida social. E esse conflito compara os indivíduos e seu capital (econômico e cultural), resultando numa estrutura de classes altamente individualizada. Radicado menos na estruturação produtiva da ordem societal, o conflito de classes estaria acompanhado por práticas que geram uma ordem simbólica que o legitima, sendo que os símbolos dos que estão no topo da pirâmide social são os que clamam pela validade universal. Menos que conceituar a classe social e dar-lhe um caráter concreto, o autor lhe confere um estatuto lógico, opção teórica que por certo o aproxima de Weber e o distancia de Marx.
Nos dez capítulos do livro pode-se encontrar uma fenomenologia dos movimentos sociais que enfatiza a tese do radicalismo das classes médias e sua centralidade. O autor os classifica (a "classificação" é um recurso recorrente) em pelo menos dois tipos: os movimentos políticos (o dos jovens, o feminista, os antiindustrialistas) e os culturais (os movimentos antiburocráticos, relativos a ambiente, moradia e, em menor medida, o movimento estudantil). Detecta, então, que o centro dos conflitos de classe e dos movimentos sociais, cuja identidade tem um forte componente cultural, vem migrando da temática da exploração do trabalho para o da exploração da natureza, o que o leva a polemizar diretamente com Marx, que teria "naturalizado" a relação homem/natureza.
Aqui é preciso fazer uma observação crítica: ao usar somente comentadores (como Schmidt, Cohen, Habermas, Elster), desconsiderando os "Grundrisse" ou qualquer outro texto da safra direta de Marx (que não é citado nem sequer uma vez), Eder é pouco convincente. Um sobrevôo, passando por Kurz, Dussel, Altvater e Mészáros, dentre tantos outros, o ajudaria muito a fazer uma interpretação mais criativa e não tão reducionista da questão ambiental e da natureza em Marx.
Ainda sobre as classes médias, há indicações teóricas sobre seu radicalismo, marcado pela "emergência da contracultura e das formas alternativas do mundo-da-vida e de associação". Nesse novo campo, os movimentos sociais encontram seus nexos "identitários" em seus valores culturais que transcendem "o campo das relações industriais".
O problema aqui, para fazer outro contraponto, é que a confrontação de nossos dias não pode ser resumida de modo restritivo entre "o burguês e o proletário", mas entre o capital social total e a totalidade multifacetada e heterogênea do trabalho em escala global. Mas, é preciso concluir, o autor realiza uma reflexão necessária para que se compreenda (teórica e empiricamente) a sociedade de classes e suas relações com os movimentos sociais, num livro cuja edição é especialmente bem cuidada.
Em "Estrutura de Posições de Classe no Brasil", Figueiredo Santos faz um mapeamento bastante abrangente da conformação das classes sociais no país, tomando como referência a análise de Erik O. Wright. Segundo o autor, enquanto o "enfoque weberiano assenta em um nexo causal entre a condição de classe e as chances de vida, que opera essencialmente mediante as trocas de mercado, (...) a perspectiva marxista defendida por Wright vai além dessa conexão, acrescenta de forma privilegiada a esfera da produção e, além disso, considera a interação entre a produção e o mercado, o que lhe permite pensar o conflito na distribuição, na produção e na articulação entre ambos".
Articulando reflexão teórica e um mergulho empírico profundo no mapa social brasileiro, o autor oferece vários elementos para a compreensão do perfil de nossa sociedade de classes, particularmente da classe trabalhadora "ampliada" (abarcando os trabalhadores não-qualificados, os qualificados e os supervisores não-qualificados) e das classes médias, compostas pelos gerentes e supervisores com poder de mando e dominação. Segundo a pesquisa, os capitalistas totalizam 0,5%, os estratos médios (gerentes, supervisores e especialistas) somam pouco mais de 5%; os pequenos empregadores agrupam 3,5%, e os empregados domésticos somam 8,6%. Os trabalhadores proletarizados atingem 48% do total e, somados aos auto-empregados (30%), perfazem quase 80% da totalidade das posições de classe.
O leitor encontra no livro um detalhamento que lhe permite fazer diversas ilações analíticas, como, por exemplo, conferir a área de sombra entre os estratos altos do proletariado e os segmentos inferiores da classe média, ou ainda a classe trabalhadora "pura", que compreende os assalariados com posição subordinada, sem autoridade ou qualificação, e a classe trabalhadora "ampliada".
Santos confirma que o traço distintivo na América Latina é dado pelo crescimento da "informalização", pela feminização do trabalho e pelo aumento dos pequenos negócios. E, se o desemprego foi crescente na indústria, os serviços experimentaram um elevado crescimento, particularmente entre 1985/90. O que, em vez de sinalizar para o fim da sociedade de classes, mostra que ela está se tornando complexa. Aqui e alhures.

Ricardo Antunes é professor de sociologia na Unicamp e autor, entre outros livros, de "Os Sentidos do Trabalho" (Boitempo).


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